domingo, 11 de abril de 2021

Matança com digital

As pessoas perguntam na rua: ‘Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse acertado a mão?’ Essas questões têm de ser levadas à CPI. O presidente da República deu uma de charlatão, prescreveu remédios, defendeu a cloroquina, teria mandado fabricar. E isso tudo é passível de investigação

Renan Calheiros, senador (MDB-AL)

Terra em transe

O capitão Jair e o Dr. Jairinho têm algo em comum: gostariam de virar a página. O primeiro é presidente do Brasil. Como a responsabilidade pelo caos pandêmico não sai de seu colo, ele explora tentativas cada vez mais bizarras de virar a página, de varrer a realidade fúnebre do país nem que seja aprofundando ao extremo o precipício. A mortandade que o capitão semeia é coletiva.

Já o Dr. Jairinho prefere semear terror individual. Por espancamento. Foi preso com a mulher esta semana pelo assassinato do enteado Henry, de 4 anos. Vereador carioca no quinto mandato e habituado a trafegar nas paralelas, Jairo Souza Santos Junior procurou varrer a realidade de seu crime ainda no hospital — pediu, ao arrepio da lei, que o corpo do menino não fosse encaminhado para o Instituto Médico Legal. Pretendia encaminhá-lo a um legista particular para, em suas próprias palavras, “poder virar a página logo”. Felizmente, não foi atendido. Mais tarde, segundo relato do devastado pai biológico da criança, o vereador teria se dirigido a ele em termos ainda mais crus: “Mermão, vira essa página, vida que segue. Você faz outro filho”.

Jair e Jairinho têm em comum uma desumanidade doentia. Ela parece não ter fim neste Brasil em transe, resignado a chorar. É natural chorar pelo menino Henry mesmo sem tê-lo conhecido, pois os elementos conhecidos do caso geram empatia universal: o horror e medo de uma criança brutalizada até desfalecer, a animalidade de um padrasto espancador, a frieza criminosa da mãe. Como não querer escancarar os braços para proteger o miudinho indefeso?


Mais complexa é a subtração diária de vidas brasileiras levadas pela Covid-19, esse matador silencioso, invisível, não humano. Mesmo quando tentamos individualizar alguma morte anônima igualmente cruel, o pranto não vem fácil em meio aos outros 350 mil que já se foram. Tome-se o caso da menina de 4 anos, mesma idade de Henry, cujo corpo foi encontrado no Hospital Materno Infantil de Brasília por vigilantes da instituição. Segundo o portal “Metrópoles”, o corpo sem vida estava há mais de 24 horas numa salinha sem ventilação na entrada da emergência pediátrica, à vista de pacientes que por ali passassem. Só que o pavor da menina com suspeita de Covid-19, sua solidão e asfixia antes de morrer são mais difíceis de imaginar. Permaneceu anônima, exceto para quem a perdeu.

Tinha razão o dramaturgo e romancista Max Frisch quando escreveu que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo inventa uma história que acredita ser sua vida. Nesse sentido — e apenas nesse sentido —, Jair Bolsonaro não é diferente do resto do mundo. Para manter sua vida ficcional vedada, ele precisaria “virar a página” de sua responsabilidade na tragédia brasileira. Não vai conseguir. Basta responder a uma pergunta de simplicidade cristalina que aponta a responsabilidade única do presidente da República no abandono do país: qual o único brasileiro que poderia ter mudado o curso da voracidade do vírus? A resposta independe das complexas deliberações do Judiciário e das tortuosidades do Legislativo. Ela se fundamenta no senso comum.

Desde o início da pandemia, a parte dos brasileiros em condição de optar pelo iluminismo entendeu a seriedade do perigo, adotou medidas protetivas individuais, assumiu sua responsabilidade coletiva. Sempre se manteve decidida a não compactuar com o obscurantismo. Para que o combate à Covid-19 tivesse alguma chance de êxito ou racionalidade, teria bastado convencer o outro Brasil. Esse outro Brasil em estado de mitomania, aguerrido, porém fiel, teria seguido com disciplina religiosa qualquer ordem de distanciamento, uso de máscara ou confinamento emanada da boca do seu líder. Tamanho poder e privilégio somente o presidente tinha, com tudo à disposição — cadeia nacional de rádio e TV diária, se quisesse, redes sociais, confiança cega de seguidores. Nenhum ministro da Saúde, nenhuma sumidade científica, nenhum acadêmico, celebridade ou vencedor do “BBB” teria, sozinho (nem em conjunto), eficácia semelhante. O presidente da República preferiu incentivar o descarrilamento de vidas.

Muito acima das lambanças generalizadas deste Brasil esgarçado, a responsabilidade de Bolsonaro é única. Apenas ele, sem precisar de mais ninguém, dado que o governo o seguiria, teve a chance de evitar o naufrágio. Nem sequer tentou. Optou pela morte.

Pensamento do Dia

 


Paus de arara e malas com dinheiro

As instituições se desmoralizam ao não reconhecerem erros de seus membros, insistindo que crimes conhecidos não ocorreram. No lugar de identificarem os responsáveis, pedirem desculpas e mostrarem medidas que impedirão a repetição dos erros no futuro, estas instituições terminam assumindo a responsabilidade que deveria ser de indivíduos.

Percebe-se isto na insistência do Exército, ao negar a realidade dos crimes de tortura cometidos por membros de sua tropa durante o regime militar. Não conseguem esconder os fatos e terminam comprometendo a instituição, passando a ideia de que os novos oficiais também são coniventes, mesmo que eles nem fossem nascidos à época daqueles acontecimentos.

Da mesma forma, o PT insiste em negar que em seus governos ocorreram níveis colossais de corrupção, cometidos por filiados e aliados. Ao negar o que é conhecido de todos e acobertar a corrupção cometida por indivíduos, termina conspurcando a imagem da instituição e comprometendo a todos os militantes, inclusive a imensa maioria que não participou destes crimes.

Nem o Exército é torturador nem o PT é corrupto, mas ao negarem denúncias de pau de arara ou de malas de dinheiro, seus dirigentes comprometem suas instituições e todos seus membros. Trazem os crimes de alguns no passado para a responsabilidade de todos no presente. Não há como comparar a perversidade do pau de arara sobre o corpo de uma pessoa, com a imoralidade do roubo de dinheiro público surrupiado do povo, mas o Exército e o PT se identificam ao negar estes fatos, cometidos por membros de suas instituições.


Negar o uso do pau de arara ou o recebimento de propina é o mesmo que negar que a Terra é redonda, com o agravante de deixar aberta a porta para a história repetir a tortura e o roubo. Se os torturadores tivessem sido punidos, inclusive pelo Exército, a democracia estaria mais fortalecida, se o PT tivesse denunciado o erro de seus corruptos, o Brasil confiaria mais neste partido.

Esconder os paus de arara passa a impressão de que estão guardados para serem usados no futuro; negar as malas de dinheiro é sinal de que desejam usá-las outra vez. O Brasil precisa de um Exército livre das chagas da tortura, e de um PT sem a marca da corrupção. É possível, mas para isto seus dirigentes precisam reconhecer o que todos os brasileiros sabem, pedir desculpas e mostrar que os erros foram por indivíduos e não serão repetidos.

Será difícil consolidar a democracia tendo medo do golpe de estado pelo Exército ou de vitória eleitoral do PT, porque eles se apresentam carregando os erros do passado, achando que o povo brasileiro é cego, sem informação, nem discernimento. A defesa nacional precisa de nossas FFAA respeitadas, sem o carimbo da ditadura, nem da mentira de que o passado não aconteceu. A política precisa do PT respeitado, sem a marca da corrupção, nem do aparelhamento do Estado. Para isso, um e outro precisam se comprometer com a verdade, salvar os militares e os militantes atuais dos crimes de outros no passado.
Cristovam Buarque

Coveiro 'inocente'

Se a CPI está buscando erros cometidos com relação ao combate à Covid, não pode ir somente para cima da União. No meu modo de ver, a União não cometeu erro nenhum. A gente sabe que querem atingir o presidente da República. Uma CPI para atingir o presidente está errado

Luiz Eduardo Ramos, ministro da Casa Civil

Governo quer fim da Comissão de Anistia em 2022 e nega 90% dos pedidos de reconhecimento de anistiados

O Brasil restaurou a democracia em 1985 sem acertar as contas com a história e a memória das vítimas do regime militar que durou 21 anos. Diferentemente de países como a Argentina ou o Chile, que levaram seus algozes para o banco dos réus antes de virar a página, o país se contentou com a Lei da Anistia, assinada em 1979 pelo general João Batista Figueiredo, que presidia o Brasil. A lei ‘perdoava’ militantes de esquerda, bem como militares acusados de crimes. Em 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), uma outra pequena vitória para quem sofreu os abusos dos militares, com a criação do regime do anistiado político. O sistema indeniza quem sofreu perseguição e tortura do Estado durante a ditadura militar. A ex-presidenta Dilma Rousseff, por exemplo, é uma das que pleiteia hoje esse benefício após ter passado dois anos sob tortura na prisão durante o regime militar.

Mas, depois de quase 20 anos, sob um Governo entusiasta da ditadura, os benefícios de reparação da memória estão ameaçados. Houve uma queda exponencial nos deferimentos dos pedidos de anistia e um endurecimento das regras para solicitar o benefício durante a gestão Jair Bolsonaro (sem partido). Somente10% dos pedidos feitos até o momento foram deferidos. A queda nas aprovações vem desde o Governo Michel Temer (MDB), quando 13% dos requerimentos foram aprovados.


O status de anistiado político é concedido às pessoas que tenham sofrido perseguição por órgãos ou indivíduos ligados ao Estado brasileiro entre os anos de 1946 e 1988. A maioria dos reconhecidos como anistiados foi alvo de perseguição durante a ditadura entre os anos de 1964 e 1985. “Desde a gestão Temer, o Estado brasileiro nem pede mais perdão a quem a Comissão de Anistia entende que tem de receber uma reparação”, diz a professora de direito da Universidade de Brasília (UnB), Eneá Stutz e Almeida, conselheira da comissão entre 2009 e 2018. O pedido de desculpas era um importante gesto simbólico, no qual, após analisar minuciosamente os processos em que os requerentes solicitavam a anistia e avaliar que o pedido era justo, os membros do Conselho da Comissão da Anistia anunciavam: “Em nome do Estado brasileiro nós pedimos perdão”.

De 2016 para cá, alguns conselheiros passaram a insultar quem requisita o reconhecimento de que foi perseguido pela ditadura, conta a pesquisadora Stutz e Almeida. A afirmação é referendada por outras testemunhas. “Em uma das sessões, um conselheiro que é militar disse que os anistiados eram terroristas. Me revoltei e falei que os militares eram tarados porque eles tinham o prazer de dar choques em testículos ou em mamilos dos presos e presas, como fizeram com meu pai”, diz Rosa Cimiana, que hoje, aos 61 anos, é servidora pública. O pai de Rosa, Arthur Pereira da Silva, era um líder sindical do setor ferroviário e membro do Partido Comunista no Rio Grande do Sul. Eram credenciais suficientes naqueles anos de chumbo para ter seus 23 anos de direitos trabalhistas cassados. Ele foi preso em 1964, juntamente com outros dez companheiros. Alguns perderam os direitos políticos.

Quando foi solto, Silva passou a viver na clandestinidade porque ainda era perseguido. Chegou a enviar os filhos temporariamente para Argentina para fingir que tinha deixado o país, mas se mudou com a esposa para Goiânia e, depois, para Brasília.

Foi em 1979, quando Rosa, então com 20 anos, teve a alegria de testemunhar o primeiro passo para que a memória do seu pai fosse reconhecida. Em outubro daquele ano, com a ajuda do então deputado Ulysses Guimarães (MDB) ela conseguiu entrar na Câmara, pela primeira vez, para acompanhar a sessão que aprovou a Lei da Anistia. Desde então, passou a ser uma militante da causa e testemunhou todas as movimentações que se seguiram sobre as famílias prejudicadas pelo regime militar. Viveu a alegria, quando em 2003 seu pai, foi oficialmente anistiado – 21 anos após a sua morte. Também acompanhou quando os Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (ambos do PT) reconheceram 40.548 pessoas como perseguidas políticas – cerca de 62% dos requerimentos de anistia apresentados foram aprovados no período.

Agora, o Governo do ex-capitão do Exército caminha a passos largos na sua tentativa de reescrever a história, negar a existência de uma ditadura que usou da perseguição política e de tortura, embora muitos ainda lutem para ter familiares mortos naquele tempo reconhecidos como vítimas do Estado. O objetivo, conforme relatado por interlocutores do Governo, é até o fim de 2022 extinguir a Comissão de Anistia, que é o colegiado responsável por analisar a documentação de todos os pedidos de reparação histórica feitos pelos perseguidos políticos. “É um revisionismo histórico que não pode ocorrer. Mas não dava para esperar nada diferente de quem já defendeu torturador da ditadura militar em discursos públicos”, ponderou Diva Santana, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia.

Os primeiros passos já foram dados. Inicialmente, Bolsonaro retirou a comissão do guarda-chuva do Ministério da Justiça e o transferiu ainda em 2019 para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Assim, a deixou sob o comando da representante da ala ideológica do Governo, a pastora e advogada Damares Alves. Esse colegiado tem caráter consultivo e a decisão final sobre quem deve receber ou não reparações financeiras cabe à ministra.

Como um de seus primeiros atos, Damares decidiu que entre os 27 membros da comissão, sete seriam militares ou teriam algum vínculo direto com a família Bolsonaro. Dentre eles, o atual presidente da comissão, o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, que já assessorou Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) quando ele era deputado estadual no Rio e atualmente é assessor-chefe adjunto no gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB). Também já advogou para o presidente Bolsonaro.

Em sua atuação independente da família Bolsonaro, Freitas foi o autor de pedidos polêmicos envolvendo anistiados. Foi ele quem pediu e conseguiu na Justiça por meio de uma ação popular a suspensão do pagamento da pensão à viúva do guerrilheiro de esquerda e antirregime militar Carlos Lamarca (1937-1971), assim como a do veto às reparações dadas a 44 camponeses, torturados na Guerrilha do Araguaia (1967-1974). Procurado pela reportagem, ele não se manifestou. Tampouco o fez o ministério, apesar de ter pedido mais tempo para levantar os dados solicitados.

“Em nenhum momento a atual comissão admite que houve ditadura. Nas composições anteriores não era assim. Havia divergência entre os conselheiros, mas até mesmo quem era militar reconhecia o regime de exceção”, disse a professora Stutz e Almeida, que no último dia 31 lançou o livro “Justiça de Transição e Democracia”, obra que também aborda a anistia.

Desde o início da Gestão Bolsonaro, a ministra Damares Alves assinou 3.572 portarias que tratam de anistiados. Ela indeferiu o pedido de 2.402 (65%) requerentes, deferiu 363 (1,3%) e anulou 807 (33%) anistias que já haviam sido concedidas em outros Governos. As anulações são os que mais preocupam os ativistas. Vários dos atingidos por ela são idosos, com mais de 75 anos, que, muitas vezes tem como sua principal fonte e renda as prestações mensais que recebem da União — os valores são bastante variáveis, a reportagem identificou pagamentos de 135 reais até 22.000 reais. “Vivemos um momento de perdas de direitos. Primeiro foram os trabalhistas, depois os previdenciários, agora nem a memória é respeitada”, diz o advogado Humberto Falrene, que atua em casos envolvendo anistiados.

Bolsonaro enfrenta a maldição do terceiro ano

E Jair Bolsonaro acaba de topar com o primeiro obstáculo realmente relevante no caminho para concluir seu mandato e tentar um novo: a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19. Ou melhor, a CPI sobre as ações federais na Covid-19. Tem sido rotina nos terceiros anos dos quadriênios presidenciais. É quando invariavelmente aparece alguma barreira que vai demandar esforço e concentração redobrados, se o mandatário não quiser ficar pelo caminho.

Em 1992, Fernando Collor topou com as acusações do irmão. Elas desencadearam a CPI que acabou levando ao impeachment. Fernando Henrique Cardoso teve esse tipo de problema nos dois terceiros anos de seus dois mandatos. Acusação de compra de votos para a reeleição em 1997 e ameaça de uma CPI da Corrupção em 2001. Luiz Inácio Lula da Silva recebeu pela proa os torpedos de Roberto Jefferson em 2005. E Dilma viu em 2013 a emergência das “jornadas de junho”.

Que deram a largada para a deposição dela em 2016. Nem a reeleição em 2014 interrompeu o processo.


Deve ter algo de coincidência, mas é prudente não desprezar a possibilidade de o ano imediatamente anterior às eleições presidenciais despertar os instintos mais primitivos dos políticos. No caso atual, Bolsonaro cuidou bastante bem de estreitar a porteira para acusações de corrupção, habitualmente usadas nessas ocasiões. Mas não teve o mesmo cuidado para reduzir a margem de manobra dos adversários no assunto da pandemia.

Na Covid-19, o presidente foi dobrando a aposta a cada rodada. Poderia ter ficado contra o isolamento social, mas a favor do afastamento. Ou contra o afastamento e compensar isso apresentando-se como radical defensor das vacinas. Mas preferiu a crítica a tudo, com exceção do tratamento medicamentoso já aos primeiros sintomas. Que está sob fogo cerrado da maioria da comunidade médica. Ainda que uma parte relevante apoie a linha de Bolsonaro.

Recentemente, reposicionou-se no assunto vacinal, mas continua carregando com ele um evidente déficit de imagem no tema.

A aposta de Bolsonaro parece ter se baseado na premissa de que teríamos uma onda da epidemia aqui no Brasil, e quando ela entrasse na descendente a preocupação das pessoas com a própria situação econômica prevaleceria, e aí o presidente colheria os frutos de ter desde o começo advertido sobre o risco de ruína material dos indivíduos, das famílias e das empresas. Por causa do que sempre atacou como radicalismo no isolamento social.

Essa linha de ação e comunicação pagou-se em algum grau, tanto que Bolsonaro mantém um núcleo resistente de apoiadores em torno de 30%. Mas, na medida em que a primeira onda não foi a única, e quando a segunda apresenta picos de mortalidade várias vezes a da anterior, o medo e a angústia com a doença continuam dominantes. E agravaram-se. E o presidente está evidentemente ilhado no núcleo fiel. Este é forte, mas minoritário.

É a situação clássica propícia para a ofensiva adversária. Uns escaparam (FHC, Lula), outros naufragaram (Collor, Dilma). O tucano safou-se na primeira vez porque o povão achava que a economia ia bem, e na segunda porque tinha base parlamentar, e ninguém queria a sério interromper seu mandato. O petista sobreviveu porque era popular e porque os inimigos ficaram com receio de uma guerra aberta de rua contra ele.

Veremos nas próximas semanas e meses que variáveis dessas vão prevalecer agora para Jair Bolsonaro.

A praga do caudilhismo

No final dos anos 1980, em viagem pelas cidades barrocas de Minas Gerais, cheguei à Igreja de São Francisco de Assis, em São João Del-Rei, cujo projeto original é de Aleijadinho. Depois de contemplar o interior e o traçado do templo, já na saída, um guardião me interpelou. Eu tinha esquecido de visitar o túmulo de Tancredo Neves. Por delicadeza, me deixei levar ao “locus sacratus”. E ouvi do meu guia acidental que, morto, Tancredo fazia milagres. A morte dele tinha criado, de fato, uma comoção nacional, com a manifestação de grande devoção a uma pessoa que já pertencia ao plano hagiográfico.

O caso de Tancredo não é isolado, antes reflete um padrão que conduz as escolhas políticas no Brasil. Entre nós, atua a lógica do caudilho. O caudilho é um líder que se confunde, entre os seus, com a figura acima do bem e do mal, que cria um exército de seguidores que dão a sustentação a um desejo de refundar o país. Na história curta da República, quando a democracia pôde ser exercida, houve recorrentes líderes com tais traços.

Só isso explica que Getúlio Vargas, depois de ter mudado o curso sucessório com um exército paralelo sob seu comando, em 1930, exercendo o poder ditatorial até 1945, retorne pelo voto livre em 1951. Ele já não pertencia à própria biografia, pois havia sido santificado. Tanto que seu suicídio faz parte da consolidação do mártir. É da natureza do caudilho criar esta crença no seu poder messiânico. Com mais ou com menos elementos caudilhescos, muitos presidentes do Brasil podem ser aproximados a esta categoria. Jânio Quadros, um pernóstico professor de português, se encaixa nela, tendo chegado à presidência com um apelo populista de saneador político, não conseguindo, no entanto, se sustentar. Outro exemplo bem–acabado deste perfil precário foi Fernando Collor de Mello, “o caçador de marajás”, um então jovem bem-apessoado que se elegeu como uma espécie de He-Man nacional, fazendo-se confundir com um super-herói que tiraria o paísda mão dos predadores. Collor se aproximou de Frei Damião, um frade italiano (hoje em processo de beatificação) radicado no Nordeste, tentando colar sua imagem à dele. Não foi muito diferente o caminho do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que também construiu uma imagem de pai dos pobres, focando as classes sociais mais sofridas do país, que sempre tiveram restrições de direito, e constituindo uma militância com conexões internacionais.


Mas foi o presidente Jair Bolsonaro que mais se valeu desta estrutura caudilhesca para criar um legião de seguidores, agora unida virtualmente e promovendo compartilhamentos viralizantes de materiais de toda natureza na internet,principalmente no whatsApp, que é um rede secreta, propondo-o como o “o salvador da pátria”, título aliás de uma novela da Rede Globo de 1989 sobre a figura do líder escolhido diretamente pelo povo – não por acaso, em 1990, Collor seria eleito. Outras personalidades guardam uma construção similar, sem terem chegado à presidência. Um Luiz Carlos Prestes, eleito por Jorge Amado como “o cavaleiro da esperança”, pelas ações da coluna paramilitar que ele comandava. Ou mesmo um Antônio Carlos Magalhães, tratado na Bahia como milagreiro, o que levava as pessoas humildes a quererem tocar em “seo Antônio”.

Faz parte da dinâmica eleitoral brasileira a busca do assinalado, que vai nos tirar de um estado de sofrimento. Uma das matrizes desta crença está traduzida na figura de Antônio Conselheiro, que se opõe à República e cria um país alternativo em Canudos, atraindo milhares de discípulos a um regime religioso de gestão.Canudos viria de uma tradição judaica da terra prometida aos excluídos e estava baseada em uma proposta de volta “à idade de ouro dos apóstolos”, “revivendo vetustas ilusões”, nas palavras de Euclides da Cunha. Esta força mística também vai criar um exército santo em torno dos monges na Guerra do Contestado, no sul do Brasil.

A pergunta a se fazer é: de onde vem este modelo? Tudo indica que nosso imaginário, enquanto nação, reflete o sebastianismo, muito difundido ao longo dos séculos nos meios populares brasileiros. O desaparecimento do rei Dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, criou o mito de que ele voltaria com um exército mágico para tirar Portugal da crise e conduzir a pátria a um novo momento de grandeza: “louco, sim, louco, porque quis grandeza”, segundo um verso de Fernando Pessoa. Estaremos sempre esperando um político que fará este papel?

A democracia, para ser forte e duradoura, deve ser a construção de um projeto coletivo de país que garanta a igualdade de acesso às oportunidades, acima dos populismos demagógicos e das promessas de milagres econômicos e sociais que acabam sempre em farsa ou tragédia.