segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A impunidade do governo está assegurada, protegida pelo esquecimento fácil

Vida curta, umas 72 horas, a do escândalo de testes da pandemia entulhados em Guarulhos. O retorno das contaminações em massa deve-se, em parte, à baixíssima aplicação pública de testes. À falta de explicação, Bolsonaro recorreu à condição de farsante profissional e mentiu que “todo o material foi enviado aos estados e municípios”. Mas não faltaram crimes contra a saúde pública e de administração perdulária.

Sete milhões de testes PCR seguiam para o fim da validade em janeiro, sem se saber o número dos já perdidos, enquanto o Conselho Nacional de Secretários de Saúde repetia, em ocasiões sucessivas, o alerta ao Ministério da Saúde para a falta de kits do PCR, o mais eficiente, em vários estados. Os comunicados do CNSS derrubam outra mentira, esta do ministério, segundo a qual a distribuição dos kits dependia da requisição para estados e municípios.

A realização dos testes em massa, para identificação dos que contaminam sem se saberem doentes, é tida pelos cientistas como meio determinante para a contenção do número de vítimas e do descontrole de focos. Impedimentos anormais a esse procedimento têm autores que devem ser identificados em inquéritos e submetidos a processo.

Jogaram com vidas e mortes de pais, mães, filhos, com o futuro de famílias em número de precisão impossível, mas pressentido pelo senso comum.

Aqui, a impunidade está assegurada. E protegida pelo esquecimento fácil e rápido. Não à toa, o general-ministro Eduardo Pazuello diz que, se sair do Ministério da Saúde, estará feliz.

Nós também.

É a mesma certeza de impunidade que permite aos Bolsonaro, mais do que desconsiderar os interesses do país, agir contra eles. O ataque do deputado Eduardo Bolsonaro e do Itamaraty à China é um caso típico. Por trás desse e de outros ataques recentes, está o negócio imenso que é a adoção do novo e fantástico sistema de comunicação, chamado 5G.

Os Bolsonaro agem em favor do sistema americano, atrasado na tecnologia e no tempo em comparação com o chinês.

O interesse real do Brasil só pode ser o de possuir o melhor sistema, sendo essa inovação tecnológica vista como capaz de mudar a hierarquia atual dos países, a depender do sistema em uso e da capacidade de explorar seus recursos.

Escolhê-lo com segurança exige estudos rigorosos e uma concorrência perfeita na soberania brasileira, na seriedade e na transparência. Bolsonaro, porém, já avisou: “Quem vai escolher sou eu. Sem palpite aí”. Afinal de contas, ou a iniciá-las, esse negócio não é uma usual rachadinha, é um rachadão.

A derrota de Trump lançou reflexos sombrios no assunto. A menos que haja como apressar alguma providência jurídica que amarre ou, no mínimo, encaminhe a decisão para o sistema americano, cria-se um problema para os propósitos de Bolsonaro. Fazer negócio com os Estados Unidos de Biden não será o mesmo que concretizá-lo com o país de Trump. Daí ser fácil deduzir que Eduardo Bolsonaro não fez aos chineses um ataque extemporâneo, que lhe deu na telha quebrada. Ao acusar a China de fazer do seu sistema um dispositivo de espionagem, precipitou sobre o 5G chinês um conceito corrosivo. E aproximou a escolha.

Manobra essa que agride o interesse do Brasil em preservar relações estáveis com a China, maior parceiro comercial e destino de um terço das exportações brasileiras, com tendência a aumento.

Para retaliar aos ataques constantes, à China bastaria cortar uma parte, uns 10% ou 15%, das importações. Criaria terremotos econômicos por aqui. E os produtores americanos estariam prontos, como estão ansiosos, para aumentar seu fornecimento dos mesmos produtos à China.

Eduardo Bolsonaro deveria ser submetido, no mínimo, a afastamento da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e a processo disciplinar. Fica impune.

Como os que, no atual governo, agem contra os interesses do Brasil e as necessidades dos brasileiros.

Pense em qualquer dos autores e envolvidos nas monstruosidades do governo Bolsonaro, incluídas as do próprio, e tente encontrar, entre eles, um que tenha sofrido as consequências devidas.

É o governo das impunidades.

Pensamento do Dia

 


Os Bolsonaros

É uma família estranha essa que ocupa o Planalto Central. Tiveram a sorte de receber o governo do Brasil, ocuparam todos os espaços disponíveis, mas abriram mão do dever de governar o país. Não sei se é por preguiça – governar um país deve ser uma trabalheira de louco - ou se é apenas porque ao pegar o leme perceberam que este é um gigante adormecido que lhes é mais útil quietinho em seu canto.

Como o pai é capitão do Exército, acharam que seria uma muito boa ideia distribuir generais, almirantes e brigadeiros pelos espaços da Esplanada dos Ministérios, o que, evidentemente, daria ao capitão o Comando Total da instituição que o expulsou um dia. Seria a segunda vitória, essa sem facada alguma. Só com saliva...

Mentir é sua segunda natureza. Fazem questão de esconder a verdade. Vai ver acham muito divertido ver a cara de espanto de quem ouve suas mentiras. Parece que não conhecem o velho ditado americano: “Não estou aborrecido porque você mentiu para mim. Estou aborrecido porque de agora em diante não posso mais acreditar em você”. Ou se é que conhecem, pouco se importam de não serem acreditados.

Por exemplo, recentemente o pai garantiu que nunca se referiu ao Covid-19 como “gripezinha”. Esqueceu-se dos diversos registros dele falando em alto e bom som da gripezinha que ele, que não é maricas, venceria num sopro. Como sabemos venceu, já que teve fôlego para correr atrás das emas, aquelas espertas que recusaram a inútil cloroquina.

São, na realidade, seres cujo DNA deveria se examinado pela ciência. Há de ter ali algum elemento que, substituído, seria de grande auxílio para a família.

Fazem questão de escolher entre os piores o pior de todos para ocupar as pastas essenciais, como a das Relações Exteriores. A impressão que dá é que não conheciam ninguém que algum dia merecesse figurar em nossos livros de história no quesito “grandes figuras”, então foram de Ernesto mesmo. Rapaz simples, simpático, que não se importa de repassar seu título para um dos Bolsonaros, aquele que parece ansioso para romper relações com a China. Sabe como é, para que gastar tutano em manter um diálogo aberto com o antigo Império do Centro?

Inteligentes que são, preferem dar mais valor a este Império do Sul que dominam. Não sei no que isso vai dar, mas tenho a impressão que boa coisa não será. Isso tudo saberemos a partir de 2021. É só aguardar.
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa 

Mentes escontroladas

Eu não tenho controle sobre o imaginário das pessoas. Tem gente que acha que a Terra é plana, que o homem não foi à Lua, que acha que Trump venceu as eleições nos EUA
Luís Roberto Barroso. presidente do TSE

A tempestade passa

Coragem, o fim da tempestade está próximo. Tenho vontade de escrever isso, sem hesitações. Mas temo parecer muito otimista. No passado, velhos como eu muito otimistas me davam uma ligeira aflição.

Mas vamos aos fatos. Historicamente, costuma haver uma espécie de renascimento depois das grandes epidemias. A vacina está no horizonte. Podemos esperar alguma euforia e otimismo, caso seja eficaz e distribuída adequadamente.

O principal obstáculo é o governo negacionista, que minimiza a Covid-19 e duvida de vacinas. Tradicionalmente, o Brasil tem capacidade de produzir vacinas e realizar grandes campanhas de imunização.

O governo federal falhou nos testes, deixando 6,8 milhões deles esquecidos num galpão em São Paulo. O general Pazuello é considerado um especialista em logística. Fez um bom trabalho em Roraima, na Operação Acolhida, que recebeu os venezuelanos.

Ele vem sofrendo alguns desgastes. Contraiu Covid-19 e foi obrigado a se curvar diante de Bolsonaro. Não sei se o corpo mole é resultado da influência do próprio Bolsonaro, que, aliás, duvida de vacinas e acha melhor encontrar um remédio para o coronavírus.



Se conseguirmos ultrapassar a barreira mental de Bolsonaro e de seus subordinados, a vacina pode, sim, representar o fim da pandemia.

Com ela, é possível também pensar numa recuperação econômica, numa retomada das relações presenciais. Sem desprezar os ganhos da imersão no virtual, novas energias vão aflorar.

A política ambiental do Brasil é absurda; a política externa, um disparate inédito em nossa história. Num dia, Bolsonaro ameaça usar pólvora contra Biden; no outro, o filho Eduardo acusa os chineses de potencial espionagem na tecnologia .

Além das duas potências mundiais, restaram poucos alvos para o insulto bolsonarista. O próprio Bolsonaro fez referências criticas à Alemanha e à Noruega, comentários machistas sobre a primeira-dama francesa e previsões catastróficas sobre o governo argentino.

Os ultrarrealistas dirão: nada disso importa, se houver um pequeno crescimento econômico. A verdade é que o Brasil precisa de um crescimento econômico sustentado, e essa tarefa é mais complexa do que um simples voo de galinha.

Quando passar a tempestade sanitária, as pessoas que compreendem este governo como a grande pedra no caminho terão mais mobilidade. Talvez possam ir para as ruas, sem a preocupação de atrair grandes massas no princípio.

A imprensa brasileira acostumou-se a julgar manifestações de forma apenas quantitativa. É um equívoco. Dentro dessa lógica, se recebesse a notícia de que houve algo com os 18 do Forte, não mandaria ninguém a Copacabana. Ou mesmo com o grupo de intelectuais que protestou contra a ditadura diante do Hotel Glória: eram só oito resistentes diante de um poderoso governo militar.

A multiplicidade de protestos, a fermentação, tudo isso acaba conduzindo a movimentos mais amplos, desses que encantam os contadores de gente na rua e impressionam os políticos míopes.

Num texto anterior, afirmei que Bolsonaro estava derretendo. Baseava-me numa análise que está se confirmando nas pesquisas. Não sou otimista o bastante para supor que Bolsonaro vá se derrotar sozinho. Não basta se sentar na poltrona e acompanhar seus movimentos autodestrutivos.

Será preciso muito movimento, troca de ideias e, em caso de avanço, sensatez política para evitar que, no desespero, ele envolva as Forças Armadas numa trágica aventura.

Essa ideia não se relaciona diretamente com eleições. É possível votar em candidatos diferentes mas, simultaneamente, compreender o conceito de adversário principal.

A esta altura do processo, é possível afirmar que qualquer um representa um perigo menor para o Brasil. Os ultrarrealistas que me perdoem: Bolsonaro nunca mais. Nunca houve na história recente do Brasil uma sucessão de erros tão graves, embora o processo de redemocratização tenha sido marcado por alguns equívocos e escândalos de dimensão continental.

Uma das características de um governo voltado para a destruição ambiental é que pode levar alguns biomas a um ponto de não retorno.

Embora iniba política vitais, a roubalheira desvia o trabalho morto, simbolizado no dinheiro público desviado.

A cegueira ambiental atinge a vida diretamente: Bolsonaro extermina o futuro.

Com o fim da eleição, Brasília volta ao (a)normal

Concluído o segundo turno da disputa pelas prefeituras, o governo de Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional serão pressionados a religar as fornalhas de Brasília. Executivo e Legislativo fogem da realidade. Mas presidente, ministros e parlamentares sabem que a realidade é o único lugar onde se pode enfrentar problemas como o desequilíbrio das contas nacionais e o desemprego que mantém no olho da rua 14,1 milhões de brasileiros.

Com as crises sanitária e econômica a pino, a disputa eleitoral servia de pretexto para retardar a votação de reformas tão prioritárias quanto a administrativa e a tributária. Está na gaveta também a proposta que autoriza a suspensão de concursos, redução de jornada e de salários de servidores para evitar o estouro do teto. Às portas do Ano Novo, nem mesmo a comissão que deveria analisar o Orçamento da União para 2021 foi instalada.

É improvável que reformas tidas como prioritárias sejam aprovadas ainda em 2020. Não é negligenciável a hipótese de o país virar o ano sem orçamento. Mas os atores de Brasília terão de arranjar desculpas novas. A campanha eleitoral não serve mais de muleta. Aliás, já não servia antes. A tese segundo a qual congressistas precisam dar atenção às suas bases eleitorais já havia perdido o prazo de validade.

A pandemia introduziu na rotina do Legislativo as sessões por videoconferência. Senadores e deputados não precisariam nem se deslocar até Brasília para deliberar. Não utilizaram as ferramentas tecnológicas por absoluto desinteresse. O Planalto poderia ter tentado mobilizar sua tropa legislativa para obter votações pontuais. Mas Jair Bolsonaro vinculou-se durante o período eleitoral a uma agenda desconexa.

O presidente desperdiçou nacos do seu tempo nas últimas semanas com coisas tão exóticas como a celebração do que imaginava ser o fiasco da vacina CoronaVac —"Mais uma que o Jair Bolsonaro ganha!"—; o convite aos brasileiros para que enfrentem o vírus de peito aberto —"Tem que deixar de ser um país de maricas"—; e a ameaça de pegar em armas para deter uma hipotética invasão de Joe Biden à Amazônia —"Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora".


Joga-se em Brasília um jogo de empurra que não orna com a gravidade do momento. Bolsonaro se finge de morto, abstendo-se de articular privatizações e reformas. O ministro Paulo Guedes (Economia) se diz "frustrado" por não ter vendido nenhuma estatal e transfere para o Congresso a responsabilidade por tirar as reformas do papel. "Quem dá o timing é a política", diz Guedes, esquivando-se de incluir na equação a inércia do Planalto..

Enquanto o Executivo lava as mãos, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, entoa metáforas apocalípticas. Declarou dias atrás que o Brasil caminha para o abismo se não regulamentar os gatilhos que disparam cortes de despesas antes do rompimento do teto de gastos. Manifestou sua preocupação com o aparente isolamento de Paulo Guedes no governo.

Há duas semanas, na virada do primeiro para o segundo turno das eleições municipais, Maia disse ter pressa para retomar as votações na Câmara. Vaticinou que o Brasil deve enfrentar uma turbulência porque há muita "dúvida sobre qual é a posição do governo" em relação à agenda de reformas. "O governo não é só a equipe econômica", declarou Maia. "Não sabemos qual vai ser a posição do governo em questões muito difíceis e polêmicas.".

Embora não mencione o nome de Bolsonaro, Maia como que joga a batata quente no colo do presidente, atribuindo-lhe a responsabilidade por arregimentar a tropa no centrão no Legislativo. O Planalto mantém com as legendas do centrão um relacionamento improdutivo. Cedeu cargos e verbas orçamentárias. Entretanto, afora a blindagem política oferecida ao presidente, a rendição ao fisiologismo ainda não produziu vitórias legislativas para o governo.

O país assiste a uma encenação sem mocinhos. O comando do Congresso e os mandachuvas dos partidos concordaram em empurrar a agenda legislativa com a barriga até depois da eleição. Paulo Guedes se queixa do Legislativo, mas esquece que seu chefe não arregaça as mangas.

Diante da deterioração dos indicadores econômicos, Bolsonaro lança mão de um álibi que começou a construir em março, quando se eximiu de assumir a coordenação nacional da pandemia. Na última segunda-feira, ele declarou: "O pessoal tem reclamado do preço dos alimentos. Tem subido, sim, para além do normal, a gente lamenta isso daí. Também é uma consequência do 'fica em casa'. Quase quebraram a economia."

Bolsonaro revela-se capaz de quase tudo, só não consegue enxergar no espelho a imagem de um corresponsável pela administração da crise. Pior: o presidente emite sinais de que pode ajudar a agravar o problema. Teme-se que ele mande às favas o teto de gastos para engordar o Bolsa Família ou colocar em pé um programa de renda mínima para substituir o auxílio emergencial da pandemia, que acaba em 31 de dezembro.

Sabe-se que não há nos cofres do Tesouro dinheiro para aventuras populistas. Mas o desejo de Bolsonaro é compartilhado pelo centrão. O que faz com que, terminado o processo eleitoral, Brasília volte à (a)normalidade. Uma anormalidade que inclui a circulação de ideias como estender o Orçamento de Guerra da pandemia até 2021, renovar o auxílio emergencial ou lançar um novo programa social capaz de ladrilhar o caminho para as urnas de 2022. Tudo isso sem responder a uma indagação singela: de onde virá o dinheiro?

A democracia vai autodestruir-se em 3, 2…

Bernard Bouton
Escrevo este texto horas após Donald Trump ter comunicado pelo Twitter uma espécie de retirada, dando início ao processo de passagem de testemunho na Presidência, sem ainda assim conceder na sua derrota. Há quatro anos, por esta altura, estava a refazer-me do choque da eleição desta figura, com todo o simbolismo de decadência civilizacional que acarretava. Achava na altura que quando Trump estivesse de saída da Casa Branca, quatro ou oito anos depois, estaria a celebrar esse dia como uma salutar vitória da democracia, que tinha assim evitado a sua autodestruição. Infelizmente, não estou. Registo a notícia, encolho os ombros e continuo de sobrolho franzido e com cenários sombrios na cabeça. Temo o que aí vem. Temo os sinais que nos chegam de todos os lados. Se me dissessem há uma década que estaria hoje a dizer isto, não acreditaria.

Não é só Trump e o espetáculo decadente de um homem sem qualidades a recusar-se a aceitar a sua derrota. Não são só as mentiras e as manobras sórdidas, o egoísmo no seu expoente máximo no poder. Tudo isso acabará, felizmente, em breve. É o legado que Trump deixa, as caixas de Pandora que abriu, o indizível que pronunciou, as covas fundas que cavou, os exemplos que inspirou. Há 73 milhões de americanos que depositaram a sua confiança num ser humano desprezível, que se deixaram enlear em loucas teorias da conspiração, que são incapazes de distinguir factos de alucinações, e para quem os valores da igualdade, da justiça social, da compaixão, não importam nada. Há 70% de republicanos que não acreditam que estas eleições foram livres e justas. A semente está lançada. Onde houver um populista no mundo, as eleições a partir de agora nunca mais serão iguais. Acusações de fraude infundadas, desrespeito pelas instituições e pelo mais nobre ato de expressão da vontade popular serão constantes mesmo em democracias sólidas.

Trump não é a causa de todos os males do mundo, naturalmente. É apenas fruto podre de uma época e das suas condições, expressão máxima de uma tempestade perfeita de forças que confluem para aquela que é a maior ameaça para a ordem mundial e para o valor da liberdade desde a Segunda Guerra Mundial. A causa está na tecnologia que libertou novamente os piores fantasmas da natureza humana, que o Homem pensava ter enterrado com a civilidade e a democracia. Os homens são capazes do melhor, mas também do pior quando entregues a si próprios, aos seus medos e angústias, ao seu inato egoísmo. Sobretudo quando a vida não lhes corre bem, quando a crise agudiza, quando as soluções que lhes apresentam são gastas e pouco convincentes, quando a sua saúde e o seu conforto estão ameaçados. O Homem tanto quer, que se arrisca a tudo perder. Já vimos isto acontecer antes, e não foi bonito de se ver. Parece que estou a imaginar Thomas Hobbes, com o seu Leviatã debaixo do braço, a dizer “Eu bem avisei!” ao crente e bem-intencionado Jean-Jacques Rousseau. Acreditar na natureza intrinsecamente boa do ser humano é uma tarefa cada vez mais difícil quando mergulhamos no submundo de ódio e mentiras em que se transformaram as redes sociais. Quando percebemos que há tanta gente que prefere acreditar em qualquer coisa, menos na ciência, nos médicos e nos jornalistas. E quando olhamos para as forças políticas que crescem banhadas neste caldo de ressentimento, angústia e ignorância.

Se olharmos para a democracia como um grande ecossistema natural que se autorregula, podemos tentar acreditar que, depois de as pessoas provarem a água e não gostarem, o bem, a decência e a civilidade acabarão sempre por vencer. O problema é que os humanos são peritos a destruir ecossistemas antes considerados indestrutíveis, como se vê pelo que fizemos ao nosso planeta. Anne Applebaum explicou bem o fracasso da política e o apelo sedutor dos totalitarismos no livro O Crepúsculo da Democracia, em que, tomando os maus exemplos da História, do estalinismo à Alemanha nazi, analisa os movimentos populistas atuais pelo mundo, passando por Boris Johnson ao desmantelar do Estado de Direito na Polónia, na Hungria ou no Brasil. Não chegou a Portugal, mas teria bom material para se entreter. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como Morrem as Democracias, também mostraram como, no século XXI, elas não finam com uma revolução armada: morrem devagarinho, com pezinhos de lã, avanço aqui, cedência acoli, fechar de olhos acolá.

Estarei enganada, a ser pessimista? Nunca desejei tão ardentemente que sim. Não me saem da cabeça as palavras de Benjamin Ferencz, o último procurador vivo dos Julgamentos de Nuremberga, com quem falei há três semanas: “Para que o mal vença, só é preciso que os bons não façam nada.” Eu sei, tenho a certeza, de que lado vou estar. Sou bastante pragmática, mas estarei sempre do lado do humanismo, dos valores e dos princípios que tenho por inegociáveis e inalienáveis. Só é pena que cada vez mais gente, sobretudo gente com responsabilidades políticas, não saiba.