terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Brasil farofeiro

 


Na floresta de pedra

Em Itatiaia, na casa de campo de um amigo, gravei um depoimento para o canal “Acontece nos Livros” (do Youtube), de Whisner Fraga. Minha conversinha fiada e a leitura de uns poemas enfrentaram a concorrência de passarinhos e galinhas, em particular do galo e sua barulhenta forma de querer se impor como dono do terreiro. Seja como for, a trilha sonora aviária foi um simpático complemento a meu pequeno testemunho.


Quando o vídeo foi a público, além de estar longe daquele paraíso, eu adiava minha volta à rua, esperando que a mais nova onda da pandemia regredisse. É um sem-fim essa tormenta. Mas eis que um passarinho começou a piar aqui nas redondezas da verdadeira floresta de pedra que é Botafogo. Não é raro que algum cante. Às vezes, no início da manhã, um grupo de maritacas — com destino ao Aterro, onde promove verdadeiros encontros, com debate, degustação de sementes e voos coreográficos — passa apressado e ruidoso diante da janela do meu quarto. Que liberdade gozam os não molestados pelo vírus. É comum ouvir também o trinado de um bem-te-vi. Digo um bem-te-vi, pois, apesar de nunca o ter visto, sua voz não me engana. Bem, se é único, melhor nomeá-lo. Te batizo, em nome de ninguém, deus ou mortal, de Pafúncio.

A Bia percebeu logo que o tal passarinho não era nem uma das maritacas nem o Pafúncio, e aquele mavioso gorjeio, ininterrupto, não demorou a nos chatear. Esse bichinho não voava, não se juntava aos seus em tertúlias sob árvores? O porteiro esclareceu o mistério: um dos apartamentos havia sido alugado por temporada — pequena, ele garantiu —, e o locatário tinha um trinca-ferro engaiolado. Ó, meu Deus, como é melancólico (e maçante) o pio de pássaros presos.

Uma escritora andou desabafando no Facebook: está cansada do confinamento. Quem não está? Se cantássemos, agora que estamos encarcerados por um vírus que vivia quieto nas florestas chinesas até o homem ir lá e cutucá-lo, seríamos esse trinca-ferro incansável, triste, tedioso e torturado. Ele canta? Não, lamenta.
Alexandre Brandão

A quem interessa a liberdade de expressão irrestrita?

A liberdade de expressão é um valor inegociável, mas é preciso impor limites. Quando a expressão de uma opinião, ou ainda de uma informação falsa, coloca em risco outros direitos, como o direito à vida, é evidente que ela deve ser tolhida. Ninguém pode gritar "fogo!" em um cinema lotado.

A pandemia sublinhou o dilema. Notícias falsas tiraram vidas. Isolamento social, máscara, até vacinas; tudo foi alvo de fake news. Vidas foram perdidas em nome de uma fictícia liberdade de mentir e enganar.

E se aceitamos essa lógica com a pandemia da Covid, é evidente que devemos aplicá-la também a outros perigos. Nem só de Covid morre a humanidade. Machismo, racismo, LGBTfobia, fanatismo religioso, desigualdade social e tantas outras injustiças também matam. Não vamos fazer nada?​

É uma visão ingênua —embora nada inocente— acreditar num debate público idealizado, em que o que importa são argumentos. Na realidade, opiniões refletem os conflitos de poder da sociedade, mal disfarçados por construtos teóricos.


Alguns buscam a igualdade e o bem comum; outros, manter seus interesses e privilégios. Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo. Quando um autor (ou autora) cis questiona se mulheres trans devam ser tratadas como mulheres, isso não é liberdade de expressão, é discurso de ódio.

Esse tipo de questionamento "teórico" é uma ameaça concreta aos mais vulneráveis. Saber que ele existe no interior de algumas mentes retrógradas é odioso. Permitir que seja lido ou ouvido, criminoso. De nada adianta publicar ao lado um artiguinho contrário, que ninguém lerá, para criar um falso equilíbrio. Pessoas são mortas e violentadas nas ruas por causa desse tipo de discurso. Defender a tal liberdade irrestrita é defender que um jornal possa matar e violentar pessoas.

Os bons sentimentos dos magnatas do Vale do Silício e dos barões da velha mídia —que juram combater fake news e extremismo— só vão até a página dois. No momento em que têm que escolher entre verdade e lucro, é óbvio para que lado irão. Trump só foi banido das redes depois de perder a eleição. Joe Rogan segue veiculando seu podcast criminoso no Spotify. Da Folha, então, eu nem saberia por onde começar.

Enquanto reformas de longo prazo da educação não levarem o povo a abandonar seus gurus e charlatães e a seguir apenas intelectuais bem embasados, é preciso que nos resguardemos contra retrocessos. Quando empresas vacilam, o Direito Penal deve ser decisivo: separar o joio do trigo, dizer quem pode e não pode ter espaço nas plataformas e tomar medidas contra as que continuam a dar palco para discursos perigosos.

Poderíamos formar algo como um comitê de notáveis, apenas com referências indiscutíveis das ciências (exatas, biológicas e humanas), com a devida representatividade de todas as minorias sociais, para julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático. É isso ou a barbárie. Aliás, se nada for feito, e rápido, contra aplicativos como o Telegram, Bolsonaro pode até vencer as eleições. Estão vendo aonde leva essa "liberdade"?

Apenas o que defende o bem comum, que luta contra injustiças, que se pauta pelo rigor da ciência, que acompanha a marcha da História, deve ter espaço. Mentira e injustiça não têm espaço numa sociedade democrática. Fora isso, a liberdade de expressão deve ser irrestrita.

Direita não sabe para onde correr

O conservadorismo no Brasil sorriu e soltou fogos entre 2016 e 2018. Assistiu ao impeachment de Dilma e à posse do ministério de Temer. Veio a eleição de 2018 e a esquerda foi derrubada no voto. Lula preso pelo futuro ministro da Justiça, e daí? A direita assumia o poder, ainda que liderada por um ex-capitão chucro, que só tinha espaço nos extintos programas CQC e Luciana Gimenez. O comunismo, seja lá o que isso signifique, estava enfim derrotado.

Passaram pouco mais de cinco anos do impeachment. Eduardo Cunha foi preso, Aécio desapareceu, o PSDB desmanchando nas mãos de Doria, as pedaladas fiscais se tornaram lei. Os personagens do impeachment foram engolidos pelo bolsonarismo e tornaram-se reféns nas eleições de 2018.


Desde que a família de milícias e rachadinhas tomou Brasília, só se ouve o som dos botes deixando o navio. Primeiro por falta de espaço no governo ou “decepções ideológicas”. Veio a pandemia e o negacionismo do presidente ofendeu qualquer cidadão com um mínimo de bom senso. Enfim, em 2021 Bolsonaro consolidou sua volta ao Centrão. O eleitor conservador, bolsonarista de ocasião, sentiu o baque. Sente mais vergonha de defender Bolsonaro do que dizer que seu plano é Prevent Senior por um desconto na farmácia.

Seja com Bolsonaro, Moro, Doria ou Tebet, o que a direita tem a dizer nas próximas eleições presidenciais? O antipetismo é o que sobrou, com as lembranças do mensalão, petrolão e a crise econômica durante Dilma. Há o tema da segurança, mas muito mais local do que nacional – a esquerda simplesmente ignora o assunto e a direita tem trânsito livre, com policiais eleitos por todo o país.

Corrupção? Consegue imaginar Bolsonaro enfurecido em um debate tentando explicar as rachadinhas, os gastos do cartão corporativo, o orçamento secreto? A Lava Jato é capa de jornal velho ou de sua própria imprensa, boa de rede social, mas ruim de rua. Moro, se mantiver a candidatura, vai sofrer quando as campanhas de seus adversários oferecem ao grande público os detalhes de sua atuação como juiz e seu trabalho como “consultor” nos EUA.

Privatizações e responsabilidade fiscal são argumentos para os leitores da seção de Economia. Crescimento e emprego é o que todo mundo quer ouvir, mas todos os candidatos dirão o mesmo exatamente porque não têm nada a dizer.

Com a rejeição de Bolsonaro crescente, Moro empacado e Doria não ganhando nem para síndico em São Paulo, a desinformação das fake news se transformou na única arma da direita para as eleições deste ano.

O ciclo do PT se estabeleceu com um discurso de direitos sociais em contraposição aos governos FHC. O ciclo do bolsonarismo foi a voz do moralista anticorrupção. Esgotou-se em pouco tempo. Podemos viver o que a Espanha vivenciou por décadas. Direita e esquerda sem líderes ou discursos renovados, alternando-se no poder ao sabor de seus próprios fracassos econômicos.

Sob Bolsonaro, prevaricação é descuido cívico

Num esforço para imunizar Bolsonaro contra a desmoralização no caso Covaxin, o governo construiu no ano passado um enredo desconexo. O esforço revelou-se desnecessário.

A Polícia Federal chegou à inusitada conclusão de que o presidente da República não comete crime de prevaricação quando ignora uma denúncia de corrupção que lhe chega ao conhecimento.


O chefe da nação pode ser acusado, no máximo, de descumprir um "dever cívico", anotou o delegado federal William Tito Schuman Marinho no seu relatório final. Em pensar que o governo havia elaborado três versões para blindar Bolsonaro!

O presidente deu de ombros para uma denúncia. Foi levada à biblioteca do Alvorada pelo deputado bolsonarista Luis Miranda e o irmão dele, Luis Ricardo, que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões por uma vacina indiana mais cara do que as outras e jamais aprovada pela Anvisa.

Diante do escândalo, o então ministro palaciano Onyx Lorenzoni e o coronel Elcio Franco, número 2 da gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, desqualificaram os irmãos Miranda. Acusaram-nos de usar uma nota fiscal falsa. Não colou. O documento era autêntico.

Alegou-se, então, que Bolsonaro avisou Pazuello sobre os malfeitos. Fez isso às vésperas da saída do general do ministério da Saúde. Não convenceu. Informou-se na sequência que Pazuello encomendou providências ao seu braço direito Elcio Franco, que permaneceria por mais alguns dias na pasta.

Nessa versão, o coronel teria constatado, com a velocidade de um raio, que não havia irregularidades na compra das vacinas que custariam R$ 1,6 bilhão ao governo. Posteriormente, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello anunciaria, por irregularidades insanáveis, a anulação do contrato. Esse balé de elefantes revelou-se um gasto inútil de criatividade e energia.

O inquérito policial foi remetido nesta segunda-feira à ministra Rosa Weber, do Supremo. Descerá também à mesa do procurador-geral Augusto Aras. O delegado William Marinho dispensou até o interrogatório do presidente. No final de um processo com mais de 2 mil páginas, anotou que não faz parte do "dever funcional" de Bolsonaro "comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento" aos órgãos de investigação como a Polícia Federal

Se prevalecer essa posição, ficará entendido que todo funcionário público tem o dever de agir quando souber de irregularidades, sob pena de prevaricar. Mas o presidente, servidor número um do país, pode ignorar os malfeitos ao redor. Não será acusado senão de desatenção com o seu "dever cívico".

Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, é chamado de descuido cívico.