quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
Bem-vindos ao século XXI
É impressionante como uma criatura tão pequena, invisível a olho nu, tem a capacidade de paralisar o planeta. Algo que só se conhecia do passado ou por meio de fantasias, de distopias científicas agora faz parte da nossa realidade.
Sempre se sai mudado de um estado de anomalia: passamos a repensar se essa rotina acelerada é mesmo necessária, se todo mundo precisa sair de casa e voltar no mesmo horário, se estamos fazendo bem ou muito mal para o planeta. Se não podemos ser mais flexíveis, menos congestionados, menos poluidores.
Ficar em casa é reinventar a rotina, se descobrir como uma pessoa estrangeira. Eu me conheço como uma pessoa que acorda de manhã, sai para correr, vai para o trabalho, vai para outro lugar e chega em casa exausta. Agora, preciso me reinventar numa temporalidade diferente. É um movimento interior de redescoberta.
Mas como dizia Montaigne: “A humanidade é vária”. Nem todos estão passando por isso da mesma maneira. Há grandes diferenças, a depender de raça, classe, gênero. Nós, mulheres, por exemplo, temos um conhecimento distinto dos homens quanto ao cuidado com a casa. Não há nada de biológico nessa constatação; essa é uma função que nos foi impingida histórica e culturalmente de modo a parecer “natural”; o que não é. Há vários relatos de maridos que não imaginavam que os afazeres domésticos dessem todo esse trabalho, que não se davam conta do tempo que tomavam, o que evidencia uma divisão do trabalho internalizada e invisível.
Os séculos XX e XXI são e serão da revolução feminista, como já vai ficando claro. As mulheres não vão voltar atrás. Quem sabe possamos aprender com a experiência das várias mulheres dirigentes de nações, como é o caso de Nova Zelândia, Islândia, Finlândia, Taiwan, Alemanha e Bélgica, que estão inventando uma forma nova de “fazer política”: menos viril, menos normativa, menos dogmática. Uma forma mais atenta aos cuidados de que a população precisa e ao diálogo. São governos que tiveram grande sucesso em conter a pandemia com clareza, objetividade, assertividade, firmeza, respeito à ciência e, sobretudo, respeito e cuidado para com os cidadãos.
Mas a questão das mulheres é também de gênero e classe social. Mulheres das classes média e alta têm mais recursos e podem lidar melhor com seu tempo diante do trabalho, o que é muito diferente no caso de mulheres de baixa renda e negras. Elas são as que menos têm acesso à saúde pública e as que mais apresentam problemas cardíacos e respiratórios recorrentes. São elas, também, que estão na outra ponta da saúde: há muitas enfermeiras negras e pardas sendo contaminadas e morrendo de covid-19. Elas assumem o cuidado com os pacientes e até com os médicos, desempenhando o mesmo papel em casa e no sistema de saúde. E são ainda mais vulneráveis porque muitas delas estão trabalhando sem a proteção necessária, e porque em geral já estão sobrecarregadas com o trabalho doméstico. E nem sempre “casa” quer dizer “lar”. Casa sempre foi um local de repouso e abrigo. Já lar é um conceito criado pela burguesia, no século XIX, que tendeu a idealizar esse lugar, sublinhando o modelo de família estruturada e esquecendo dos conflitos por lá inerentes. Muitas vezes romantizamos esse espaço, sem ver que, nesse contexto pandêmico, os números de violência doméstica aumentam. Os de feminicídio e de infanticídio também.
A desigualdade tem muitas dimensões e a pandemia escancara as nossas. Ela chegou ao país de avião, por meio de pessoas da elite que estavam no estrangeiro e voltaram contaminadas — tanto que os primeiros dados incidem sobre os bairros mais nobres. Mas o que está acontecendo agora é que o vírus chegou com força nas periferias, nos subúrbios, nas comunidades e favelas espalhadas pelo país. Em São Paulo a pandemia já é muito mais concentrada na periferia do que nos bairros centrais. No Rio de Janeiro, em Manaus e em Fortaleza, idem, e em Salvador o perfil parece estar se repetindo. Além do mais, dados vêm mostrando como ela tem incidido sobretudo na população negra, a mais afetada pela pandemia da covid-19.
E quando dizemos “fique em casa, mantenha o isolamento” temos que refletir não só acerca da nossa “bolha”, mas sobre as condições de vida dessas populações. Muitas moram em cômodos únicos com seis ou mais pessoas. Pouco ou não atendidas por serviços de saneamento básico como água potável e tratamento de esgoto, as populações pobres são também vítimas preferenciais de doenças como anemia, problemas pulmonares e pressão alta. Por isso, numa pandemia, elas são duplamente castigadas. Por outro lado, no que se refere à educação, mais uma vez ficam acirradas as nossas desigualdades. Longe de mim achar que as crianças que estudam em escolas privadas não estejam sendo afetadas pela covid-19. Perderam a sociabilidade, a oportunidade de aprender em conjunto, de encontrar colegas e professores. Mas se a crise é ruim ela é de alguma maneira contornável. O que dizer de crianças que moram em locais sem internet, que não têm computadores e tampouco pais e amigos para lhes ajudarem? Mais uma vez, a Pandemia apenas evidencia nossa renitente desigualdade.
Por sinal, o Brasil consistentemente vai ganhando posições de proeminência nesse quesito. É o sexto país mais desigual do mundo. É o primeiro, junto com Catar, dentre os países democráticos. O Brasil não é um país pobre, mas é um país de pobres.
O certo é que essa Pandemia apresenta muitas faces, no Brasil e no mundo.
O historiador britânico Eric Hobsbawm disse que o longo século XIX só terminou em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial. Acreditava-se então no progresso e na evolução. Euclides da Cunha, por exemplo, aqui no Brasil dizia: “Estamos condenados ao progresso”, como se o progresso fosse uma danação de uma sociedade que gostava de se chamar de “civilização”. No entanto, a Primeira Guerra mostrou como esses mesmos povos estavam mais próximos da barbárie e da destruição, e o conflito retirou todo o lustro civilizatório da Belle Époque europeia.
O mundo, ao contrário, não era tão civilizado quanto se imaginava. As pessoas guerreavam corpo a corpo e voltavam mutiladas e traumatizadas, em silêncio. Mas um silêncio cheio de ruídos. Por isso Hobsbawm tem razão: os séculos não terminam com o virar da folhinha do calendário, mas quando grandes crises colocam em questão verdades que já pareciam consolidadas.
A grande marca do século XX foi a tecnologia e a ideia de que ela nos emanciparia e libertaria. Discordo da afirmação de que não estávamos globalizados no século XIX , mas foi apenas no século XX que a tecnologia ganhou escala mundial e acelerou o nosso tempo. Graças a ela, acreditávamos estar nos livrando das amarras geográficas, corpóreas, temporais. Não estávamos! Ao deixar mais evidente o nosso lado humano e vulnerável, a pandemia da covid-19 marca o final do século XX.
A doença, seja ela qual for, produz uma sensação de medo e insegurança. Diante desse tipo de crise sanitária, nossa primeira reação é dizer que sairemos imunes. Antes de virar uma pandemia, as mortes nos soam muito distantes, e o discurso do “não vai acontecer comigo” é natural. Reconhecer um problema do tamanho de uma pandemia também é algo custoso, em vários sentidos, por isso sempre se vê algum tipo de negacionismo. No começo do século, em 1903, a expectativa de vida era de 33 anos. O Brasil era chamado de “grande hospital” e tinha todo tipo de doença: lepra, sífilis, tuberculose, peste bubônica, febre amarela. Quando o presidente Rodrigues Alves assume o poder e indica um médico sanitarista para combater a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, eles começam exterminando ratos e mosquitos e depois passam a vacinar a população.
Mas na época os brasileiros não foram bem informados e reagiram de muitas maneiras. Essa foi a primeira revolta do pós-abolição e a primeira da República que prometeu inclusão, mas entregou muita exclusão social. Aliás, o mesmo Rodrigues Alves estará de volta ao poder no contexto da gripe espanhola de 1918, não como presidente na ativa, mas como presidente eleito. E é dele a ideia de, como Oswaldo Cruz já havia morrido, indicar o herdeiro dele, Carlos Chagas. As autoridades brasileiras já sabiam da propagação da gripe espanhola no mundo, e mesmo assim não agiram a tempo. O vírus entrou a bordo de navios que atracaram no Brasil e então a contaminação explodiu. Mas a atitude sempre foi essa: “Não somos um país de pessoas idosas, nosso clima é quente, aqui a gripe não pega”.
Uma particularidade do momento que vivemos é que as pessoas recebem informações com muito mais velocidade, o que pode ser uma vantagem e uma desvantagem. Uma vantagem porque o acesso à informação foi democratizado, sem tantos intermediários. O conhecimento está mais rápido: todo fim da tarde é possível verificar os dados sobre novos casos de contaminação e novas mortes ocasionadas pela covid-19. A desvantagem é que estamos expostos à ambiguidade das redes: boa parte das fake news no Brasil é negacionista. Elas contestam a gravidade da situação e a importância do isolamento. Também fazem crer em milagres, investindo pesado na propaganda de remédios que não têm eficácia comprovada e podem agravar o estado de saúde dos pacientes, desfazendo os ganhos da ciência. Mais do que nunca, precisamos ser seletivos em relação a nossas formas de conhecimento. Precisamos aprender a reconhecer quais são os veículos idôneos e quais são os profissionais que se pautam por pesquisas e dados. Quem são os especialistas e quem são os populistas que pretendem fazer sucesso em cima de tantas mortes.
Como afirmar que o Brasil corre menos risco porque sua população é mais jovem, se ela é também muito mais desigual que a de países europeus que já se veem sobrecarregados pelos efeitos da pandemia? O negacionismo cria o bode expiatório. E esse fenômeno é recorrente na nossa história.
A conta agora recai sobre os idosos. Nossa sociedade não sabe lidar com a morte, e por isso relutamos tanto em envelhecer, criando o mito da eterna juventude. A juventude é uma construção histórica e cultural, que varia muito a cada época. Fica claro que somos uma sociedade que transforma a história e os idosos em “velharias”. Juventude não é, porém, uma qualidade — é uma forma de estar no mundo que independe de idade. E a pergunta que cada um de nós tem que fazer é: alguém tem o direito de dizer quem pode ou não pode morrer? No Ocidente a velhice é vista não como um momento de sabedoria, mas apenas como decrepitude. E isso também tem a ver com a tecnologia: velho é aquele que não sabe lidar com ela. Portanto, que seja isolado. E aguarde a morte. Pior: não sabemos falar sobre o luto. Não vemos o presidente do Brasil pronunciar uma única palavra de solidariedade às famílias das pessoas que morreram, como se não quisesse nem tocar no assunto. E a essa altura não existe quem não tenha o seu luto: um amigo, um inimigo, um parente, um conhecido.
Esse pensamento combina muito bem com uma sociedade que nega a história, por exemplo, ao dizer que em 1918 não tínhamos as condições de combate à crise que temos hoje. Esse é um uso equivocado e negacionista da história: refutar o passado e dizer que o que aconteceu naquela época não vai acontecer agora. Negar o passado significa também não aprender com ele — com nossos erros e acertos.
Se cuidarmos melhor das populações vulneráveis — e aí se incluem os idosos, a população de baixa renda e os negros e negras —, estaremos cuidando melhor de nós mesmos, não só numa dimensão simbólica, como também de maneira prática. Aliás, como mostra Silvio Almeida, não teremos uma democracia enquanto praticarmos um racismo institucional e estrutural como o que vivemos no Brasil. O racismo é institucional pois só vemos pessoas brancas nas posições de mando e direção. O racismo é estrutural uma vez que se insere, perversamente, em todas as entranhas do sistema: na saúde, na educação, no trabalho, nos transportes, nos índices de nascimento e de morte. É estrutural, também, pois parece “natural” e invisível por parte das elites. Somos capazes de “ver”, pois esse é um atributo biológico; no entanto, temos muita dificuldade de “enxergar”, uma vez que essa é uma escolha cultural e todos nós somos “míopes culturais” e sistematicamente fazemos da “branquitude” uma realidade sem pejas e receios.
O racismo foi uma criação branca, portanto, cabe a toda a sociedade brasileira lidar com ele. O protagonismo é de negras, negros e negres (numa referência aqui a identidades de gênero), mas a pauta é de todos nós. Por sinal, nada mais denunciador do que o conceito de “novo normal”. A pergunta que não quer calar é: “novo normal” para quem? Para as elites que moram em seus “lares”, têm seus computadores individuais e quartos privativos ou para a imensa maioria da população brasileira que não tem acesso a essas benesses?
Já não basta dizer que não somos racistas. Não funciona mais. É preciso ser antirracista, como definiram Angela Davis e Djamila Ribeiro aqui no Brasil. E ter certeza de que a questão não é só moral. Trata-se de uma responsabilidade que implica ações e atitudes de todos nós, em todos os lugares e setores.
O mesmo aconteceu com o golpe militar de 1964. Enquanto outros países vizinhos fizeram comissões e julgaram e puniram os militares envolvidos nas ditaduras latino-americanas, o processo no Brasil foi muito mais brando. Até porque a Constituição de 1988 permitiu a autonomia das Forças Armadas para definir assuntos de seu interesse. O resultado ficou latente no andamento da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório final foi entregue à então presidente Dilma Rousseff em 10 de dezembro de 2014. O documento apontou 377 responsáveis direta ou indiretamente pela prática de tortura e assassinato entre 1964 e 1985. Mas a indicação dessas pessoas não implicou sua “responsabilização jurídica”. O relatório fez recomendações ao governo, entre as quais a de que os acusados de cometer crimes contra a humanidade respondessem na Justiça, além de recomendar o necessário reconhecimento pelas Forças Armadas de seu papel na violação de direitos humanos no Brasil. No entanto, a responsabilização criminal, que daria ensejo a uma revisão da Lei da Anistia de 1979, não foi unanimidade e a situação permanece intocada até hoje.
Aliás, impressiona o lugar do Exército na história do Brasil, que garante para si esse papel “tutelar”, de “salvador” da pátria. Os países têm exército e têm também toda uma população de reserva para a hipótese de haver uma guerra. Se o Estado brasileiro levasse a sério a metáfora bélica, que tanto utiliza, deveria ter criado uma estrutura semelhante para lutar nas “guerras de saúde”. Mas ele não dispõe nem sequer de um sistema para prevenir epidemias e se dá ao luxo de demitir dois Ministros da Saúde especialistas, para colocar um militar no comando provisório (e permanente) da pasta. É preciso inverter os termos bélicos, e pensar que essa pode ser uma “crise humanitária”, que depende de todos nós.
Uma doença só existe quando se concorda que ela existe. É preciso mostrar para a população que estamos doentes. Se não temos diretrizes claras por parte do governo, se nosso presidente insiste em dar contraexemplos e apoiar aglomerações, não há argumento que dê conta de se opor ao negacionismo de parte da população brasileira.
Passaram-se cem anos desde que a gripe espanhola chegou ao Brasil, e as alternativas que temos hoje para combater a pandemia da covid-19 não são muito diferentes das usadas naquela época. As reações em 1918 foram muito semelhantes às de agora: havia poucas pessoas nas ruas, todas usando máscara, as igrejas ficaram fechadas, os teatros eram lavados com detergente, os bondes limpos com álcool. A humanidade ainda não inventou outra maneira de lidar com a pandemia a não ser aguardar o remédio ou a vacina.
Nossa prepotência é um pouco esta: achar que somos uma sociedade muito racional, que se pauta pela tecnologia, quando na verdade estamos sempre esperando por um milagre atrás do último arco-íris.
Toda vez que passamos por uma grande crise, nossa principal reação é basicamente a mesma: “Agora nós aprendemos, nunca mais vamos fazer isso”. Mas as crises continuam a acontecer. A pandemia já vinha se anunciando, e as nações não tomaram atitudes preventivas, buscando montar exércitos da saúde. Era preciso que se antecipassem à pandemia, não que corressem atrás do prejuízo. Se a humanidade aprendesse com o passado, os historiadores seriam visionários. Mas, infelizmente, não acredito na ideia de que nós deixamos de repetir o passado. Infelizmente a humanidade é teimosa. Vem se repetindo em termos de violência, de intolerância, de racismo, de xenofobia. Mas, já que é a primeira vez que esta geração vive algo do tipo, quem sabe algumas coisas não mudam? Vários países já estão começando a pensar em estruturas que não apenas reajam, mas prevejam pandemias como esta e outras que virão.
O problema é que nós temos no Brasil um governo que não acredita na ciência. Um governo autoritário e populista que só acredita em si mesmo, acha que tem respostas para tudo e fala diretamente com o povo, sem necessidade da ciência, dos acadêmicos, dos jornalistas, das instituições democráticas. Em horas como esta, fica cada vez mais claro que a saída virá da ciência, com a vacina ou o remédio que venha a controlar a pandemia. Na época da gripe espanhola, Carlos Chagas se tornou mais popular do que cantores e jogadores de futebol — as charges retratavam isso.
Não estranharia se nossos próximos presidentes fossem médicos. O que vários países estão aprendendo é a importância de ter um Ministério da Saúde forte, ocupado por especialistas de verdade, e não contar apenas com um político, mas com um político especialista. A ciência, antes o grande vilão, é hoje a grande utopia.
Sou pessimista no atacado e otimista no varejo. Se cada um exercer sua cidadania, sua vigilância cidadã, quem sabe damos sorte no azar. Quem sabe fazemos dessa crise única na história brasileira — porque é social, econômica, ambiental, cultural, moral e da saúde — uma oportunidade. O fato é que a sociedade civil está comparecendo. A população acordou para a importância do SUS e da ciência. Lutar pelo SUS , nesse momento, é virar um defensor dos direitos humanos. O Brasil já se perdeu e já se encontrou várias vezes em sua história. O novo coronavírus está gerando muita dor, muita solidão, muita insegurança, muito luto. Mas é hora de fazer da crise um propósito. Quem sabe construiremos um cotidiano com mais tempo e qualidade? Quem sabe não aprenderemos a dar tempo ao tempo?
Já havia muitos sinais do desgaste da utopia tecnológica do século que agora termina. É mais do que óbvio o quanto estávamos e ainda estamos abusando da natureza, e os desastres climáticos e ambientais de proporções inéditas são prova disso. Há muito tempo vimos recebendo alertas de cientistas, ambientalistas, ativistas e lideranças indígenas sobre a “queda do céu”, título do impressionante livro de Davi Kopenawa. Nossa marcha desenfreada pela tecnologia agora se depara com essa pandemia, e começamos a nos despedir, tristemente, da utopia do século XX. Bem-vindos ao século XXI.
Lilia Moritz Schwarcz, "Quando acaba o século XX"
Sempre se sai mudado de um estado de anomalia: passamos a repensar se essa rotina acelerada é mesmo necessária, se todo mundo precisa sair de casa e voltar no mesmo horário, se estamos fazendo bem ou muito mal para o planeta. Se não podemos ser mais flexíveis, menos congestionados, menos poluidores.
Ficar em casa é reinventar a rotina, se descobrir como uma pessoa estrangeira. Eu me conheço como uma pessoa que acorda de manhã, sai para correr, vai para o trabalho, vai para outro lugar e chega em casa exausta. Agora, preciso me reinventar numa temporalidade diferente. É um movimento interior de redescoberta.
Mas como dizia Montaigne: “A humanidade é vária”. Nem todos estão passando por isso da mesma maneira. Há grandes diferenças, a depender de raça, classe, gênero. Nós, mulheres, por exemplo, temos um conhecimento distinto dos homens quanto ao cuidado com a casa. Não há nada de biológico nessa constatação; essa é uma função que nos foi impingida histórica e culturalmente de modo a parecer “natural”; o que não é. Há vários relatos de maridos que não imaginavam que os afazeres domésticos dessem todo esse trabalho, que não se davam conta do tempo que tomavam, o que evidencia uma divisão do trabalho internalizada e invisível.
Os séculos XX e XXI são e serão da revolução feminista, como já vai ficando claro. As mulheres não vão voltar atrás. Quem sabe possamos aprender com a experiência das várias mulheres dirigentes de nações, como é o caso de Nova Zelândia, Islândia, Finlândia, Taiwan, Alemanha e Bélgica, que estão inventando uma forma nova de “fazer política”: menos viril, menos normativa, menos dogmática. Uma forma mais atenta aos cuidados de que a população precisa e ao diálogo. São governos que tiveram grande sucesso em conter a pandemia com clareza, objetividade, assertividade, firmeza, respeito à ciência e, sobretudo, respeito e cuidado para com os cidadãos.
Mas a questão das mulheres é também de gênero e classe social. Mulheres das classes média e alta têm mais recursos e podem lidar melhor com seu tempo diante do trabalho, o que é muito diferente no caso de mulheres de baixa renda e negras. Elas são as que menos têm acesso à saúde pública e as que mais apresentam problemas cardíacos e respiratórios recorrentes. São elas, também, que estão na outra ponta da saúde: há muitas enfermeiras negras e pardas sendo contaminadas e morrendo de covid-19. Elas assumem o cuidado com os pacientes e até com os médicos, desempenhando o mesmo papel em casa e no sistema de saúde. E são ainda mais vulneráveis porque muitas delas estão trabalhando sem a proteção necessária, e porque em geral já estão sobrecarregadas com o trabalho doméstico. E nem sempre “casa” quer dizer “lar”. Casa sempre foi um local de repouso e abrigo. Já lar é um conceito criado pela burguesia, no século XIX, que tendeu a idealizar esse lugar, sublinhando o modelo de família estruturada e esquecendo dos conflitos por lá inerentes. Muitas vezes romantizamos esse espaço, sem ver que, nesse contexto pandêmico, os números de violência doméstica aumentam. Os de feminicídio e de infanticídio também.
A desigualdade tem muitas dimensões e a pandemia escancara as nossas. Ela chegou ao país de avião, por meio de pessoas da elite que estavam no estrangeiro e voltaram contaminadas — tanto que os primeiros dados incidem sobre os bairros mais nobres. Mas o que está acontecendo agora é que o vírus chegou com força nas periferias, nos subúrbios, nas comunidades e favelas espalhadas pelo país. Em São Paulo a pandemia já é muito mais concentrada na periferia do que nos bairros centrais. No Rio de Janeiro, em Manaus e em Fortaleza, idem, e em Salvador o perfil parece estar se repetindo. Além do mais, dados vêm mostrando como ela tem incidido sobretudo na população negra, a mais afetada pela pandemia da covid-19.
E quando dizemos “fique em casa, mantenha o isolamento” temos que refletir não só acerca da nossa “bolha”, mas sobre as condições de vida dessas populações. Muitas moram em cômodos únicos com seis ou mais pessoas. Pouco ou não atendidas por serviços de saneamento básico como água potável e tratamento de esgoto, as populações pobres são também vítimas preferenciais de doenças como anemia, problemas pulmonares e pressão alta. Por isso, numa pandemia, elas são duplamente castigadas. Por outro lado, no que se refere à educação, mais uma vez ficam acirradas as nossas desigualdades. Longe de mim achar que as crianças que estudam em escolas privadas não estejam sendo afetadas pela covid-19. Perderam a sociabilidade, a oportunidade de aprender em conjunto, de encontrar colegas e professores. Mas se a crise é ruim ela é de alguma maneira contornável. O que dizer de crianças que moram em locais sem internet, que não têm computadores e tampouco pais e amigos para lhes ajudarem? Mais uma vez, a Pandemia apenas evidencia nossa renitente desigualdade.
Por sinal, o Brasil consistentemente vai ganhando posições de proeminência nesse quesito. É o sexto país mais desigual do mundo. É o primeiro, junto com Catar, dentre os países democráticos. O Brasil não é um país pobre, mas é um país de pobres.
O certo é que essa Pandemia apresenta muitas faces, no Brasil e no mundo.
O historiador britânico Eric Hobsbawm disse que o longo século XIX só terminou em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial. Acreditava-se então no progresso e na evolução. Euclides da Cunha, por exemplo, aqui no Brasil dizia: “Estamos condenados ao progresso”, como se o progresso fosse uma danação de uma sociedade que gostava de se chamar de “civilização”. No entanto, a Primeira Guerra mostrou como esses mesmos povos estavam mais próximos da barbárie e da destruição, e o conflito retirou todo o lustro civilizatório da Belle Époque europeia.
O mundo, ao contrário, não era tão civilizado quanto se imaginava. As pessoas guerreavam corpo a corpo e voltavam mutiladas e traumatizadas, em silêncio. Mas um silêncio cheio de ruídos. Por isso Hobsbawm tem razão: os séculos não terminam com o virar da folhinha do calendário, mas quando grandes crises colocam em questão verdades que já pareciam consolidadas.
A grande marca do século XX foi a tecnologia e a ideia de que ela nos emanciparia e libertaria. Discordo da afirmação de que não estávamos globalizados no século XIX , mas foi apenas no século XX que a tecnologia ganhou escala mundial e acelerou o nosso tempo. Graças a ela, acreditávamos estar nos livrando das amarras geográficas, corpóreas, temporais. Não estávamos! Ao deixar mais evidente o nosso lado humano e vulnerável, a pandemia da covid-19 marca o final do século XX.
A doença, seja ela qual for, produz uma sensação de medo e insegurança. Diante desse tipo de crise sanitária, nossa primeira reação é dizer que sairemos imunes. Antes de virar uma pandemia, as mortes nos soam muito distantes, e o discurso do “não vai acontecer comigo” é natural. Reconhecer um problema do tamanho de uma pandemia também é algo custoso, em vários sentidos, por isso sempre se vê algum tipo de negacionismo. No começo do século, em 1903, a expectativa de vida era de 33 anos. O Brasil era chamado de “grande hospital” e tinha todo tipo de doença: lepra, sífilis, tuberculose, peste bubônica, febre amarela. Quando o presidente Rodrigues Alves assume o poder e indica um médico sanitarista para combater a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, eles começam exterminando ratos e mosquitos e depois passam a vacinar a população.
Mas na época os brasileiros não foram bem informados e reagiram de muitas maneiras. Essa foi a primeira revolta do pós-abolição e a primeira da República que prometeu inclusão, mas entregou muita exclusão social. Aliás, o mesmo Rodrigues Alves estará de volta ao poder no contexto da gripe espanhola de 1918, não como presidente na ativa, mas como presidente eleito. E é dele a ideia de, como Oswaldo Cruz já havia morrido, indicar o herdeiro dele, Carlos Chagas. As autoridades brasileiras já sabiam da propagação da gripe espanhola no mundo, e mesmo assim não agiram a tempo. O vírus entrou a bordo de navios que atracaram no Brasil e então a contaminação explodiu. Mas a atitude sempre foi essa: “Não somos um país de pessoas idosas, nosso clima é quente, aqui a gripe não pega”.
Uma particularidade do momento que vivemos é que as pessoas recebem informações com muito mais velocidade, o que pode ser uma vantagem e uma desvantagem. Uma vantagem porque o acesso à informação foi democratizado, sem tantos intermediários. O conhecimento está mais rápido: todo fim da tarde é possível verificar os dados sobre novos casos de contaminação e novas mortes ocasionadas pela covid-19. A desvantagem é que estamos expostos à ambiguidade das redes: boa parte das fake news no Brasil é negacionista. Elas contestam a gravidade da situação e a importância do isolamento. Também fazem crer em milagres, investindo pesado na propaganda de remédios que não têm eficácia comprovada e podem agravar o estado de saúde dos pacientes, desfazendo os ganhos da ciência. Mais do que nunca, precisamos ser seletivos em relação a nossas formas de conhecimento. Precisamos aprender a reconhecer quais são os veículos idôneos e quais são os profissionais que se pautam por pesquisas e dados. Quem são os especialistas e quem são os populistas que pretendem fazer sucesso em cima de tantas mortes.
Como afirmar que o Brasil corre menos risco porque sua população é mais jovem, se ela é também muito mais desigual que a de países europeus que já se veem sobrecarregados pelos efeitos da pandemia? O negacionismo cria o bode expiatório. E esse fenômeno é recorrente na nossa história.
A conta agora recai sobre os idosos. Nossa sociedade não sabe lidar com a morte, e por isso relutamos tanto em envelhecer, criando o mito da eterna juventude. A juventude é uma construção histórica e cultural, que varia muito a cada época. Fica claro que somos uma sociedade que transforma a história e os idosos em “velharias”. Juventude não é, porém, uma qualidade — é uma forma de estar no mundo que independe de idade. E a pergunta que cada um de nós tem que fazer é: alguém tem o direito de dizer quem pode ou não pode morrer? No Ocidente a velhice é vista não como um momento de sabedoria, mas apenas como decrepitude. E isso também tem a ver com a tecnologia: velho é aquele que não sabe lidar com ela. Portanto, que seja isolado. E aguarde a morte. Pior: não sabemos falar sobre o luto. Não vemos o presidente do Brasil pronunciar uma única palavra de solidariedade às famílias das pessoas que morreram, como se não quisesse nem tocar no assunto. E a essa altura não existe quem não tenha o seu luto: um amigo, um inimigo, um parente, um conhecido.
Esse pensamento combina muito bem com uma sociedade que nega a história, por exemplo, ao dizer que em 1918 não tínhamos as condições de combate à crise que temos hoje. Esse é um uso equivocado e negacionista da história: refutar o passado e dizer que o que aconteceu naquela época não vai acontecer agora. Negar o passado significa também não aprender com ele — com nossos erros e acertos.
Se cuidarmos melhor das populações vulneráveis — e aí se incluem os idosos, a população de baixa renda e os negros e negras —, estaremos cuidando melhor de nós mesmos, não só numa dimensão simbólica, como também de maneira prática. Aliás, como mostra Silvio Almeida, não teremos uma democracia enquanto praticarmos um racismo institucional e estrutural como o que vivemos no Brasil. O racismo é institucional pois só vemos pessoas brancas nas posições de mando e direção. O racismo é estrutural uma vez que se insere, perversamente, em todas as entranhas do sistema: na saúde, na educação, no trabalho, nos transportes, nos índices de nascimento e de morte. É estrutural, também, pois parece “natural” e invisível por parte das elites. Somos capazes de “ver”, pois esse é um atributo biológico; no entanto, temos muita dificuldade de “enxergar”, uma vez que essa é uma escolha cultural e todos nós somos “míopes culturais” e sistematicamente fazemos da “branquitude” uma realidade sem pejas e receios.
O racismo foi uma criação branca, portanto, cabe a toda a sociedade brasileira lidar com ele. O protagonismo é de negras, negros e negres (numa referência aqui a identidades de gênero), mas a pauta é de todos nós. Por sinal, nada mais denunciador do que o conceito de “novo normal”. A pergunta que não quer calar é: “novo normal” para quem? Para as elites que moram em seus “lares”, têm seus computadores individuais e quartos privativos ou para a imensa maioria da população brasileira que não tem acesso a essas benesses?
Já não basta dizer que não somos racistas. Não funciona mais. É preciso ser antirracista, como definiram Angela Davis e Djamila Ribeiro aqui no Brasil. E ter certeza de que a questão não é só moral. Trata-se de uma responsabilidade que implica ações e atitudes de todos nós, em todos os lugares e setores.
Somos um país que vai se mostrando avesso a qualquer tipo de “ressarcimento”, e mesmo à memória. Por exemplo, nunca aprovamos uma política de ressarcimento aos ex-escravizados e ex-escravizadas; na verdade, foram eles os únicos a pagar por suas alforrias, uma vez que compensavam, com o esforço de seus trabalhos, os proprietários e senhores de escravos, comprando a própria liberdade.
O mesmo aconteceu com o golpe militar de 1964. Enquanto outros países vizinhos fizeram comissões e julgaram e puniram os militares envolvidos nas ditaduras latino-americanas, o processo no Brasil foi muito mais brando. Até porque a Constituição de 1988 permitiu a autonomia das Forças Armadas para definir assuntos de seu interesse. O resultado ficou latente no andamento da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório final foi entregue à então presidente Dilma Rousseff em 10 de dezembro de 2014. O documento apontou 377 responsáveis direta ou indiretamente pela prática de tortura e assassinato entre 1964 e 1985. Mas a indicação dessas pessoas não implicou sua “responsabilização jurídica”. O relatório fez recomendações ao governo, entre as quais a de que os acusados de cometer crimes contra a humanidade respondessem na Justiça, além de recomendar o necessário reconhecimento pelas Forças Armadas de seu papel na violação de direitos humanos no Brasil. No entanto, a responsabilização criminal, que daria ensejo a uma revisão da Lei da Anistia de 1979, não foi unanimidade e a situação permanece intocada até hoje.
Aliás, impressiona o lugar do Exército na história do Brasil, que garante para si esse papel “tutelar”, de “salvador” da pátria. Os países têm exército e têm também toda uma população de reserva para a hipótese de haver uma guerra. Se o Estado brasileiro levasse a sério a metáfora bélica, que tanto utiliza, deveria ter criado uma estrutura semelhante para lutar nas “guerras de saúde”. Mas ele não dispõe nem sequer de um sistema para prevenir epidemias e se dá ao luxo de demitir dois Ministros da Saúde especialistas, para colocar um militar no comando provisório (e permanente) da pasta. É preciso inverter os termos bélicos, e pensar que essa pode ser uma “crise humanitária”, que depende de todos nós.
Uma doença só existe quando se concorda que ela existe. É preciso mostrar para a população que estamos doentes. Se não temos diretrizes claras por parte do governo, se nosso presidente insiste em dar contraexemplos e apoiar aglomerações, não há argumento que dê conta de se opor ao negacionismo de parte da população brasileira.
Passaram-se cem anos desde que a gripe espanhola chegou ao Brasil, e as alternativas que temos hoje para combater a pandemia da covid-19 não são muito diferentes das usadas naquela época. As reações em 1918 foram muito semelhantes às de agora: havia poucas pessoas nas ruas, todas usando máscara, as igrejas ficaram fechadas, os teatros eram lavados com detergente, os bondes limpos com álcool. A humanidade ainda não inventou outra maneira de lidar com a pandemia a não ser aguardar o remédio ou a vacina.
Nossa prepotência é um pouco esta: achar que somos uma sociedade muito racional, que se pauta pela tecnologia, quando na verdade estamos sempre esperando por um milagre atrás do último arco-íris.
Toda vez que passamos por uma grande crise, nossa principal reação é basicamente a mesma: “Agora nós aprendemos, nunca mais vamos fazer isso”. Mas as crises continuam a acontecer. A pandemia já vinha se anunciando, e as nações não tomaram atitudes preventivas, buscando montar exércitos da saúde. Era preciso que se antecipassem à pandemia, não que corressem atrás do prejuízo. Se a humanidade aprendesse com o passado, os historiadores seriam visionários. Mas, infelizmente, não acredito na ideia de que nós deixamos de repetir o passado. Infelizmente a humanidade é teimosa. Vem se repetindo em termos de violência, de intolerância, de racismo, de xenofobia. Mas, já que é a primeira vez que esta geração vive algo do tipo, quem sabe algumas coisas não mudam? Vários países já estão começando a pensar em estruturas que não apenas reajam, mas prevejam pandemias como esta e outras que virão.
O problema é que nós temos no Brasil um governo que não acredita na ciência. Um governo autoritário e populista que só acredita em si mesmo, acha que tem respostas para tudo e fala diretamente com o povo, sem necessidade da ciência, dos acadêmicos, dos jornalistas, das instituições democráticas. Em horas como esta, fica cada vez mais claro que a saída virá da ciência, com a vacina ou o remédio que venha a controlar a pandemia. Na época da gripe espanhola, Carlos Chagas se tornou mais popular do que cantores e jogadores de futebol — as charges retratavam isso.
Não estranharia se nossos próximos presidentes fossem médicos. O que vários países estão aprendendo é a importância de ter um Ministério da Saúde forte, ocupado por especialistas de verdade, e não contar apenas com um político, mas com um político especialista. A ciência, antes o grande vilão, é hoje a grande utopia.
Sou pessimista no atacado e otimista no varejo. Se cada um exercer sua cidadania, sua vigilância cidadã, quem sabe damos sorte no azar. Quem sabe fazemos dessa crise única na história brasileira — porque é social, econômica, ambiental, cultural, moral e da saúde — uma oportunidade. O fato é que a sociedade civil está comparecendo. A população acordou para a importância do SUS e da ciência. Lutar pelo SUS , nesse momento, é virar um defensor dos direitos humanos. O Brasil já se perdeu e já se encontrou várias vezes em sua história. O novo coronavírus está gerando muita dor, muita solidão, muita insegurança, muito luto. Mas é hora de fazer da crise um propósito. Quem sabe construiremos um cotidiano com mais tempo e qualidade? Quem sabe não aprenderemos a dar tempo ao tempo?
Já havia muitos sinais do desgaste da utopia tecnológica do século que agora termina. É mais do que óbvio o quanto estávamos e ainda estamos abusando da natureza, e os desastres climáticos e ambientais de proporções inéditas são prova disso. Há muito tempo vimos recebendo alertas de cientistas, ambientalistas, ativistas e lideranças indígenas sobre a “queda do céu”, título do impressionante livro de Davi Kopenawa. Nossa marcha desenfreada pela tecnologia agora se depara com essa pandemia, e começamos a nos despedir, tristemente, da utopia do século XX. Bem-vindos ao século XXI.
Lilia Moritz Schwarcz, "Quando acaba o século XX"
Falar, calar
Hoje eu falo de silêncio. Eu, que amo as palavras, hoje fico nos espaços brancos e nas entrelinhas. Fico ausente, estou ausente embora de longe siga pelo milagre da tecnologia tudo o que acontece onde me leem neste instante.
Ausente presente como tantas vezes tantas pessoas.
Nas histórias que relato ou invento, hoje não me interessam tanto as tramas e os personagens: somos todos sombras que andam de um lado para o outro, aparecem e desaparecem em quartos, corredores, jardins. Caem de escadas, jogam-se no poço, naufragam como rostos ou ratos.
A mim seduzem palavras e silêncios, e jeitos de olhar. O formato de uma boca melancólica, ou o baixar de uma pálpebra que esconde o desejo de morrer ou de matar, ódio ou desamparo, hipocrisia, ah, o olhar sorrateiro, o estrábico olhar dos mentirosos.
A mim interessam as coisas que normalmente ninguém valoriza. Porque o real está no escondido. Por isso escrevo: para esconjurar o avesso das coisas e da vida, de onde nos vem o medo, que impulsiona como a esperança.
Nas relações amorosas, sou fascinada pela fração de segundo, o lapso mínimo em que os olhares se desencontram e a palavra que podia ser pronunciada se recolhe por pusilanimidade, egoísmo ou autocompaixão. E a cumplicidade se rompe e a gente se sente sozinha.
O caminho do desencontro é ladrilhado de silêncios, quando se devia falar, e de palavras quando melhor teria sido ficar calado: e a gente sabia, ah, sim, sabia. Pior: é ladrilhado de gestos que não foram feitos quando o outro precisava.
E no silêncio o peso da omissão, cumplicidade com o erro, se agiganta.
Ausente presente como tantas vezes tantas pessoas.
Nas histórias que relato ou invento, hoje não me interessam tanto as tramas e os personagens: somos todos sombras que andam de um lado para o outro, aparecem e desaparecem em quartos, corredores, jardins. Caem de escadas, jogam-se no poço, naufragam como rostos ou ratos.
A mim seduzem palavras e silêncios, e jeitos de olhar. O formato de uma boca melancólica, ou o baixar de uma pálpebra que esconde o desejo de morrer ou de matar, ódio ou desamparo, hipocrisia, ah, o olhar sorrateiro, o estrábico olhar dos mentirosos.
A mim interessam as coisas que normalmente ninguém valoriza. Porque o real está no escondido. Por isso escrevo: para esconjurar o avesso das coisas e da vida, de onde nos vem o medo, que impulsiona como a esperança.
Nas relações amorosas, sou fascinada pela fração de segundo, o lapso mínimo em que os olhares se desencontram e a palavra que podia ser pronunciada se recolhe por pusilanimidade, egoísmo ou autocompaixão. E a cumplicidade se rompe e a gente se sente sozinha.
O caminho do desencontro é ladrilhado de silêncios, quando se devia falar, e de palavras quando melhor teria sido ficar calado: e a gente sabia, ah, sim, sabia. Pior: é ladrilhado de gestos que não foram feitos quando o outro precisava.
E no silêncio o peso da omissão, cumplicidade com o erro, se agiganta.
Lya Luft
Com o mundo nas mãos
Bernardo tem cinco anos, mas já sabe da existência do Japão. E aponta para o céu com o dedo: “É atrás daquele teto azul que fica o Japão”. Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum. “Mas então o céu não é o teto do mundo”. “Não: o céu é o céu. O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O Japão fica é lá embaixo” e apontei para o chão: “O mundo é redondo feito uma bola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu mesmo, mais nada. Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de desilusão: “ Então este Brasil é mesmo o fim do mundo.
Daqui pra lá não tem mais nada... Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão estar lá embaixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não caem” Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.
Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feito de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões.
O menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei.
Consegui convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha nova aquisição. Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar.
Daqui pra lá não tem mais nada... Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão estar lá embaixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não caem” Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.
Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feito de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões.
O menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei.
Consegui convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha nova aquisição. Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar.
Descobri que a Coreia é muito mais lá para cima do que eu imaginava uma espécie de penduricalho da China, ali mesmo no costado do Japão. O que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali, tão longe de casa.
O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não encontrei.
Continua sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem.
Outra confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo; Síria, Líbano, Arábia Saudita, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom de geografia. Duvido que alguém me diga onde fica Andorra.
A última pessoa a quem perguntei me disse que ficava nos limites de Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso todo no Festival da Canção.
Em compensação, a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa quase todo o Pólo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de soprar para encher o mundo. De repente me vem uma ideia meio paranoide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio murcho, acho que o ar está se escapando.
E quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com meu sopro.
O nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo, e do tamanho desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios de peixes e singrados por navios, as cidades agarradas aos continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar riscado de aviões, de gaivotas e de urubus...
Tudo isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um segundo de satisfação ao longo dos séculos de História, não mais que alguns minutos em face da eternidade.
Que aventura mais temerária, a de Deus, escolhendo caprichosamente este lindo e insignificante planetinha para a ele enviar através dos espaços o seu Filho feito homem, com a missão de redimir a nossa pobre humanidade. Faço votos que tenha valido a pena e que um dia ela se veja redimida.
Até lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu filho Bernardo, irrompendo alegremente no escritório, me arrebata das mãos e sai chutando pela casa.
O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não encontrei.
Continua sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem.
Outra confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo; Síria, Líbano, Arábia Saudita, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom de geografia. Duvido que alguém me diga onde fica Andorra.
A última pessoa a quem perguntei me disse que ficava nos limites de Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso todo no Festival da Canção.
Em compensação, a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa quase todo o Pólo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de soprar para encher o mundo. De repente me vem uma ideia meio paranoide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio murcho, acho que o ar está se escapando.
E quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com meu sopro.
O nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo, e do tamanho desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios de peixes e singrados por navios, as cidades agarradas aos continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar riscado de aviões, de gaivotas e de urubus...
Tudo isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um segundo de satisfação ao longo dos séculos de História, não mais que alguns minutos em face da eternidade.
Que aventura mais temerária, a de Deus, escolhendo caprichosamente este lindo e insignificante planetinha para a ele enviar através dos espaços o seu Filho feito homem, com a missão de redimir a nossa pobre humanidade. Faço votos que tenha valido a pena e que um dia ela se veja redimida.
Até lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu filho Bernardo, irrompendo alegremente no escritório, me arrebata das mãos e sai chutando pela casa.
Fernando Sabino, "As Melhores Crônicas de Fernando Sabino"
A guerra dos 100 mil anos
Nunca houve guerras boas. Todas trazem sofrimento para muitos e ganhos para alguns. Contudo, a situação atual confirma o ditado popular de que “nada está tão ruim que não possa piorar”. Dito e feito: o que já era ruim ficou pior.
Além da destruição normal provocada por qualquer conflito, hoje em dia as guerras estão tornando ainda mais difícil o esforço da humanidade para conter o aquecimento global. Segundo o Serviço de Mudanças Climáticas europeu (Copernicus), em 2023 a temperatura do planeta foi a mais elevada dos últimos 100 mil anos.
De maneira pontual, as guerras modernas em si já provocam aumento das emissões de gases efeito estufa, resultante do aumento da queima de combustíveis fósseis pelos veículos e equipamentos utilizados.
Porém, as guerras podem provocar outros impactos mais sutis (e muito mais expressivos) sobre o enfrentamento do caos climático, que vem se mostrando iminente. Um deles tem a ver com a pergunta central no debate da mudança climática: quem vai pagar a conta?
Basta observar a dificuldade dos governos europeus e do americano em defender uma provisão orçamentária para a prevenção e adaptação às consequências da mudança climática. Quando uma guerra começa, o dinheiro disponível é direcionado para o mercado de defesa. É o que está acontecendo com os conflitos da Ucrânia e de Gaza.
No caso ucraniano, a nova guerra atingiu a oferta de grãos e o mercado de fertilizantes. Pela primeira vez na história, a crise dos alimentos alcança a escala de ‘elemento estratégico’ para os países.
Na correria dos europeus para garantirem sua independência alimentar e energética, abandonou-se acordos multilaterais que vinham tratando da transição da matriz de energia, descarbonização da economia etc.
Por sua vez, o parlamento dos EUA, de maioria republicana, aumentou sua resistência à destinação de recursos para cooperação ambiental mundo afora diante da prioridade de apoio a Israel e Ucrânia.
Nesse cenário aquecido, se a humanidade quiser realmente esfriar o planeta precisará, antes de mais nada, esfriar a cabeça.
Além da destruição normal provocada por qualquer conflito, hoje em dia as guerras estão tornando ainda mais difícil o esforço da humanidade para conter o aquecimento global. Segundo o Serviço de Mudanças Climáticas europeu (Copernicus), em 2023 a temperatura do planeta foi a mais elevada dos últimos 100 mil anos.
De maneira pontual, as guerras modernas em si já provocam aumento das emissões de gases efeito estufa, resultante do aumento da queima de combustíveis fósseis pelos veículos e equipamentos utilizados.
Porém, as guerras podem provocar outros impactos mais sutis (e muito mais expressivos) sobre o enfrentamento do caos climático, que vem se mostrando iminente. Um deles tem a ver com a pergunta central no debate da mudança climática: quem vai pagar a conta?
Basta observar a dificuldade dos governos europeus e do americano em defender uma provisão orçamentária para a prevenção e adaptação às consequências da mudança climática. Quando uma guerra começa, o dinheiro disponível é direcionado para o mercado de defesa. É o que está acontecendo com os conflitos da Ucrânia e de Gaza.
No caso ucraniano, a nova guerra atingiu a oferta de grãos e o mercado de fertilizantes. Pela primeira vez na história, a crise dos alimentos alcança a escala de ‘elemento estratégico’ para os países.
Na correria dos europeus para garantirem sua independência alimentar e energética, abandonou-se acordos multilaterais que vinham tratando da transição da matriz de energia, descarbonização da economia etc.
Por sua vez, o parlamento dos EUA, de maioria republicana, aumentou sua resistência à destinação de recursos para cooperação ambiental mundo afora diante da prioridade de apoio a Israel e Ucrânia.
Nesse cenário aquecido, se a humanidade quiser realmente esfriar o planeta precisará, antes de mais nada, esfriar a cabeça.
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