quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Hamlet do Brasil

O bode na sala

No final de ano, costumo tirar uma semaninha de descanso. Continuo lendo e escrevendo. Mas tento me libertar dessa gigantesca máquina de informação que nos bombardeia, incessantemente, com notícias, imagens, logotipos, memes, posts e tuítes. É uma forma de sobreviver ao estresse, à produção de cortisol que inibe a glicose no hipocampo e danifica a memória. Com o tempo, um cérebro absolutamente informado corre o risco de ser um cérebro em pandarecos.

Mas, como sou brasileiro, tomo minhas precauções. No início do mês, escrevi um artigo intitulado “Cuidado com dezembro”. É o mês que os políticos preferem para suas decisões absurdas, pois há férias, e o espírito de Natal embala as pessoas comuns. O artigo era resultado de uma experiência de meio século, pois seu ponto de partida foi o AI-5, em 13 de dezembro de 68.

Vivendo e aprendendo. As táticas parecem cada vez mais sofisticadas. Marco Aurélio decidiu numa canetada libertar 169 mil presos (segundo a Procuradoria-Geral da República), Lula inclusive. Não deu certo. Era claro que não daria. Lula nem chegou a arrumar as malas.

No meio do ano, acompanhei da Rússia uma tentativa semelhante. Para mim, era evidente que não daria, mas a cena política teve sua dose de drama. A decisão de Marco Aurélio era tão absurda que durou apenas algumas horas. Foi derrubada, e todos que a temiam respiraram aliviados.


O que há de novo neste dezembro é a tática do bode na sala. A libertação de 169 mil presos cumpriria esse papel. O bode foi retirado, e poucos se deram conta de que Lewandowski autorizou um aumento do funcionalismo, que Rodrigo Maia promulgou uma lei que permite às cidades gastar mais, e os deputados deitaram e rolaram nos projetos de isenção fiscal e aumento do Fundo Partidário. Eles sabem que isso tudo resulta em quebradeira, mas contam, como sempre contaram, com alguma forma de aumentar impostos.

A relativa frieza não é incapacidade de me indignar. Apenas tento economizar energia, sobretudo depois de um ano tão intenso como foi 2018.

Se mergulhar acriticamente no turbilhão de notícias e polêmicas nacionais, estou perdido. De um modo geral, tenho acesso a elas depois de um dia de trabalho na rua ou no mato.

Às vezes, consigo uma precária conexão no hotel e caio num intenso debate sobre Jesus na goiabeira. Sinceramente, por mais calorosos que sejam os argumentos, minha pergunta não faz sentido, apesar de falarmos o mesmo idioma: eram goiabas brancas ou vermelhas?

Isso porque andei lendo um texto sobre Karl Barth, e sua mensagem é clara: traduzir a revelação divina em termos que não são os da fé está destinado ao fracasso.

Na infância, a árvore de preferência é a jabuticabeira. Havia a chácara de um turco, e subíamos para colher algumas jabuticabas. Os empregados às vezes respondiam com tiro de sal e atingiam o bumbum dos meninos. Doía.

Assim como no sertão de Guimarães Rosa, Deus, se vier, terá de vir armado; na chácara do turco, Jesus teria de vir acolchoado.

Observo que, nos Estados Unidos, alguns escritores acham que o ano de 2018 foi de muita raiva. Isso aconteceu também no Brasil. Eles propõem a catarse e a reconciliação como antídoto.

É um remédio fácil de receitar. O difícil é encontrar a fórmula. Em dois lugares importantes, Minas e São Paulo, a diplomação dos deputados, que sempre é uma cerimônia tediosa, resultou em pancadaria.

Um livro chamado “Seis propostas para o próximo milênio” aconselhou a leveza como uma das qualidades para o século XXI. No Brasil de hoje, consigo apenas uma semaninha para levezas. Perco uma parte de dezembro advertindo sobre armadilhas da época e entro janeiro com um pé atrás, desde o naufrágio do Bateau Mouche e o deslizamento na Enseada do Bananal, em Angra.

Muito possivelmente, teremos um ano melhor. Se não houver reconciliação, apenas um pouco mais de tolerância já pode ajudar. O resto são chuvas de verão, seu potencial destruidor, e cerca de 500 cidades brasileiras com um índice absurdo de infestação de Aedes aegypti, o mosquito de dengue e chicungunha.

Mas isso já e falar de volta às aulas, em pleno período de férias. Por enquanto, vamos saudar o bode na sala: não soltaram 169 mil criminosos. Cobraram apenas alguns bilhões pela gentileza.

Um país em tempos bicudos

O Brasil chega ao fim de 2018 em tempos bicudos. A polarização política se aprofundou, e a sociedade ficou mais dividida e intolerante. O país passou a viver uma situação de “mal-estar constitucional”, com ameaças à democracia e ao equilíbrio entre os poderes. O diagnóstico é do professor Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito em São Paulo.

Em “A Batalha dos Poderes” (Companhia das Letras), ele situa o início da crise nas manifestações de 2013, que “colocaram em xeque a estabilidade de um sistema político que parecia consolidado”. De lá para cá, passaram-se cinco anos de turbulências. É difícil acreditar que estejam perto do fim.

O livro sustenta que a eleição de 2014 mudou para pior os padrões da disputa política. A petista Dilma Rousseff admitiu que poderia “fazer o diabo” para vencer, e produziu uma crise fiscal que acabou em recessão. O tucano Aécio Neves não aceitou a derrota, e contestou o resultado para “encher o saco”.

Depois viriam o impeachment de Dilma, que o autor define como “controvertido”, e a posse de Michel Temer, que se salvou de duas denúncias de corrupção e agora enfrenta a terceira.

Vieira afirma que o avanço da Lava-Jato acirrou a disputa entre a classe política e o estamento jurídico. A operação rompeu uma tradição de impunidade dos poderosos, mas abriu espaço a acusações de abuso e parcialidade. O Supremo Tribunal Federal não conseguiu escapar dos mesmos desgastes.

O professor escreve que a Constituição de 1988 deu superpoderes à Corte, abrindo caminho ao que ele chama de “supremocracia”. Na sua visão, o tribunal manteve uma atitude “omissa e reticente” na Era Collor, foi “deferente ao governo e ao Congresso” sob Itamar e FHC e se deslocou para o centro da arena política nos anos do PT.

Hoje é chamado para dar a palavra final sobre quase tudo. “Desconheço outro tribunal supremo do mundo que faça plantão judiciário para solucionar quizílias que os parlamentares não são capazes de resolver”, critica.

Para Vieira, a atuação do STF na proteção de direitos fundamentais é “bastante positiva”, mas o tribunal erra ao se meter demais em disputas políticas. Ele critica as decisões que derrubaram a cláusula de barreira e impuseram a perda de mandato por infidelidade partidária, estimulando a criação de novas siglas: “Sob a pretensão de corrigir falhas no sistema político, o STF contribuiu para torná-lo mais ininteligível”.

O professor defende que as decisões monocráticas deveriam ser “reduzidas ao máximo”, e pede uma atuação “mais colegiada, imparcial e com certa discrição”. “A autoridade do STF não pode ser exercida de forma fragmentada por cada um de seus ministros”, escreve. O noticiário dos últimos dias mostra que ele tem razão.

O livro foi concluído antes da eleição, mas o autor registrou sua preocupação com o favoritismo de Jair Bolsonaro, “líder de extrema direita com posições explicitamente contrárias à Constituição”. Em outro trecho, ele deixou um alerta: “O fato de a Constituição ter sobrevivido a esse período de forte turbulência não significa que sairá ilesa do novo ciclo da política brasileira”.

Pensamento do Dia


Populistas versus humanistas

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia

Dificilmente um prefeito convence seus eleitores a elevar hoje o preço da gasolina, para evitar que o nível do mar suba no final do século. Ainda que tivessem solidariedade com as próximas gerações, os eleitores sabem que o problema climático é planetário, não é provocado apenas pelos carros de sua cidade.



Com seus interesses locais e visão de curto prazo, o eleitor de um país não representa a humanidade, de hoje e do futuro. Promessas de emprego, renda e consumo no presente representam melhor a vontade dos eleitores do que a ideia de salvar a Terra no futuro. Por isso, quando os governantes elaboram pactos internacionais, eles têm dificuldades em ratificar e cumprir essas decisões por seus eleitores, na hora em que os sacrifícios ficam conhecidos.

O mesmo ocorre com outros problemas do mundo global, como a imigração. O fechamento de fronteiras atrai mais apoio do que a proposta de aceitar imigrantes. Os eleitores não gostam de sacrifícios para proteger o meio ambiente, nem medidas de abertura de fronteiras para receber imigrantes que vão ocupar suas ruas, seus empregos, suas escolas. Para o eleitor, “nós” representa a família, a cidade ou o país, não a humanidade e o planeta.

Daí a dificuldade em obter simpatia popular para acordos como de Paris, sobre meio ambiente, e o de Marrakech, sobre migração, assinados por presidentes nacionais que serão substituídos por novos presidentes, quase sempre com ideias contrárias, quando os eleitores elegem populistas nacionalistas. A democracia, nacional e imediatista, não tem visão de longo prazo, nem é solidária internacionalmente: não é humanista.

Mesmo autores que falam dos riscos da democracia analisam a fragilidade do regime democrático na ótica dos problemas internos dos países, e não pelo fato de que a democracia não oferece solução para os problemas contemporâneos, globais e de longo prazo. Para estes autores, os problemas da democracia decorrem da maneira como líderes e partidos agem em suas disputas internas; não porque o Planeta e a Humanidade se transformaram em temas políticos, não mais apenas filosóficos, ainda que os eleitores não captam o novo sentimento e a nova lógica. A democracia ficou atrasada em relação aos avanços tecnológicos e sociais em escala global. Os limites nacionais das regras democráticas não permitem cuidar, de maneira plena, dos limites da ecologia, nem da expansão da migração.

Por isso, o debate político não está mais entre as velhas “direita” e “esquerda”, mas entre utópicos humanistas e populistas pragmáticos. E estes tendem a ganhar, até quando a pedagogia da catástrofe transformar o eleitor provinciano em um humanista. Mas quando isto acontecer, já pode ser tarde.

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Para cuidar desse Novo Mundo será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia. Mas o futuro visível não nos permite prever um eleitor globalizado em uma democracia planetária. A “humanocracia” vai exigir respeitar o voto do eleitor local e imediatista, mas sob um escudo humanista, contando com valores éticos universais que pairem acima das decisões eleitorais nacionais e imediatistas: o equilíbrio ecológico, a sobrevivência das espécies, a sustentabilidade do processo produtivo e de consumo, a solidariedade humana, independentemente da nacionalidade.

Preso como vendilhao do templo, Lula exalta Jesus

Em seu primeiro Natal no cárcere de Curitiba, Lula endereçou uma carta aos participantes de uma vigília por sua libertação. A certa altura, escreveu como se tentasse traçar uma analogia qualquer entre o seu martírio e o suplício de Jesus, “um marceneiro que foi perseguido pelos vendilhões do templo, pelos soldados e pelos promotores dos poderosos…”

Oito meses de cadeia não foram suficientes para convencer Lula de que seu histórico penal o aproxima mais dos vendilhões do templo do que do Cristo. Tomando-se o Estado brasileiro como um templo, o presidiário petista é, hoje, o principal símbolo da usurpação desse espaço sacrossanto.

Sob Lula, biografias épicas foram trocadas por pequenos confortos; autoridades ajustaram propinas dentro do templo; líderes partidários converteram repartições públicas e estatais em centros de coleta de verbas roubadas; congressistas venderam apoio congressual; ministros da Fazenda trocaram desonerações por propinas; dirigentes de bancos públicos morderam pedaços dos empréstimos que liberaram; gestores de fundos de pensão de estatais lucraram com a ruína alheia.

“A luta por um mundo melhor continua”, escreveu Lula. Tem razão. No caso do Brasil, a melhoria passa pelo encarceramento de vendilhões que fingem ser divindades.

No Supremo, pela porta dos fundos

A lambança do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello a poucos minutos do expediente de fim de ano do Poder Judiciário, ao tentar soltar 169 mil presos condenados pós-segunda instância, entre eles Lula, despertou mais uma vez a fúria popular. E com ela emergiu também a criatividade das fórmulas desejadas para substituir a atual indicação de seus componentes pelo presidente da República, com aval do Senado Federal após sabatina. Eleição direta dos ministros, concurso público para admissão e indicação por notáveis ou mesmo associações da classe jurídica são, entre elas, as mais citadas.


Como dizia minha avó, “devagar com o andor, que o santo é de barro”. E seguindo instruções de Jack, o Estripador, “vamos por partes”. Quem tem conhecimento mínimo do resultado de eleições diretas, principalmente para ocupantes de colegiados, como o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, não pode nutrir a mínima esperança de que o voto direto livre os tribunais superiores dos vícios de sempre com a escolha dos mais sábios e mais justos. Concurso público pode escolher mais membros com mais conhecimentos para lidarem com informações sobre determinada área, mas não há prova, oral ou escrita, que escolha entre os pares o mais habilitado a dirimir questões sobre a adequação de determinada lei ao texto constitucional vigente. Não há notáveis ou instituições isentas da interferência de lobbies e que tais na escolha de um profissional para ocupar um cargo de tal relevância e que representa o mais elevado posto na carreira de um profissional do Direito.

A vida do protagonista citado no início deste texto dá a oportunidade de indicar caminhos mais seguros para levar gente mais capacitada e equilibrada para ocupar o topo. Marco Aurélio Mello é o exemplo perfeito de como o patrimonialismo atravessou incólume todas as tentativas de superá-lo e resiste, como entulho, no terreno das instituições republicanas, acentuando suas imperfeições e demolindo a reputação de seus agentes. Ele entrou na carreira pública como procurador na Justiça do Trabalho, invenção de Getúlio Vargas depois da Revolução de 1930, para funcionar como elo no aparelho de poder de um tipo de populismo latino-americano, o trabalhismo. Uma espécie de fascismo cucaracho, também estrelado por Juan Domingo Perón, na Argentina, e Haya de la Torre, no Peru.


O cargo não foi obtido por concurso público, mas por nomeação patrocinada pelo pai, Plínio Affonso de Farias Mello, patrono até hoje reverenciado no ambiente do sindicalismo patronal como uma espécie de benemérito da classe dos representantes comerciais. O prestígio de Plínio Mello era tal que o último presidente do regime militar, João Figueiredo, manteve aberta a vaga no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro para o filho dele, Marco, completar 35 anos, em 1981, e com isso cumprir preceito legal para assumi-la. O prestígio paterno levou-o ao Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, onde Fernando Affonso Collor de Mello o encontrou para promovê-lo – tcham, tcham, tcham, tcham! – para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Neste caso, em que se entrelaçam parentela, compadrio e interesses corporativos, Fernando merece citação especial, pois seu avô materno, Lindolfo Collor, revolucionário de 1930, foi ministro do Trabalho. É também uma história com marcas de chumbo e sangue: Arnon, pai do ex-presidente, irmão de Plínio e tio de Marco Aurélio, atirou em Silvestre Péricles de Góes Monteiro, seu inimigo em Alagoas, no plenário do Senado e matou, com uma bala no coração, o acriano José Kairala, que entrou na tragédia como J. Pinto Fernandes, citado no último verso do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade: “que não tinha entrado na história”. É um caso comum na era dos “pistolões” e pistoleiros.

No STF Marco Aurélio sempre foi voto vencido e um espírito de porco até que encontrou um rumo depois que a ex-presidente Dilma Rousseff nomeou sua filha Letícia desembargadora no Tribunal Regional da 3.ª Região, no Rio, demonstração de como o nepotismo se perpetua. Foi desde então que o campeão das causas perdidas abraçou cruzadas que atendem aos interesses petistas e aos de nababos da advocacia de Brasília, que defendem a troco dos dólares que ganharão, quando for, se é que vai ser, extinta a jurisprudência que autoriza a prisão de condenados em segunda instância. Foi em nome dela que cometeu o tresloucado gesto.

O antagonista no episódio, Dias Toffoli, presidente do STF, mas adepto da mesma cruzada, até tentou ser juiz por concurso, mas foi reprovado em dois. Como defensor de José Dirceu e do PT e advogado-geral da União de Lula, contudo, ascendeu ao cargo que hoje ocupa. O posto, aliás, já tinha pertencido antes, com graves danos para a Constituição, rasurada por ele na ocasião do impeachment de Dilma, a Ricardo Lewandowski. Este foi nomeado pelo quinto constitucional para o Tribunal de Alçada Criminal por indicação de seu então chefe, Aron Galant, prefeito de São Bernardo do Campo. Extinto o órgão, foi transferido para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e chegou ao STF por mercê de suas ligações de compadrio e amizade com o casal Marisa e Lula da Silva. O monturo patrimonialista só será desmanchado se forem fechadas a porta dos fundos do STF, pela qual entram os quintos, e a Justiça trabalhista.

Este conto de trancoso terá um final feliz se loucuras como a de Marco Aurélio e do desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, não forem sequer tentadas. Toffoli marcou a sessão plenária do STF para decidir sobre a jurisprudência da possibilidade de prisão em segunda instância para 10 de abril. Mas só haverá solução final se Bolsonaro e Moro levarem à aprovação do Congresso uma lei para determiná-la. O resto é lero.