sábado, 5 de novembro de 2022

Discutir com mortos


Discutir com uma pessoa que renunciou ao uso da razão é como administrar remédio aos mortos
Thomas Paine (1737-1809)

O professor e Bolsonaro

A vitória de Lula no Brasil é um respiro. De todas as cabeças visíveis da nova extrema direita, essa que se formou na ponta da paranóia geral, das teorias da conspiração, do hábil marketing do ódio, da manipulação do fanatismo religioso e das diversas formas de elogiar a violência, Jair Bolsonaro pode muito bem ser o única figura mais perigosa que seu ídolo (sic) Donald Trump. O perigo em seus respectivos casos vem em parte do tamanho de suas economias, que influem no que acontece em suas áreas de influência, mas também daquelas coisas que não são quantificadas e às vezes são tomadas de ânimo leve, apesar de estarmos testemunhando a deterioração que provocam nas nossas sociedades há já vários anos. Refiro-me a uma certa forma de exercer a liderança que é muito desenfreada nos dias de hoje, e cuja principal estratégia é a destruição de tudo. Esta nova forma de fazer política deve ser bem sucedida, porque senão não se entende que, com os danos que causa, tornou-se moda em nossas democracias desorientadas que parecem ser seus piores inimigos todos os dias.

A forma a que me refiro é uma encarnação do mesmo populismo de extrema-direita que acompanhamos de perto há vários anos, porque está destruindo as coisas há algum tempo. Esse populismo curiosamente flerta com o fascismo, ou pelo menos bebe do fascismo como forma de entender o mundo. Você já sabe: o elogio da violência, o populismo com conteúdo racista, a invenção de um inimigo do povo, tudo filtrado por um ultranacionalismo acessível a qualquer um. Dicionário fascismo, em outras palavras. Uso a palavra com plena consciência: sei bem que se usa demais e para tudo, às vezes por leveza, às vezes por frivolidade e às vezes por ignorância. E isso é negativo: se for usado de forma descuidada, como fazem tantos políticos colombianos, a linguagem perde seu valor e não serve mais para nomear coisas quando realmente precisamos. Como precisamos falar de Trump, o líder messiânico de uma gangue de paranóicos violentos –extremistas, neonazistas, supremacistas brancos– que agora invadem as casas de políticos dispostos a matar com golpes de martelo; como precisamos, sim, falar de Bolsonaro, cuja forma de entender o mundo é militarista ao ponto da caricatura.

O que não impede, aliás, que levem muito a sério. Nas bandeiras de seus seguidores ele sai fazendo a saudação militar, e é de se perguntar por que isso parece aceitável mesmo para cidadãos que não sentem, como Bolsonaro, nostalgia pelos líderes militares do golpe do século passado. Mas é do conhecimento público que foi um soldado medíocre e que deixou o exército pela porta dos fundos, julgado por indisciplina e acusado de arquitetar planos para desestabilizar o quartel. Talvez seja daí que vem o que vem agora: ele não seria o primeiro a tentar lavar o sentimento de fracasso com o que os psicólogos chamam de supercompensação (mas não tenho certeza de que Bolsonaro tenha lido Alfred Adler). As atitudes do homem despertam a nostalgia de homens fracos (aqueles que sentem necessidade de tirar fotos fetichistas com seus fuzis, por exemplo). De qualquer forma, tudo isso é uma questão de nichos: nada explica adequadamente por que 49% do país votou nele. O que acontece depois?

De maneiras que talvez não sejam óbvias, mas que estão se infiltrando, Bolsonaro colocou boa parte de seus eleitores em autodefesa. Ele é, sempre foi, um agitador social, um hábil manipulador do ressentimento e do ódio, e esse aspecto não é diferente: liberou o porte de armas; suas redes sociais elogiam os armados. Esse é o mundo selvagem em que Bolsonaro se move, temperado com o medo dos cidadãos em cidades que estão entre as mais inseguras do continente, e seu talento tem sido transmitir aos eleitores a convicção de que estão ameaçados. Nada poderia ser mais fácil nestes tempos, em que a política não vem mais de cima, por assim dizer, mas circula entre nós, se faz entre nós (com as mentiras que compartilhamos, com as mensagens que circulamos, com a facilidade assustadora com isso desejamos a destruição ou extermínio do outro). Tudo isso foi explorado por Bolsonaro. Ironicamente, a ameaça mais real que o Brasil experimentou durante seu mandato, a do novo coronavírus, foi desprezada e negligenciada – vai passar, disse Bolsonaro, como uma gravidez de mulher – e o resultado foram milhares de vítimas que poderiam ter sido salvas.

Sua capacidade de dividir e confrontar, de cultivar provocações e agressões verbais, encontrou terreno fértil em nossas guerras culturais. A esquerda, ateus, minorias sexuais: o inimigo é claro e passa pela religião, ou para convencer os fiéis de que sua fé está em perigo. Em um país conservador onde as igrejas evangélicas têm enorme influência, basta acusar o candidato de falar com o diabo para tê-lo por trás, como Bolsonaro fez com Lula. Como em casos semelhantes, quem mente primeiro e mais escandalosamente domina a conversa pública. É a grande lição, ou uma das grandes lições, que Bolsonaro aprendeu com Trump: e ele a copiou conscientemente. Não surpreende, porque Bolsonaro se olha em Trump como um espelho; são dois malandros com passados medíocres, que compartilham uma visão de mundo digna de um valentão adolescente e uma incapacidade patológica de não fazer o mal quando podem.

(Eles também são parecidos em uma outra coisa: o fracasso de sua reeleição, que é tão incomum em um país quanto em outro, e sua recusa em aceitá-la.)

Bolsonaro também copiou os caminhos e as estratégias de Trump, e isso nem é o mais grave: o mais grave é que outros possam copiá-lo. Sua derrota pode retardar ou desencorajar esse efeito mimético. Embora talvez isso seja uma ilusão. De qualquer forma, a verdade óbvia é que as duas figuras são tão parecidas quanto seus eleitores, ou uma grande parte deles. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, são cidadãos que se sentem ameaçados; tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, são cidadãos que se alimentam quase que exclusivamente nas redes sociais; tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, vivem em uma realidade que se afasta ligeiramente ou francamente da realidade verificável.

E esse talvez seja o maior dos desafios que Lula enfrenta: como governar para uma parte da cidadania que não está vendo a mesma realidade que o Governo? Ele já fez a mesma coisa que Biden fez na época: prometeu que governaria para todos, que uniria sua sociedade dividida. Estas são as palavras esperadas de um presidente, é claro. E, no entanto, assim que escrevo esta última frase, me pergunto se é verdade. Talvez não: talvez sejam as palavras que antes esperávamos dos presidentes do passado. Chamados à unidade, à harmonia, à tolerância? E então, quem vai nos ameaçar?

Remover as raízes do fascismo

A reconquista da democracia, processo aberto com a vitória da ampla frente política em torno da candidatura Lula-Alkmin, afirma-se a cada dia em que pese a sedição de setores da categoria dos caminhoneiros que ocuparam as estradas em rebelião ao resultado das urnas, vociferando em favor de uma intervenção militar. A essa altura, já se faz patente o caráter metodicamente concertado desse movimento sedicioso, que as hostes bolsonaristas tinham como sua bala de prata a fim de promover o tumulto e o caos com que justificariam o golpe nas instituições que urdiam.


Por falta de apoio político e sustentação militar, a conspiração resultou em mais uma tentativa frustrada no histórico golpista de Bolsonaro, obrigado, mais uma vez, a desfazer a sedição que inspirou, solicitando aos caminhoneiros de sua grei o abandono das estradas e o retorno às suas rotinas, vários deles ao alcance dos rigores da lei. A derrota dessa descabelada incursão antidemocrática tem o condão de alertar para os riscos que a nossa democracia terá pela frente em sua imposição – as sementes perversas do autoritarismo adubadas em quatro anos pela pregação fascitizante encontraram terreno para frutificarem, como se viu no processo eleitoral e agora nessa rebelião.

O horizonte que se revela para o governo Lula-Alkmin, diante dessa cultura antidemocrática que germinou entre nós, reclama por ações ainda mais inventivas e audaciosas do que as mobilizadas na vitoriosa disputa eleitoral. Nesse objetivo, o raio de ação da frente política a dar sustentação ao governo deve sondar, sem qualquer limitação, todas as possibilidades de expandir seu âmbito no sentido de incorporar todo aquele que recuse o fascismo como ideologia política. Nesse sentido, o agrupamento político conhecido como o Centrão e demais forças representativas do conservadorismo brasileiro, inclusive as que na disputa eleitoral se alinharam à candidatura Bolsonaro, devem ser objeto de interpelações em pautas específicas por parte do governo democrático.

O fascismo conta com raízes históricas em nosso país, ora presente em partidos e movimentos sociais como nos anos 1930 com o integralismo que atraiu amplos setores das camadas médias, intelectuais e militares, ora como ideologia encapuzada do Estado, tal como na constituição de 1937 que baniu os partidos políticos e jurou de morte os ideais liberais subscrevendo os argumentos de Karl Schmitt, ideólogo do nazismo de Hitler, inspiração do então ministro da Justiça Francisco Campos, autor daquele famigerado texto.

Essa constituição liberticida foi revogada com a deposição de Vargas, porém muitas das suas disposições ganharam sobrevida na Carta de 1946, em particular sua legislação sindical que não só crimilizava as greves como punha sob tutela do Estado a vida associativa dos trabalhadores, em franca importação da Carta del Lavoro do fascismo italiano. A constituição democrática de 1988, embora tenha expurgado disposições autoritárias dessa legislação, manteve vínculos que ainda preservam os sindicatos na órbita do Estado, comprometendo sua plena autonomia.

Sobretudo, as raízes mais fundas do nosso autoritarismo derivam do processo de modernização que aqui teve curso a partir de 1930 operada, desde Vargas, no sentido de compatibilizar as velhas elites agrárias com as emergentes originárias da industrialização. Exemplar gritante disso o fato de se manter os trabalhadores do mundo agrário à margem do sistema de proteção criado pela legislação trabalhista. Tal como na Itália e na Alemanha, que passaram por regimes políticos fascistas depois de processos de modernização conservadora em meados do século XIX, os diferentes surtos brasileiros de modernização, como nos anos 30 e nos anos 60, importaram no fortalecimento dos nexos entre as elites empresariais e as do empresariado industrial, de que é fruto o moderno agronegócio. A modernização impediu nossa passagem ao moderno.

No caso brasileiro, tal processo de conservação do poder das elites agrárias se manifestou igualmente no processo do abolicionismo, em que pese a pregação de suas principais lideranças, como André Rebouças e Joaquim Nabuco, em favor de uma distribuição de terras aos emancipados da escravidão. A abolição passou ao largo da questão fundiária com o que se frustrou o primeiro movimento de formação de uma opinião pública efetivamente nacional.

Remover raízes tão fundas leva tempo e exige coragem, sabedoria e prudência, virtudes presentes nos articuladores, Lula à frente, que souberam nos levar à vitória sobre as hostes fascistas na sucessão presidencial. O mesmo caminho deve guiar o nascente governo democrático, pautando cada passo no sentido de devolver ao país os rumos de que fomos desviados em busca do reencontro com os ideais civilizatórios de que um governo criminal tentou nos afastar.

Como ficam os militares depois da vitória de Lula

Os militares conquistaram acesso privilegiado ao poder durante o governo Jair Bolsonaro, com reflexos na definição de políticas públicas e nos rendimentos da categoria, e exerceram um grau de influência na esfera civil do país como não ocorria desde o fim da ditadura militar.

A ascendência da caserna sobre a política deverá ser reduzida com a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, mas tem raízes históricas no país e ela deve seguir à espreita de uma nova crise grave para retomar a busca por protagonismo, avaliam especialistas.

Durante a gestão de Bolsonaro – um capitão reformado do Exército – os militares comandaram órgãos relevantes do governo, como Casa Civil, Secretaria-Geral da Presidência, Saúde e Infraestrutura, entre outros. E ocuparam centenas – ou milhares, a depender da metodologia – de outros cargos no governo.

O jornalista Fabio Victor, autor do livro recém-lançado "Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro", editado pela Companhia das Letras, compilou levantamentos que buscaram medir o número de militares que ocuparam a gestão pública federal.

O Tribunal de Contas da União (TCU) identificou em 2020 6.157 militares exercendo funções civis na administração pública federal, um aumento de 102,2% em relação aos 2.957 de 2016 – incluindo 1.969 militares inativos contratados para funções temporárias no INSS, além de 1.249 acumulando cargos na saúde e 179 na educação.

Outro levantamento realizado pela Lagom Data para o livro de Victor identificou mais de 5 mil militares em cargos civis no final de 2021, alta de 43% em relação aos 3.500 no final do governo Dilma Rousseff. Considerando apenas os mais altos postos comissionados da administração federal – a elite do funcionalismo – 186 diferentes militares da ativa e da reserva ocuparam esses cargos ao longo do governo Dilma, e 717 no governo Bolsonaro até dezembro de 2021, alta de 285% – dos quais apenas um em cada cinco estava em pastas tradicionalmente ligadas à caserna.

O sociólogo João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), especialista em Forças Armadas e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, afirma à DW que os militares participaram do governo Bolsonaro "do começo ao fim" e "não fizeram nenhuma sinalização de distanciamento".

Uma atuação destacada das Forças Armadas a serviço do governo Bolsonaro ocorreu no processo de organização das eleições deste ano. Os militares foram convidados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a participarem da Comissão de Transparência das Eleições, e usaram o espaço para semear dúvidas sobre a urna eletrônica e fazer exigências à Corte alinhadas ao interesse do presidente de questionar a lisura do processo eleitoral.


"Bolsonaro e seu ministro da Defesa, que se revelou um bolsonarista de quatro costados tão logo trocou a farda pelo paletó, aproveitaram [o convite do TSE] para politizar ainda mais uma questão que não diz respeito aos militares e ampliaram a confusão entre política e caserna", afirma Victor.

Uma diferença crucial entre a atuação dos militares durante o próximo governo Lula e como eles agiram nas gestões anteriores do PT é que agora sabe-se com mais clareza o que a caserna pensa e como ela age para ocupar espaços, diz Martins Filho – como se as máscaras tivessem caído durante o governo Bolsonaro.

Ele cita um documento lançado em maio pelos institutos General Villas Bôas, Sagres e Federalista, intitulado Projeto de Nação e com propostas para o Brasil até 2035, em uma cerimônia com a presença do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, que "representa bem" o que pensa o meio militar.

No documento, há críticas à suposta "ideologização radical no ensino" e à atuação do Judiciário e do Ministério Público "sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição".

Outro registro do pensamento militar é uma carta do general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, divulgada no final de semana do segundo turno, que afirmava que a eleição de Lula levaria à "destruição do civismo e ridicularizarão do patriotismo e dos símbolos nacionais", "desrespeito à Constituição" e "desmontagem das estruturas produtivas que tão arduamente foram recuperadas".

"Parece uma série de devaneios, mas representam bem o que pensa o militar médio", diz Martins Filho. Ele afirma que os militares "não perdoam" o Judiciário por ter anulado as condenações de Lula e, como resultado, permitido que o petista concorresse à eleição.

Nesta quinta-feira (03/11), Mourão expressou esse sentimento em um post no Twitter, no qual reclamou que a população aceitou "passivamente" a "escandalosa manobra jurídica" que anulou as condenações do petista.

Victor também identifica que a crítica ao Judiciário é um elemento comum no meio militar hoje. "Grande parte dos militares concorda com aspectos do bolsonarismo e faz eco a questões como a crítica ao papel do Supremo e do TSE. Acham que o Judiciário se intrometeu demais, e isso tensiona relações entre o poder civil e a caserna."

A campanha de Lula ao Planalto falou poucas vezes sobre o que planeja fazer em relação aos militares. Há nas suas diretrizes de governo apenas uma curta menção às Forças Armadas, afirmando que elas "atuarão na defesa do território nacional, do espaço aéreo e do mar territorial, cumprindo estritamente o que está definido pela Constituição".

Martins Filho avalia que a escassez de detalhes de Lula sobre como pretende lidar com as Forças Armadas é uma estratégia deliberada para não dar sinais de fraqueza ou de enfrentamento, e indica que ele "perdeu as ilusões" de que seria possível conquistar os militares destinando fartos recursos para seus projetos – como tentou fazer no seu primeiro governo.

O professor da Ufscar cita que o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim também declarou em entrevistas ter ficado atônito ao perceber que muitos militares haviam ludibriado o governo petista, para conquistar promoções na carreira, e depois mostraram-se bolsonaristas.

Uma das medidas consideradas certas no próximo governo Lula é a redução do número de militares exercendo cargos civis na administração pública federal, o que irá provocar perda de rendimento para os afetados – que hoje acumulam o soldo militar às gratificações de suas funções no governo.

Martins Filho também projeta que a gestão Lula evitará declarar novas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que foram usadas nos governos anteriores do PT para designar as Forças Armadas como responsáveis pela segurança de eventos como a Rio+20 em 2012, as visitas do Papa Francisco em 2012 e 2013 e a Copa do Mundo de 2014. Uma alternativa civil seria designar a Polícia Federal para essa função.

"Segundo o modus operandi desses generais, toda vez que você dá um cargo importante para eles procurando agradar, apaziguar, você os acaba empoderando", diz Martins Filho.

Ele diz que outro caso que ampliou o poder e prestígio dos militares durante os governos do PT foi a participação do Brasil na Missão da Nações Unidas para Estabilização do Haiti, que foi comandada por um período pelo general Augusto Heleno, atualmente braço direito de Bolsonaro e ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro e governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas, também atuou no Haiti.

Ele prevê ainda a destinação de poucos recursos para projetos militares muito custosos, devido à desconfiança mútua com o novo governo e às restrições orçamentárias previstas para os próximos anos.

Por outro lado, o governo Lula não deve promover punições aos militares que atuaram no governo Bolsonaro, diz Martins Filho. Victor tem avaliação semelhante: "Pelo histórico dos dois governos de Lula e pelo perfil conciliador do presidente eleito, creio que ele vai se esforçar para evitar revanchismos."

Em relação ao comando do Ministério da Defesa, Victor diz ser "seguro" que Lula nomeará um civil para o comando da pasta, uma prática iniciada em 1999, no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, que simbolizou a submissão das Forças Armadas ao poder civil, e interrompida no governo Michel Temer, com a nomeação do general Joaquim Silva e Luna em 2018.

Ele afirma que Aldo Rebelo, que comandou a Defesa de outubro de 2015 a maio de 2016, quando Dilma foi afastada do cargo no seu processo de impeachment, é "benquisto" entre os militares, mas não deverá ter apoio do PT para voltar ao cargo "a menos que Lula resolva bancá-lo". Ele menciona que os deputados petistas Carlos Zarattini e Arlindo Chinaglia, ambos de São Paulo, têm "algum trânsito" na caserna, e que o nome do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, também tem sido ventilado.

Victor pontua que um desafio do novo governo Lula será lidar com a pressão de setores mais à esquerda por mudanças em temas tidos pelos militares como "intocáveis", como a Lei da Anistia, os currículos das escolas militares e o sistema de promoção de oficiais-generais. "Mas creio que deve prevalecer a natureza de Lula pela conciliação."

Pelo menos no início do governo Lula, a perspectiva é de pouca resistência pública dos militares da ativa em relação ao novo presidente. Um dos motivos é o pragmatismo daqueles que hoje são coronéis e desejam chegar ao posto de general, uma promoção que depende de alguma articulação política, diz Martins Filho.

Além disso, os militares buscarão manter um canal aberto com Lula para pleitear verbas para as Forças Armadas. "Eles não poderão agir como uma força bolsonarista, pois é o governo central que tem o dinheiro e esse confronto direto não seria bom para eles", afirma Martins Filho. Mas tampouco haverá uma efetiva aproximação. "A incompatibilidade de gênios é muito grande entre o presidente da República eleito e os militares."

Martins Filho avalia que o cenário mais provável é os militares recuarem para uma posição mais discreta a partir da posse de Lula. "O problema é que agora nós sabemos o que eles pensam e como eles agem, e é completamente diferente do que pensa a frente democrática. Será uma relação difícil", diz, sublinhando o risco de que, caso Lula enfrente alguma crise grave, os militares "voltarão com tudo" para a seara política com a narrativa de que são instituições a serviço do povo.