sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Risco Brasil


A celebrada nova fase do Parlamento era de vidro e se quebrou

A desmoralização do Congresso Nacional foi fruto de um trabalho árduo de suas excelências por décadas a fio de submissão aos mandos do Palácio do Planalto e de obediência militante aos desmandos cometidos em causa própria. Uma obra assim não se desfaz num repente. Tanto é que as pesquisas recentes não apontam melhoria na imagem do Parlamento, a despeito da mudança de comportamento no início da atual legislatura.

Sábia, a opinião pública preferiu aguardar o caminhar da carruagem antes de acreditar numa efetiva correção de rumos. O que parecia uma nova fase revelou-se como mera encenação, encerrada assim que a Câmara aprovou a reforma da Previdência, passando a bola ao referendo do Senado. Pelo visto, com o intuito de dar por enterrado o ativismo congressual em prol de uma agenda voltada para a sociedade, de curta duração.


Já no início do segundo semestre, o Parlamento retomou a velha prática de se ocupar primordialmente dos interesses internos, e o fez com uma sede dos desertos. Em dois meses, os congressistas aprovaram uma lei que, a pretexto de coibir abusos por parte de autoridades, pretende inibir a ação dos que têm como função justamente atuar contra condutas abusivas à lei, coisa que no auge do prestígio da Operação Lava-Jato não conseguiram.

Eles voltaram ao antigo hábito de usar de suas prerrogativas para mandar “recados” aos outros dois poderes, retaliá-los quando contrariados e exigir contrapartidas do Executivo e do Judiciário. No primeiro caso, a liberação de emendas ao Orçamento em troca de votos: o Senado pede 5 bilhões de reais e a Câmara, 3 bilhões. No segundo, a reação contra o Supremo Tribunal Federal por causa de uma ordem de busca e apreensão no gabinete do senador Fernando Bezerra autorizada pelo ministro Luís Roberto Barroso, em nome da qual foi adiada a votação da reforma da Previdência, pois os senadores consideraram prioritária sua pauta corporativista.

Ainda no rumo do retrocesso, suas majestades aprovaram alterações na legislação eleitoral que, entre outros disparates, praticamente revogam a lei da Ficha Limpa ao permitir registros de candidaturas sem o crivo de legalidade imposto pelo Tribunal Superior Eleitoral. De passagem, deputados e senadores reivindicam que o caixa público coloque à disposição das campanhas quase 5 bilhões de reais, montante equivalente à soma do dinheiro do fundo partidário (mais de 950 milhões de reais) aos 3,7 bilhões pretendidos para o fundo eleitoral.

Tudo isso com o beneplácito de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia. Agora despidos do figurino de estadistas, parecem mesmo empenhados em cultivar o eleitorado, uma vez que a partir do próximo ano tratarão abertamente de um tema já articulado nos bastidores e do interesse de ambos: a reeleição para a presidência do Senado e a da Câmara.

Pela Constituição, nenhum dos dois pode se candidatar, pois é vedada a recondução aos cargos dentro de um mesmo mandato. E é na tentativa de amealhar apoios para a aprovação de uma emenda liderando a reeleição que se revela quanto o uso excessivo do cachimbo deixa as bocas tortas.

Lá como cá

Em seu discurso na ONU, Bolsonaro foi ele mesmo. Em tom quase belicoso confirmou, com orgulho, os desacertos das suas políticas internas e externas. Mais um constrangimento que se junta à lista que marca sua presidência. A lista é longa e ampla nos temas, do desrespeito aos direitos humanos à negação da ciência, o festival é assustador. A começar pelo pouco apreço à vida dos seus “inimigos” – dos esquerdistas aos presos comuns –, refletido nas suas homenagens a ditadores e torturadores, e o aplauso à degola em presídios.



Bolsonaro transforma em inimigos todos que divergem de suas convicções. Há limitação à liberdade de expressão, abandono do compromisso com um estado laico e demonização da mídia, nacional e internacional. Revela enorme preconceito com sua obsessão com homossexualidade e questões de gênero. Na cultura, ele ignora artistas reconhecidos, como fez com o prêmio Camões dado a Chico Buarque, ou na indiferença com a morte de João Gilberto. Como o exemplo vem de cima, o diretor da Funarte se sentiu à vontade para ofender Fernanda Montenegro. Na sua visão, os comunistas estão por todos os lados, crescendo de forma inversamente proporcional à piora da avaliação do governo.

O presidente vai radicalizando no discurso autoritário, se recolhendo ao grupo que, quase religiosamente, ainda o apoia. Aos amigos, tudo. Cargos são distribuídos sem critério além da fidelidade absoluta, gerando o que se vê na condução dos Ministérios da Educação, Relações Exteriores e Meio Ambiente. Para a família não há limites. A ocupação do governo com pautas pessoais é evidente. A intervenção nos órgãos de fiscalização, como Coaf, Receita e PGR, ou a tentativa de afastar o diretor-geral da Polícia Federal, foram feitas quando tais instituições chegaram próximas dos seus. Não enrubesceu ao indicar o filho como embaixador, apesar do seu despreparo, confirmado pelas rotineiras postagens nas redes sociais.

O terraplanismo domina ações públicas implementadas com base em achismos. Bolsonaro acaba, numa canetada, com anos de experiência acumulada em diversas áreas, como o uso da cadeirinha para crianças nos carros e os ataques ao Inpe. E o Brasil vai virando piada, isolado e retirado dos debates mais relevantes na economia mundial, do acordo UE-Mercosul à Cúpula do Clima na ONU. Seu discurso reforçou esse caminho.

O obscurantismo das ideias do presidente poderia ser apenas tema de paródias, se ele fosse uma rainha da Inglaterra. O tratamento dispensado a quem dele discorda é grave. Ameaças explícitas ou veladas levam à autocensura em diversas instituições, consequência do um instinto de preservação, ou covardia, de alguns funcionários públicos. Ninguém escapa, nem mesmo o alto escalão ministerial, como mostra a passividade dos ministros Moro e Guedes às intervenções nas suas áreas. Essa censura silenciosa que afeta a Receita Federal ou a cultura, em tão pouco tempo de governo, é um retrocesso democrático claro. Calar a divergência, a crítica, o debate é o caminho para o autoritarismo.

Há quem ainda argumente que uma suposta agenda econômica liberal compense tudo isso. Esse discurso não faz sentido algum. A economia vai mal, com crescimento medíocre e desemprego elevado. O Executivo está confuso e inoperante. A reforma da Previdência só andou porque a Câmara assumiu o protagonismo, como vem fazendo com a reforma tributária.

A abertura comercial não veio e se resume a concessões de ex-tarifários, regime em que a redução de tarifas se aplica a bens sem produção nacional, e é continuidade de uma política que até Dilma praticava. A privatização não existe para além do anúncio de uma lista tímida de empresas. A reforma do Estado até o momento é um conjunto de ideias colocadas de forma desorganizada na mídia. O novo pacto federativo é um mistério a ser desvendado.

Tendo entregue bem menos do que prometeu, nem mesmo Guedes está protegido dos humores de Bolsonaro, que anda impaciente com a falta de recursos para investir. Foi obrigado a demitir Marcos Cintra por conta da CPMF, tributo de seu gosto e que, aliás, continua defendendo. As promessas já não encontram o mesmo eco na sociedade. Como o menino pastor que gritava lobo, a credibilidade vai sendo perdida.

Ainda que a economia estivesse indo de vento em popa, e uma agenda verdadeiramente liberal estivesse em curso, nada justifica ignorar os arroubos autoritários de Bolsonaro. Sem democracia não há liberalismo, que é muito mais que uma receita econômica. Não existe a separação entre economia e o resto. O chamado milagre econômico dos anos militares, que terminou com hiperinflação e a pior distribuição de renda do mundo, não apaga as monstruosidades cometidas, nem justifica o AI-5, como querem alguns.

Tudo como antes, no quartel

O Brasil vivia um clima de terror. Para o qual está se encaminhando eu acho agora. O Brasil está totalmente polarizado e eu acho que as coisas infelizmente estão caminhando para o mesmo clima de terror. Você já não diz o que pensa. Nem na família. Não é porque vão te prender, torturar ou bater. É porque as pessoas perderam completamente a capacidade de diálogo. Ou você é a favor, ou é contra. Não existe conversa. E a mesma coisa naquela época
Paulo Coelho 

Fardas encharcadas de sangue

Ao mesmo tempo em que justificou o silêncio de Jair Bolsonaro a respeito do assassinato da menina Ágatha, de 8 anos, no Rio, porque "isso aí é um problema do governador" e o presidente não pode ficar "se intrometendo" em questões dos Estados, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, resolveu se intrometer na questão. E para quê?

Para lamentar com palavras fortes a morte à bala da sexta criança somente este ano no Rio? Não. Para prestar solidariedade sincera à família? Também não. Para cobrar uma investigação rigorosa do episódio? Outra vez não. O general intrometeu-se para pôr em dúvida o depoimento do motorista da Kombi escolar que transportava a menina quando ela foi atingida por um tiro de fuzil.

O motorista disse que não havia no local da morte tiroteio entre policiais e bandidos. Mas disse também que havia um policial, e que ele atirou em um motoqueiro, e que foi esse disparo que matou Ágatha. O general afirmou que o depoimento do motorista “não é necessariamente verdadeiro”. Que ele não pode ter certeza sobre o que disse por que “essas coisas são complicadas”.


E em seguida explicou: “Você está dirigindo uma viatura, toma um tiro por trás, e já sabe quem foi? Complicado. A tendência, quando você toma um tiro em um veículo em que você está, a primeira coisa é se abaixar, entrar até de baixo do banco. Essas coisas são complicadas”. Heleno lembrou que a polícia concluiu que será impossível saber de que arma saiu a bala assassina.

O caso de Ágatha havia sido comentado antes pelo general Hamilton Mourão, então no exercício da presidência da República, enquanto Bolsonaro, na ONU, vociferava contra países europeus, as ditaduras da Venezuela e de Cuba, a “imprensa sensacionalista” e o cacique Raoni chamado por ele de “peça de manobra". De quem? Ora, da esquerda.

Na última segunda-feira, quando o corpo de Ágatha ainda estava sendo velado, Mourão levantou a hipótese de que familiares da menina poderiam ter sido pressionados por traficantes a negar a existência de confronto entre policiais e bandidos na hora e no local em que ela foi morta. Por que o empenho dos dois generais em livrar policiais da suspeita de terem matado Ágatha?

Por que tamanha falta de empatia com pessoas que sofrem com a morte de mais um inocente? Seria uma questão de farda? De corporativismo militar? De pouco caso com a aplicação da lei quando ela pode atingir a companheirada? O coração dessa gente bate num compasso diferente dos corações comovidos com mais uma tragédia destinada a ficar impune?

Antes de ser alvo de ataques de Carlos Bolsonaro, Mourão era tido como a voz da sensatez dentro do governo. Depois deu meia volta volver e passou a falar só o que agrada ao capitão. Ficou manso como um cordeiro de desfile militar. De Heleno, admita-se que é coerente com o que sempre pensou. Esvaziado de poderes, virou um acompanhante de luxo de Bolsonaro.
Ricardo Noblat 

Pensamento do Dia


Essa tal 'ideologia'

Há 40 anos a palavra “ideologia” estava na moda no Brasil. Em 1980 um pequenino livro de bolso, O que é Ideologia, projetou a coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, para a estante rarefeita dos best-sellers brasileiros. Com um texto iluminado e iluminador da filósofa Marilena Chaui, o livrinho rapidamente ultrapassou a casa dos 100 mil exemplares vendidos, ensinando os fundamentos de um conceito labiríntico e vibrante que, naqueles tempos, encantava as plateias.

Foram tempos difíceis (como todos são) e bons (como é raro que sejam os tempos). O Brasil livrava-se aos poucos da ditadura militar e a filosofia era sucesso em bancas de jornais. Quem não tem em casa um volume que seja da coleção Os Pensadores, da Abril Cultural? Eram milhões de leitores curiosos, sedentos. Mas nem todos os brasileiros eram assim. Alguns, é verdade, não eram curiosos nem sedentos – nem leitores eram. Jair Bolsonaro, por exemplo. Teria sido melhor para o Brasil se ele se tivesse dado ao trabalho de ler algumas das 120 páginas de O que é Ideologia. Teria sido melhor, mas a história não quis assim.

Na época, o jovem militar estava mais empenhado em tumultuar a disciplina dos quartéis, reclamar do soldo e trocar a farda por um mandato parlamentar. Seu projeto era adorar o regime que se esboroava e se profissionalizar como propagandista dos torturadores que, nos anos seguintes, seriam aposentados pela democracia. Ele queria (sem saber que queria) se petrificar num esbirro ideológico, mesmo sem ter ideia do que a palavra “ideologia” pode querer dizer (ou esconder).


Eis então que, hoje, quando a palavra já havia caído em desuso, o cidadão que não sabe o que é ideologia se tornou presidente do Brasil e deu de sair por aqui (e depois por aí afora) matraqueando a respeito. A julgar pelos discursos que lê (com certo esforço, para não tropeçar nas sílabas e não errar a entonação), os escribas que o cercam padecem do mesmo déficit cultural, político e humanista. Para eles, “ideologia” é xingamento. “Ideologia” é estritamente um sinônimo chulo de mentira. (Nisso, aliás, é bom que alguém os avise, eles se parecem com marxistas de orelhada: acham que a ideologia é uma “falsa consciência”, e nada mais. Para eles, só há uma consciência verdadeira: a deles mesmos. Tudo o mais são “falsas consciências”. Tudo o mais é ideologia.)

O pronunciamento empertigado que o presidente da República gritou na abertura da 74.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, na terça-feira, foi, sem força de expressão, uma espalhafatosa première mundial da campanha que suas tropas virtuais movem contra o substantivo feminino que tanto as ouriça. Por obra dessas tropas, a palavra “ideologia” acaba de voltar à moda. O discurso do presumido líder brasileiro repete cinco vezes o tal substantivo feminino, sem contar as duas vezes em que recorre à sua versão adjetivada (ideológico). Em todas essas passagens, o sentido atribuído ao vocábulo (substantivo ou adjetivo) é o de “mentira”. Em todas essas passagens a “mentira” vem associada à esquerda, ao socialismo ou a forças que conspurcam a “família”.

Aí a gente se pergunta: ora, mas se a ideologia é a mentira, o que será a verdade na fala bolsonárica? Elementar: quando fala em “verdade”, o orador em Nova York invoca o Novo Testamento, texto considerado sagrado pelos cristãos. Isso significa que, na perspectiva presidencial, budistas, hinduístas, xintoístas, muçulmanos e ateus, que, entre tantos, integram as Nações Unidas, não terão acesso à “verdade”, uma vez que ela só se revelará aos povos que se ajoelharem diante do Evangelho de São João, nominalmente citado no discurso. Logo, exceção feita à Bíblia, os outros livros são pura ideologia.

Poucas vezes um documento de credenciais autoritárias tão escancaradas foi lido numa assembleia da ONU: a verdade sou eu, a verdade é a direita, a verdade é o meu Deus, e toda dissidência será combatida por mim como apostasia, vício, mentira e ameaça. E tome cusparadas verbais nas outras nações. Em matéria de intolerância e autoritarismo, a implicância com a “ideologia” desponta como a barbaridade mais significativa no discurso a que não faltam barbarismos.

É espantoso como um egocentrismo tão pedestre possa ordenar a fala de um governante que se dirige aos seus pares. Bolsonaro não manifestou, na ONU, a mínima abertura para a possibilidade de pertinência equivalente em outros pontos de vista. Em sua integralidade, seu discurso repele o exercício do diálogo. Em lugar de dialogar, prefere afirmar-se como um sistema sígnico autossuficiente, que nada tem a aprender com quem quer que seja e por isso reclama a todo instante uma obsessiva “soberania” sobre si mesmo.

Há um quê de insanidade nisso. O mesmo orador que diz que as lideranças indígenas (todas, no caso) não podem falar em nome das tribos, crê piamente que fala sozinho em nome do Brasil inteiro. Seu egocentrismo infantil faz dele o centro de gravidade do normal – tudo o mais é distorção (ideológica). Parece inacreditável. Como pode um habitante do planeta Terra, a esta altura, acreditar numa coisa dessas? E como pode um governante afrontar os seus iguais com disparates desse naipe?

Os escribas bolsonáricos, além de desconhecerem a diferença entre ideário e ideologia (acham, ainda, que a ideologia é um pacote de convicções equivocadas, assim como acham que ideologia só existe nos outros), desconhecem também que a ideologia é inseparável da linguagem. Toda palavra é ideológica (é signo ideológico, como enxergou Bakhtin), pois toda palavra fabrica uma realidade substituta para aquela que não poderíamos tocar, ver ou ouvir se não fosse a linguagem. Só manejamos o que chamamos de realidade por meio da linguagem.

Ninguém poderia falar sem que a ideologia o socorresse com o cimento para colar o significante ao significado. Ninguém fala sem falar a ideologia. Ninguém, só Jair Bolsonaro (e, pior pra nós, na frente do mundo inteiro).

Sem cumprir promessas, Bolsonaro se radicaliza

O governo Jair Bolsonaro entrou no modo da radicalização. É o que sempre acontece nos regimes autoritários quando as suas promessas se revelam vazias e a desilusão se espalha. É um momento perigoso.

A maioria dos brasileiros que votou em Bolsonaro, em 2018, o fez por três razões: eles esperavam uma melhoria da situação econômica, o fim da corrupção endêmica e acreditavam que Bolsonaro podia acabar com o crime e a violência.

Naturalmente o extremista de direita também foi eleito por gente que apoia sua agenda social reacionária: fundamentalistas evangélicos, racistas, homófobos e fãs da ditadura. Mas, felizmente, só com eles não se ganha uma eleição no Brasil.


Muitos eleitores de Bolsonaro estão frustrados, agora. A pesquisa mais recente da Datafolha mostra que apenas 29% dos brasileiros ainda o apoiam, mas quase 40% o rejeitam. É a pior avaliação de um chefe de Estado brasileiro no primeiro mandato, desde FHC. Se as eleições fossem realizadas hoje, ele provavelmente não seria reeleito, tendo um adversário convincente.

Os dados falam por si. A economia brasileira não sai do lugar: seu ritmo de crescimento é fraco, sem perspectiva de melhora significativa dos níveis de produção, investimentos e emprego. Cerca de 12 milhões de brasileiros ainda estão desempregados, e o real está mais fraco do que nunca, a 4,15 dólares.

Isso deveria incentivar os turistas estrangeiros a visitarem o Brasil, mas, na verdade, o número de visitantes diminuiu 5%. O que a maioria das pessoas no exterior sabe sobre Bolsonaro é que ele odeia minorias, é um homem agressivo e quer desmatar a Floresta Amazônica. Isso tem um impacto nas decisões de viagem de muita gente e também nas decisões de investimento.

Bolsonaro queria combater a corrupção, mas, na realidade, enfraqueceu as investigações de corrupção. Há ministros corruptos em seu gabinete, e pelo menos um de seus filhos é suspeito de corrupção. E quanto ao crime? No Brasil de Bolsonaro, aumenta a violência contra mulheres, LGBT, povos indígenas, ativistas de direitos humanos e ambientalistas.

A violência policial contra os negros também está crescendo, o assassinato de Ágatha, de oito anos, no Rio de Janeiro, é um símbolo disso. No estado do Rio, o número de mortos por policiais aumentou 16% este ano. Acho difícil explicar isso no exterior. Então, sempre digo: o Brasil é um país violento há 500 anos. Ele nunca superou a escravatura e nunca lidou com a ditadura. E a consequência é um presidente que prega a violência.

Tampouco é de admirar que Bolsonaro tenha liberalizado a legislação sobre armas de fogo. Efeito: entre janeiro e agosto, 37,3 mil revólveres e pistolas já foram importados pelo Brasil, um novo recorde. Isso pode parecer normal para os brasileiros agora, porém, de fora, é escandaloso e amedrontador. Foi provado mais uma vez que mais armas levarão a mais violência.

Bolsonaro não está cumprindo suas promessas. Para desviar a atenção desse fato, o governo está radicalizando sua retórica. O discurso de Bolsonaro na ONU mostrou isso claramente e foi um bom exemplo do mundo paralelo e esquizofrênico em que vive o presidente da República.

Primeiro, ele agradeceu a Deus por sua vida. Depois, afirmou ter salvo a América do Sul do socialismo, voltou a acusar os europeus de colonialismo e insinuou que os incêndios na Amazônia eram uma fantasia dos meios de comunicação. Ele nada disse sobre as alterações climáticas, o tema atual e urgente que o mundo enfrenta.

Bolsonaro precisa de bodes expiatórios (como os "socialistas"). Ele também é muito eficiente em desviar a atenção pública dos problemas reais para temas marginais e até inexistentes. Essa é a marca distintiva de qualquer regime totalitário. No meio tempo, todos que não estão 100% em linha com Bolsonaro são tachados de "comunistas" – até os próprios apoiadores.

Ele e seus apoiadores atacam a mídia – apesar de ela ter sido fundamental no golpe contra a presidente Dilma, e para colocar o ex-presidente Lula atrás das grades. Atacam cientistas que não produzem os resultados desejados; estão reduzindo verbas para agências governamentais como o Ibama e a Funai e colocando seus agentes em risco. Eles também espionam jornalistas estrangeiros, como vivenciou recentemente um colega alemão na Bacia Amazônica.

O governo está se tornando cada vez mais extremista em sua linguagem e métodos. O ministro da Justiça, Sergio Moro, quer praticamente legalizar as execuções extrajudiciais pela polícia. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, convida garimpeiros ilegais do Pará para conversas no Planalto.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma que a primeira-dama da França é "feia mesmo". O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, outro reacionário na linha bolsonarista, praticamente afirmou que a vida de moradores de favela não vale nada, podem ser mortos pelos agentes estatais, sem consequências.

Os brasileiros devem sempre deixar claro para si mesmos por quem são governados e que nada disso é normal. Gustavo Bebianno, ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência disse sobre Bolsonaro: "É uma pessoa louca, um perigo para o Brasil". E acrescenta: "Ele puxou para perto de si uma entourage muito ruim, que o acompanhou durante alguns anos, pessoas muito incultas e agressivas".

Bolsonaro voltou de Nova Iorque nesta semana. Infelizmente, o Brasil terá que lidar com esses demônios do passado por mais três anos, em vez de se voltar para o futuro.
Philipp Lichterbeck

A era da ira

Quem acredita que com FH, Lula, Dilma, e até Temer, o Brasil esteve à beira do socialismo, como disse Bolsonaro na ONU, ou não sabe o que é socialismo ou não sabe o que é Brasil. Para ele, socialismo, comunismo, é tudo a mesma merda: vermelho é vermelho, pô. Ele é verde e amarelo. Verde-oliva.


Como os soldados japoneses que ficaram perdidos na selva e só foram resgatados 20 anos depois do fim da Segunda Guerra, Bolsonaro ressurge das brumas da Guerra Fria vendo comunistas e conspirações contra ele e sua família em toda parte. Fala com a certeza de que ninguém na Assembleia Geral da ONU leu jornais, ouviu rádio, viu televisão e navegou na internet nos últimos 50 anos.

Chegou a ser covardia tripudiar sobre a devastada Venezuela e a alquebrada Cuba como exemplos do fracasso do comunismo, e covardia maior não mencionar a terrivelmente comunista China e seu espetacular sucesso internacional, nossa querida maior parceira comercial. Talvez a China seja a síntese do melhor do comunismo e do capitalismo, enquanto o Brasil parece sempre adotar a pior parte do socialismo estatizante e do capitalismo liberal mamador no Estado. Questão de gestão.

A melhor parte do progresso do Ocidente não veio pela colonização, mas pelo comércio internacional e o trânsito de ideias. Substituir o internacionalismo pelo patriotismo provinciano estimula competições e guerras e implanta a era do cada um por si e todos contra todos, sob a lei do mais forte.

No Brasil, nunca o “nós contra eles” foi tão exacerbado, e nefasto, num momento em que um terço da população adora Bolsonaro, um terço detesta, e um terço não gosta nem desgosta. Nesse equilíbrio precário, que pode mudar rapidamente, todo mundo depende de todo mundo, e nenhuma oposição pode fazer nada sozinha. Talvez por isso não faça nada.

Como vocês se atrevem?

De forma deliberada, com método, Jair Bolsonaro mostrou, na abertura da Assembleia Geral da ONU, que é capaz de tudo. A Amazônia queimou diante do mundo e o presidente contra o Brasil diz ao planeta: “Nossa Amazônia permanece praticamente intocada”. E sua mentira é traduzida para todas as línguas. Depois, ele cita um versículo da Bíblia: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Bolsonaro goza com poder dizer qualquer coisa num palanque global. É assim que ele defeca pela boca, sim, mas defeca sobre a ONU. Não está ali desqualificando a si mesmo, mas todos os outros obrigados a escutá-lo mentindo como quem respira. Não está ali demonstrando sua inépcia, mas sim tornando ineptos todos os princípios que a Organização das Nações Unidas representam. Abriu a reunião mais importante do ano defendendo uma ditadura que sequestrou, torturou e executou cidadãos em nome do Estado. Bolsonaro sabia o que fazia, faz e fez o que disse que faria, faz e fez o que foi eleito para fazer. O Brasil não tem poder atômico. É urgente compreender que o país tem, porém, o maior poder que já teve em sua história, que é o poder de destruir a Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que confere poder ao país que, de outro modo, seria periférico. Este é um grande poder em tempos de emergência climática, já que a floresta é essencial para a regulação do clima do planeta. E é isso que Bolsonaro está fazendo, ao cumprir, aceleradamente, a primeira etapa, que é a de desprotegê-la, enquanto prepara o terreno para a seguinte, que é abrir as áreas protegidas para exploração. Este é o alvo de seu ataque contra Raoni, líder indígena que tem percorrido a Europa para denunciar o projeto de extermínio, e também de sua afirmação de que não demarcará mais terras indígenas. Não há modo mais eficaz de desrespeitar uma casa do que dizer, dentro dela, em lugar de honra, que a despreza. Bolsonaro então alcança o clímax: afirma que as chamas que o mundo viu não existiram. A ONU, uma criatura parida pelo mundo do pós-guerra, representante das democracias liberais hoje em crise, não está preparada para lidar com os déspotas eleitos. Não foi Bolsonaro que passou vergonha, foi a ONU. Bolsonaro não tem vergonha.


Nem limites. Se as imagens da floresta em chamas não bastaram para Bolsonaro reconhecer sua dívida com a verdade, tentem imaginar até onde isso pode chegar. E pensem, porque é urgente pensar: como parar alguém que leva a mentira ao nível da perversão, quando as instituições brasileiras fracassam e fracassam e fracassam mais uma vez? O que Bolsonaro fez em 24 de setembro foi uma demonstração de força em nível global. Ele sabe para quem fala —e com quem fala.

Bolsonaro demonstrou na ONU que é um falsificador de passados, ao defender a ditadura assassina como salvadora e sua ascensão ao poder como uma vitória contra um socialismo que nunca houve no Brasil. E anunciou na ONU, ao mentir sobre a Amazônia, que será criador de um futuro hostil. É isso o que acontecerá se não for possível controlar o superaquecimento global. E, sem a floresta em pé, não será possível. O Brasil está nas mãos de um perverso. Mas não é só o Brasil, e sim o planeta que está ameaçado.

É o futuro e a infância que viverá no futuro que o antipresidente do Brasil ameaça. É de infância e futuro que quero tratar aqui. Mostrar como o conceito de infância vem sendo manipulado para destruir as crianças. Quero falar da sueca Greta Thunberg, de 16 anos, e da brasileira Ágatha Félix, de 8 anos. Uma acusou os adultos de hoje de terem roubado a infância da sua geração. A outra teve a infância exterminada à bala, possivelmente uma bala da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Pelas costas, na kombi, quando voltava para casa com a mãe, no Complexo do Alemão.

Desde que despontou para o mundo, numa greve solitária em nome da emergência climática diante do parlamento sueco, em agosto de 2018, Greta Thunberg faz discursos memoráveis. Sua fala na Cúpula do Clima da ONU, em Nova York, onde chegou de barco à vela, foi a melhor. “Vocês vêm até nós, jovens, para pedir esperança. Como vocês se atrevem? Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias. Como vocês se atrevem?”

E segue. “Isso é tão errado”, ela diz. “Eu não deveria estar aqui. Eu deveria estar na minha escola, do outro lado do oceano. E eu sou uma das [crianças, adolescentes] com sorte. Pessoas estão sofrendo, pessoas estão morrendo, ecossistemas inteiros estão em colapso, uma extinção em massa está em curso e tudo o que vocês são capazes de falar é de dinheiro e sobre contos de fadas de crescimento econômico eterno. Como vocês se atrevem?”

São muitas as infâncias. Qual é a de Greta?

Sim, Greta deveria estar na escola. Em vez disso, está liderando greves escolares pelo clima. E por que está? Porque a irresponsabilidade dos governantes e das gerações anteriores obrigou a sua geração a tentar salvar a vida de nossa espécie no planeta em processo de superaquecimento. Não apenas a vida dela, é importante sublinhar, mas a de todos, inclusive a dos adultos. Greta também acerta quando diz que ela é uma das crianças sortudas. Sim, porque Greta nasceu na Suécia, um dos países de melhor qualidade de vida, teve acesso às melhores oportunidades e à melhor educação, tem pais que compreenderam o Asperger como uma diferença —e não como uma deficiência ou doença— e que a escutaram e tiveram condições de apoiá-la quando ela compreendeu a dimensão da catástrofe climática em curso e desejou lutar.

Greta chegou aos 15 anos, idade em que inicia seu movimento global, com os direitos da infância assegurados. É também por ter vivido num país com políticas públicas capazes de garantir direitos que Greta é capaz de enxergar que sua geração está ameaçada. Inteligente, ela percebe a urgência e a aponta. É por isso que afirma que é uma das crianças “sortudas”. A catástrofe climática já começou para as crianças de porções do mundo onde os direitos da infância jamais foram assegurados por políticas públicas.

Greta referia-se às catástrofes, às secas, às enchentes, aos êxodos, aos conflitos que já se iniciaram. Como o jornalista Jonathan Watts apontou no jornal britânico The Guardian, o que vivemos hoje —e viveremos com ainda mais intensidade— é um “apartheid climático”: os que menos colaboraram para o superaquecimento global, os países pobres e as parcelas pobres dos países ricos, são os que primeiro estão pagando, muitas vezes com a vida, pelas consequências da destruição do planeta pelo consumismo desmedido e pelo uso de combustíveis fósseis como petróleo e carvão. São outras infâncias as que estão pagando primeiro pela irresponsabilidade criminosa das gerações que hoje estão no comando. Alguns dizem que Greta teve uma infância privilegiada. Não é verdade. Greta teve uma infância com direitos assegurados —e direitos não são privilégios. Greta usa sua infância vivida num país que assegura os direitos da infância para denunciar a destruição do futuro de todas as infâncias —e denunciar que as infâncias sem direitos já estão sendo destruídas pela ação ou omissão, um tipo terrível de ação, dos adultos responsáveis por tomar medidas públicas para estancar o superaquecimento global.

Também nisso Greta incomoda. Grupos e indivíduos têm colocado em movimento um processo de desqualificação da ativista que conseguiu o que os cientistas do clima tentaram por mais de três décadas sem sucesso: popularizar a emergência climática. Dizem então que Greta é “teleguiada” ou “explorada por seus pais”. Além de expressar sua própria crueldade, o que estes adultos estão dizendo?

Que crianças e adolescentes não têm voz. O silenciamento é uma forma de destruição da infância: dizer que uma criança ou adolescente não pode falar por si mesmo ou, se fala, não sabe o que diz ou está apenas reproduzindo o que seus pais ou outros adultos lhe mandaram dizer. Negar autonomia e capacidade para falar de sua própria experiência é uma violência contra as infâncias. Essa manipulação do que seria a infância —uma época da vida sem direito à voz própria— é de uma precariedade asquerosa.

Essa arma de desqualificação traveste-se de proteção da infância, o que a torna mais abjeta. Primeiro, acusavam Greta de parecer um “robô” quando falava em público. Em seu discurso antológico na Cúpula do Clima da ONU, em 23 de setembro, seu corpo miúdo estava afetado pela urgência e pela indignação. Bastou para adultos, estes mesmos que ela chama de infantilizados, desferirem comentários pretensamente preocupados com as expressões cristalizadas pelas câmeras, supostamente “alarmados” com o excesso de exposição da “pobre” menina “explorada”. Esses adultos saltitantes se acostumaram tanto a postar seus rostinhos sorridentes e photoshopados no “Face” e no “Insta” que se esqueceram da intensidade das expressões humanas.

Até então, Greta era a menina “manipulada” com rostinho de boneca. Em seguida, a garota com o rosto afetado pelo sentimento de indignação, tornou-se a menina “explorada”. Greta não tem vontade própria em nenhum caso, como se vê. Usam então a imagem da infância para atacá-la, a infância como um rostinho bonito, incapaz de sentimentos humanos como indignação ou raiva. Usam uma infância de cartão postal para dizer que ela é uma criança perturbada. Infância só seria infância se servir ao gozo dos adultos, a imagem da criança feliz. Greta também não é perdoada por quebrar essa idealização. A infância feliz inventada por esta época é a infância amordaçada. Só há felicidade absoluta se as crianças forem proibidas de dizer o que sentem.
Chamam Greta de “doente mental” para associá-la aos preconceitos odiosos sofridos por essa parcela da população

É ainda pior do que isso, porém. Como Greta assume e declara ser Asperger, condição do espectro do autismo, começaram a associar fotos com seu rosto distorcido, propositalmente divulgadas, para associá-la aos preconceitos odiosos com a doença mental. Como se sabe, quem tem uma doença mental sofre da mesma violência, a de que não sabe o que diz e por isso não pode ser levado a sério. É onde a infância e a doença mental são colocadas no mesmo lugar simbólico, o de não poder falar. Ou o de falar e não poder ser escutado porque supostamente nem a criança nem a pessoa com doença metal sabem o que dizem. O objetivo de chamar Greta de “doente mental” é, de novo, o objetivo de silenciá-la. E, assim, silenciar o conteúdo do que ela diz. O que incomoda em Greta, como está claro, é este dedo que ela aponta para nós. E que aponta com muita justiça. Então, urgente não é o clima, a extinção em massa de espécies em curso. Urgente é desqualificar a adolescente que conseguiu o que parecia impossível: romper com a paralisia global diante da catástrofe climática.

Greta se afeta. E, por se afetar, inspirou milhões de crianças, adolescentes e também adultos a ocupar as ruas do mundo em nome da emergência climática. Sugiro a estes adultos da sala de jantar, estes “preocupados” com a “superexposição” de Greta, que se preocupem em levantar a bunda do sofá e se mexer. Não estamos mais em tempos de conversas educadas de salão. A Amazônia queimou mesmo, apesar do que o mentiroso patológico que governa o Brasil dizer o contrário.

Sério. Como se atrevem?

Se atrevem porque Greta ameaça interesses poderosos. Como os da indústria de petróleo no mundo, como no Brasil o agronegócio predatório e as corporações transnacionais de mineração que miram a Amazônia. A força do processo de desqualificação de Greta é proporcional à força da sua voz. É exatamente porque ela sabe o que diz e porque fez o mundo escutá-la que se tornou imperativo silenciá-la. Parte deste ataque é extremamente organizada e profissional. Outra parte vem daqueles indivíduos que buscam ganhar fama e seguidores, o que significa dinheiro, tornando-se porta-vozes da direita mais desprezível. Outra parte é levada adiante pelos idiotas inúteis de sempre, relinchando nas redes sociais.

Estas são as infâncias atacadas de Greta. Não é Greta, a adolescente, que é manipulada. São os conceitos de infância que estão sendo manipulados para silenciar sua voz e neutralizar a potência do conteúdo do que ela diz. Os conceitos de infância estão sendo usados contra a criança.

A infância, porém, não é apenas uma. Há várias infâncias. É o que a psicanalista Ilana Katz apontou num programa da CPFL Cultura disponível na internet. Em determinadas condições as crianças não são vistas como crianças. Nos sinais vendendo balas ou fazendo malabares são pedintes. Quando são negras adotadas por pais brancos, como aconteceu no Shopping Higienópolis, em São Paulo, a segurança vem perguntar ao adulto se estão incomodando. São indesejáveis. Se são negras e estão sozinhas nos shoppings são retiradas pelos seguranças e detidas pela polícia porque são bandidas, como o fenômeno dos “Rolezinhos” mostrou. Se são negras e estão diante de lojas de grife, são retiradas porque “sujam” a vitrine, como ocorreu na Oscar Freire, a rua comercial mais rica da capital paulista. Determinadas crianças são decodificadas na paisagem urbana como restos. Determinadas crianças, em geral negras, são inclusive ameaçadoras para outras crianças, as “verdadeiras”, em geral brancas. E há que se proteger a sociedade delas, fechando todos os vidros e erguendo muros ao redor das escolas privadas e dos condomínios.

Essas são as infâncias as quais são negados os direitos legalmente assegurados à infância. Não são apenas silenciadas, são invisibilizadas como crianças, destituídas de si. Ser criança no Brasil, como bem apontou o jornalista Fausto Salvadori, num texto essencial publicado na Ponte Jornalismo, é uma questão de cor. Isso não significa, porém, que as crianças pobres e negras não tenham infância. Afirmar isso seria também uma violência contra elas. O que elas não têm são os direitos assegurados à infância. Negar a elas esses direitos garantidos por lei e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário é crime de Estado. E o Estado deve ser responsabilizado por isso.

E então alcançamos Ágatha. Assassinada. A quinta criança morta no Rio de Janeiro por “bala perdida” apenas neste ano. Antes de uma bala silenciá-la aos 8 anos, uma bala possivelmente disparada por um policial militar, Ágatha teve, sim, infância. Atravessada pela dor, sua família se empenhou muito em mostrar que ela teve a melhor infância que poderiam lhe dar, que ela recebeu seus melhores esforços. “Minha neta faz balé, tem aula de inglês, tem aula de tudo. Ela é estudiosa”, disse o seu avô à imprensa. A violência contra ele contida nesta declaração é o reconhecimento introjetado de que existem infâncias mais matáveis do que a de Ágatha. E a violência contra ele é o reconhecimento de que mesmo com uma infância mais semelhante a das crianças brancas de classe média, “apesar de” ser negra e morar na favela, Ágatha foi tratada como uma das crianças que as balas encontram. Ágatha morreu contra todo os esforços da família de fazer dela uma criança não matável.

Ágatha teve, sim, infância. A importância dada a este fato está na foto escolhida para divulgação, a de uma Ágatha sorridente vestida numa fantasia de Mulher Maravilha. As crianças das favelas brincam, fantasiam, imaginam, fabulam. As favelas e periferias estão entre os lugares do Brasil onde há maior resistência pela imaginação, pela invenção e pela alegria. Não fosse essa enorme força de vida, haveria um suicídio coletivo, dada a violência que o Estado, as milícias compostas por agentes do Estado e o tráfico infligem no cotidiano da população.

O que falta às crianças das favelas e das periferias, como Ágatha, a maioria delas negra, como Ágatha, são os direitos assegurados por lei à infância. É a negação dos direitos que as coloca no lugar de restos, que as coloca no lugar dos matáveis. É a polícia, o braço armado do Estado, que explicita essa condição. Eles sabem quem são as crianças e quais as infâncias que devem ser protegidas. Ou alguém imagina que um policial atiraria contra um carro nos bairros nobres do Leblon ou de Ipanema, correndo o risco de atingir uma criança branca e rica? O policial reflete, ali, na ponta, a ideologia de quem governa, e governa para uma parcela da sociedade que determina quem pode viver. No momento atual, no Rio, o governador contra o Rio, Wilson Witzel. No Brasil, o presidente contra o Brasil, Jair Bolsonaro.

Quando parlamentares e o presidente defendem a redução da maioridade penal, é isso o que estão fazendo: escolhendo qual é a infância que pode ser encarcerada. Quando defendem a política falida de “guerra às drogas”, que só faz aumentar os lucros de muitos de seus financiadores, estão determinando quem são os matáveis. Quando o ministro contra a Justiça, Sergio Moro, envia para o Congresso um projeto que absolve policiais que matarem “sob violenta emoção”, está determinando quem são os matáveis.

A normalização de que há uma categoria de pessoas matáveis, e que no Brasil a maioria delas é negra, é expressada em declarações. “A polícia vai mirar na cabecinha.... e fogo”, já declarou Witzel, logo após ser eleito governador. “Muda essa política de atirar”, clamam os pais de Ágatha. “Parem de nos matar”, reivindicam os moradores das favelas. Como pode existir uma “política de atirar”? Como é necessário que pessoas tenham que pedir ao Estado que parem de matá-las? Que tipo de normalidade é essa?

Quando a sociedade permite ao Estado determinar que há crianças que podem morrer, infâncias as quais podem ser negados todos os direitos, está muito perto do ponto de não retorno. Se o Brasil não estivesse profundamente adoecido, teria parado por Ágatha. Nosso presidente não tem vergonha. Nós também não. Por isso ele é nosso presidente.

Mais uma vez é de Greta e das crianças e adolescentes que lutam pelo clima que vêm o exemplo. Ela e outros 15 jovens ativistas de diferentes países apresentaram nesta semana uma queixa no Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Denunciaram cinco países, entre eles o Brasil, por não fazerem o suficiente para impedir o superaquecimento global. A omissão —ou ação, no caso do Brasil de Bolsonaro— constitui uma violação dos direitos da infância, convenção assinada há 30 anos. Os jovens ativistas exigem que os países tomem medidas urgentes para proteger as crianças dos impactos devastadores da crise climática. “Os líderes mundiais não cumpriram suas promessas”, afirma Greta. “Eles prometeram proteger nossos direitos e não fizeram isso."

Como os adultos não se movem, as crianças e adolescentes estão exigindo dos líderes mundiais que assegurem e protejam os direitos de todas as infâncias. Elas entendem muito bem que é de direitos que se trata. E que é na proteção e na ampliação dos direitos que há alguma chance. Como no Brasil os adultos também parecem incapazes de se mover, talvez seja necessário que as próprias crianças e adolescentes denunciem que a política de Wilson Witzel, em nível estadual, e de Jair Bolsonaro, em nível federal, é genocida. Tragicamente, as crianças brasileiras que têm visto seus colegas de escola serem mortos, muitas vezes pela polícia, vão precisar compreender que não podem contar com os adultos para exigir a proteção de seus direitos. Terão que contar elas mesmas ao mundo que estão sendo executadas pelo Estado, porque há no Brasil uma infância que é matável. As crianças brasileiras estão sós.

Greta Thuberg é tão atacada porque sua mensagem é poderosa —e perigosa para os que querem manter um contingente de matáveis. A emergência climática expõe e amplia as desigualdades sociais e raciais. Os mais pobres são atingidos primeiro. A emergência climática, porém, é uma enormidade sem precedentes também porque atinge a todos. Como explicam as crianças e adolescentes, “não há planeta B”. E, assim, todas as infâncias, inclusive as que têm acesso à maioria dos direitos, se tornam também matáveis e sem direitos, ao perder o direito mais fundamental de todos, que é o de imaginar um futuro onde se queira viver. A falta de políticas públicas globais para conter o superaquecimento global condena a totalidade das crianças a um futuro hostil. E já começa a mudar o conceito de infância que foi construído na modernidade.

Assumindo o protagonismo diante da omissão dos pais, o que Greta Thunberg e os jovens ativistas climáticos estão fazendo é tecer o comum na casa comum. Apontar a causa pela qual todo o planeta deve se unir. Nada mais perigoso para os déspotas eleitos e seus nacionalismos feitos para beneficiar não a nação, mas a própria família. “O futuro pertence aos patriotas, não aos globalistas”, diz Donald Trump. “Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um ‘interesse global’ abstrato”, afirmou Bolsonaro.

O que Bolsonaro foi fazer na ONU foi justamente destruir a possibilidade do comum. E o comum é principalmente a Amazônia.

Estamos em guerra global pela vida da nossa espécie. Como vocês se atrevem a não ter lado?
Eliane Brum