terça-feira, 3 de maio de 2022

Pensamento do Dia

 


O pântano da política

A política não é um fim em si mesma. É um sistema-meio para administrar as necessidades do povo. Na visão aristotélica, política é missão, cabendo ao cidadão o dever ético de servir à polis.

Na contemporaneidade, transformou-se em profissão. Que propicia aos seus participantes fatiar o bolo e comê-lo quando tiver vontade. Virou uma escada para muitos subirem na vida.

A política deixou de ser um sistema que desenvolve a capacidade de responder aspirações, transformar expectativas em programas, coordenar comportamentos coletivos e recrutar para a vida pública quem deseja cumprir uma missão social.


No Brasil, infelizmente, o ideal político é uma quimera, mesmo que esteja na boca de participantes, principalmente em anos eleitorais como o que vivemos: “vamos melhorar as condições dos trabalhadores, facilitar o acesso ao crédito, qualificar a educação, equipar hospitais, dar segurança ao povo”.

Em suma, a política se tornou um dos maiores e melhores negócios da Federação. O empreendimento é a conquista de um mandato, seja como vereador, deputado estadual, deputado federal, senador, governador ou presidente da República.

Um dos produtos é a intermediação, o caminho que usa a burocracia pública e os mandatários para políticos obterem recursos, benefícios e vantagens. Estamos no fundo do poço, ou, para usar a terminologia lembrada por Hélio Schwartsman, em seu artiguete de quarta, 27, na FSP, estamos vivendo um jogo pesado, “constitutional hardball – jogo pesado constitucional”, na expressão de Mark Tushnet, de Harvard. Uso uma metáfora: vemos a derrubada do Muro Constitucional.

Querem o exemplo mais recente do desmoronamento dos pilares do nosso edifício democrático? O perdão concedido pelo presidente a um deputado, amigo e parceiro, condenado pela Justiça e, pasmem, a escolha desse parlamentar para integrar comissões na Câmara, entre as quais, a mais importante, a CCJ, Comissão de Constituição e Justiça. Significa escolher alguém que afronta Justiça para decidir sobre leis, ou seja, sobre justiça. O cúmulo da distorção.

O negócio da política mexe com cerca de 150 milhões de consumidores, que formam o contingente eleitoral. Para chegar até eles, um candidato gasta, em média, R$ 7 reais por eleitor, quantia que pode ser cinco a seis vezes maior, se o candidato for agraciado com recursos do polpudo orçamento partidário para a gastança eleitoral. Ou se for rico. A maioria gastará bem mais que a soma dos salários em quatro anos de mandato. A questão é: se a campanha política no Brasil é tão dispendiosa e se os candidatos gastam acima do que ganham, por que se empenham tanto em assumir a espinhosa e sacrificada missão de servir ao povo?

É arriscado inferir sobre as ações e os comportamentos do nosso corpo político, sob o reconhecimento de que parcela do Congresso tem atuado de maneira nobre na defesa de seus representados. Mas sofre críticas por conta da corrupção cometida por alguns.

Outro sistema que erode os cofres públicos é a indústria do superfaturamento. As obras públicas, nas três malhas da administração (federal, estadual e municipal), geralmente são feitas com um “plus”, um dinheiro a mais. Registra-se, até, a figura de um ex-governador de um Estado do Sudeste, que era conhecido pela alcunha de “quinzão”. Parcelas dos recursos se somam às verbas da indústria do achaque e vão para os cofres das campanhas, formando o círculo vicioso responsável pelo lamaçal. Os desvios só acontecem porque nos postos chaves estão pessoas de confiança dos políticos. Resposta da charada. A malha de dirigentes abre espaços, possibilitando contratos, facilitando negócios, costurando o tapete financeiro que cobre a sala de estar da administração. O PIB informal da política é algo escandaloso, chegando a superar a imaginação de alquimistas financeiros sofisticados.

Esse é um tapete difícil de ser lavado. Contém milhões de ácaros que se alimentam das camadas de pele do corpo político. Ninguém vê, mas todos sabem que eles estão lá. Na velha cama, suja e embolorada, dormem perfis identificados com a manutenção do status quo. O ciclo é fechado: a sujeira alimenta os ácaros – agentes e intermediários – e estes suprem sua matriz alimentícia – os patrocinadores – perpetuando e multiplicando formas de corrupção.

Não é qualquer detergente que pode limpar os porões da política.

Milagres existem

A extrema direita jamais escondeu sua pulsão pela morte. Tampouco seu maior instrumento — a violência física.

Em um só exemplo, o que Putin faz contra os ucranianos.

Parte do universo religioso tem seu quinhão de inferno em seu acasalamento oportunista com o discurso direitista. De padres a pastores, principalmente, há um apadrinhamento — bênção? — ao ódio, à cizânia e inconformismo autoritário diante de seu mundo idealizado.

Papa Francisco começa a punir padres pedófilos, eliminando as “más ovelhas” de seu rebanho, mas no Brasil se invoca a figura da intolerância religiosa quando se tenta investigar os pastores do MEC.

A religião soa como um biombo para a ocultação de esqueletos. Na Rússia, o arcebispo da Igreja Ortodoxa, em nome da Virgem Maria, apoia a fratricida invasão da Ucrânia empreendida por Putin. Enxerga na luta um corpo a corpo contra a alegada decadência do Ocidente, estampada principalmente pelas paradas gays. Tá. Por isso, tudo bem matar crianças em orfanatos e idosos em asilos e doentes em hospitais... O arcebispo russo já colhe ventos contrários dos ortodoxos ucranianos e de outras regiões. “O Patriarca de Moscou não está engajado na teologia, mas simplesmente interessado em apoiar a ideologia de Estado”, atestou o arcebispo Volodymyr Melnichuk, em Udine, na Itália.


Vamos ficar mais perto. No Brasil, o discurso bozofrênico da violência encontra apoio nos pastores da situação. Adulados pelas prebendas, como isenções de impostos, não se tem notícia de que tais religiosos se oponham ao liberou geral da circulação de armas legislado pelo governo federal. Difícil imaginar que Jesus Cristo, tão lembrado nas palavras de ordem dos pastores, apoiasse o armamento indiscriminado da população. E mais. Em plena pandemia, ainda tentaram manter seus templos abertos, em busca de um rebanho doador de dízimos. Como se diz, isso seria coisa de um bom cristão?

A vingança divina veio rápida. O ministro André Mendonça, acusado de traição e cobrado pelos evangélicos por seu voto de condenação ao deputado Daniel Silveira, deu nome aos bois. “Como cristão, não creio tenha sido chamado para endossar comportamentos que incitam atos de violência contra pessoas determinadas; e [b] como jurista, a avalizar graves ameaças físicas contra quem quer que seja. Há formas e formas de se fazerem as coisas”, tuitou o ministro evangélico, que chegou ao cargo apoiado por parceiros de crença.

Mendonça, em poucos caracteres, largou Malafaia e grupo pendurados na brocha. Ao contrário de muitos pastores, deixou explícito não apoiar o instrumento da violência como ferramenta de conversão ou método de convencimento ideológico. Porque as ameaças do deputado não podem ser confundidas com defesa de tese acadêmica ou estribilho de samba. São, perdigoto sobre perdigoto, perigosas ameaças à civilização contemporânea — aquela baseada em tolerância e respeito ao semelhante.

O caminho trilhado pelo parlamentar bombado abre espaço para algo semelhante à defesa da invasão russa na Ucrânia (não é que ela é apoiada pelos bozominions?) ou a uma repetição da Inquisição Católica em sua perseguição aos dissidentes do credo. Um cheiro de morte surge escondido entre tais gritos de aleluia.

Pela primeira vez na Era Bozofrênica, se escuta um apelo contrário à pulsão de morte ecoado de dentro do templo direitista. É cedo ainda para dizer, mas não deixa de ser uma bonança o ministro evangélico votar contra o incentivo à violência física (não é figura de retórica: o deputado clamou que os juízes do STF fossem agredidos). Não apenas ao se posicionar na Corte, como principalmente ao se defender dos ataques dos próceres evangélicos, cujas declarações pós-julgamento colocam a ideologia acima de qualquer ensejo teológico.

É luta política com verniz religioso. Nada cristão. O deputado não traz um conteúdo revolucionário, como os sicários ou zelotes, inimigos dos domínios romanos, para ser fielmente defendido pelos políticos da bancada evangélica.

O voto e a justificativa do ministro Mendonça sugerem haver uma discordância entre as denominações terrivelmente evangélicas. Dissenso que mostra a diferença de interpretação nos instrumentos de luta — não à liberdade de violência e ao livre-arbítrio do incentivo ao ódio.

Começa a haver de fato uma demarcação de terreno entre os fiéis cristãos e os aproveitadores do templo? Nada indica que haja verdadeiramente um racha entre a extrema direita, com seu discurso de constante clivagem, e a pregação política de parte dos pastores. Mas o tuitado ataque de consciência do ministro Mendonça, que lembrou outras maneiras de “fazer as coisas”, se posiciona de maneira contundente à opção pela incivilidade pregada por Silveira e apoiada pelo pensamento miliciano.

Talvez os milagres existam.

Vivemos um profundo déficit democrático

Muitos eleitores que não querem Jair Bolsonaro nem Lula têm defendido o voto branco ou nulo nas eleições de outubro. Alegam que seria uma forma de protesto. O problema é que a legislação brasileira não considera o voto branco/nulo no cálculo eleitoral. Ou seja, na prática, é como protestar no Twitter em vez de ocupar as ruas.

É um assombro, sem dúvida. Qualquer regime democrático que se preze deveria considerar o voto nulo como voto válido e expressão máxima de insatisfação do eleitor diante da oferta precária de candidatos, entre desqualificados e criminosos em geral, incluídos genocidas e corruptos.

O fiasco dos protestos no Dia do Trabalho se espelha na pesquisa do Instituto Paraná, divulgada hoje, mostrando que 85% dos eleitores paulistas não têm candidato ao governo estadual.


Se válido fosse o voto de protesto, o eleitorado daria um rotundo ‘cai fora’ a Fernando Haddad, Márcio França, Tarcísio de Freitas, entre outros. O mesmo se daria com Lula, Bolsonaro, Ciro etc. Seria uma revolução política, sem armas. Teriam de ser convocadas novas eleições, até o surgimento de nomes palatáveis. Democracia em estado bruto.

Em artigo publicado em 2013, a analista judiciária do TSE Renata A. de Bessa Dias defendeu o aspecto político e sociológico dos votos brancos e nulos, “como um importante meio de questionamento da ordem política estabelecida no Brasil, sobretudo quando expressos em forma de protesto”.

“A não consideração desses votos para efeito de validade de determinada eleição equivale a desrespeitar o Estado democrático de direito, que tem como um dos pilares a soberania popular”, escreveu.

Ela estava e está certa. Na conclusão do seu texto, Renata lembra que o sufrágio corresponde à “significativa expressão da democracia representativa, motivo pelo qual se pressupõe que a manifestação popular consubstanciada no ato de votar em branco e nulo é legítima e merece ser reconsiderada para efeitos de mudança da atual percepção jurídica do sistema“.

Por fim, conclui que voto consciente “não significa apenas escolher um dos candidatos, senão também protestar”. “Desse modo, mesmo que o voto nulo ou em branco não tenha efeito algum – do ponto de vista legal –, o eleitor tem o direito de se recusar a escolher um candidato, independentemente do motivo, e optar por invalidar o seu voto.”

Para mudar essa realidade hoje seria necessária a aprovação de uma PEC, mas não devemos ter esperança de que o atual Congresso, comandado por Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, se dedicará a tema tão relevante.

Sem falar que temos uma Câmara dos Deputados com apenas 5% de seus integrantes eleitos pelo voto direto. O resto ganhou o mandato via quociente eleitoral, de carona nos puxadores de voto, resultado de um sistema proporcional que só aprofunda o já abissal déficit democrático.