segunda-feira, 26 de junho de 2023

Brasil do dia a dia

 


Odores nada republicanos

Meio século atrás, Stanislaw Ponte Preta, heterônimo humorístico do escritor e jornalista Sérgio Porto, cunhou o neologismo "depufede", inicialmente em referência a um deputado federal que, para combater o comunismo no país, queria proibir a vodca. Nada muito estranho: era época da "Redentora", outra malícia sua para a ditadura militar. Muito ativo na imprensa carioca, ele investia contra o que chamava de "Febeapá", Festival de Besteiras que Assola o País.

A atualidade de Lalau, nome carinhoso do cronista, põe-se todo instante à prova na vida pública atual, onde a besteira, elevada ao zênite, corrói a civilidade institucional num verdadeiro culto à estupidez. Embora antenados a um determinado momento, seus ditos afiados guardam algo de intemporal, como as tiradas de Mark Twain. "Leitor, vamos supor que você fosse um idiota. E vamos supor que você fosse membro do Congresso. Mas estou me repetindo", boutade de Twain. "Depufede", agulhada de Stanislaw.


Na leitura da esfera pública, a reprise de sátiras pode comportar atualização, especialmente quando o sensório, não mais apenas o palavreado, se faz incontornável. Nunca foram tão mobilizáveis as emoções explicativas, mas permanece à margem o sentido do odor. Sobre isso o marketing sensorial tem algo a ensinar, no capítulo dos perfumes, ao falar de "famílias olfativas" como conjuntos de essências com diversas semelhanças entre si.

Reinterpretada, a expressão depufede cresce em literalidade semântica quando a Câmara de Deputados aprova um projeto de lei que criminaliza a malevolência verbal contra seus próprios membros, parentes e colaboradores. Se vivos, Twain e Stanislaw seriam alvos naturais. Mas um representante da dignidade minoritária, contrário ao projeto, objetou: "Cheira mal!" No Senado se tapou o nariz.

Esse tipo de juízo corrobora a hipótese de que a raiz mais antiga da vida emocional esteja no olfato. Bem o sabia o apóstolo Paulo: "Nós somos o aroma de Cristo, espalhando sua fragrância em todos os lugares" (2 Coríntios 2:15). Ou então José Saramago: "A maior dificuldade para chegar a viver razoavelmente no inferno é o cheiro que lá há" ("Ensaio sobre a Cegueira").

O neologismo de Lalau adquire plenitude em famílias olfativas cevadas no recente chorume legislativo. Não é bodum físico igual ao do avião de drogas do ex-deputado, tio de senadora. É mau cheiro moral, exalado de conjuntos híbridos de roubos, cinismos e chantagens. Isso requer jornalismo de nariz apurado, capaz de espelhar sinestesicamente, como se faz com sensação térmica, a náusea social. Já existem exemplares ferroadas estéticas, como "sertanojo", de José Simão. Depufede é, politicamente, a bandeira amarela do fisiologismo metastático.

Taxas malditas

O Brasil tem muitas taxas malditas – de analfabetismo, desnutrição, concentração de renda, juros ….- mas preferimos indicar culpados, em vez de buscar as causas. Mantivemos uma maldita taxa de 100% de habitantes pretos escravos, até que uma lei abolisse este sistema, sem enfrentar as causas da escravidão. Até hoje, a maldita taxa de analfabetismo entre adultos condena milhares de brasileiros a trabalho em condições análogas à escravidão. A redução das malditas taxas de juros deve enfrentar a maldita baixa taxa na oferta de poupança e a elevada maldita taxa de demanda por crédito.


O Banco Central pode decretar a taxa de juros básica que lhe aprouver, mas as consequências virão depois, tanto quanto as consequências da doença de um paciente com médico negacionista. Enganar não cura, o negacionismo não ensina. O engano negacionista assassinou milhares de pessoas por covid, a determinação voluntariosa da taxa juros pode levar o Brasil à recessão, se for alta, ou à convulsão de inflação alta, se for baixa.

Ninguém pode estimar exatamente qual a taxa de juros certa para manter a moeda sem inflação, deixando a economia crescer e gerar emprego. Ainda menos os políticos, de olho nos desejos e ilusões dos eleitores, que se comportam como os familiares que pedem ao médico para dizer que a temperatura do paciente não está muito elevada. Se fosse determinada pela vontade do governo, a taxa de juros poderia ficar baixa para dinamizar a economia, ou ser elevada para evitar inflação como aconteceu em anos recentes, quando chegou a 49,75%, com FHC, 26,9% com Lula, 14,25% com Dilma e 13,75% com Bolsonaro.

No lugar de denunciar o presidente do Banco Central com culpado pela maldita taxa de juros que ele não determina sozinho, deveríamos pensar como fazer para que o Brasil poupe mais e use menos crédito, para que as forças econômicas confiem no futuro, e os juros caiam independente de quem esteja no Banco Central”.

É ilusão negacionista achar que a taxa de juros depende da vontade dos dirigentes do Banco Central, seu conselho, ou ainda pior, de seu presidente. Ela depende da disposição dos brasileiros para poupar ou consumir, para comprar à vista ou a prazo. Enquanto formos uma sociedade com voracidade de consumo e anorexia de poupança, os juros serão altos ou serão mentirosos, e caminharemos para a convulsão da inflação. Ninguém sabe qual deve ser a taxa de juros correta, mas é melhor deixar sua definição no conhecimento de um Banco Central independente, do que na vontade de eleitos querendo agradar seus eleitores.

O depressivo na contramão

Em seu último livro, O tempo e o cão — A atualidade das depressões (Boitempo), a psicanalista Maria Rita Kehl nos provoca com uma hipótese sobre a qual vale a pena pensar: a depressão, que vem se tornando uma epidemia mundial desde os anos 70, pode ser a versão contemporânea do mal-estar na civilização. Ela teria algo a dizer sobre a forma como estamos vivendo e sobre os valores da nossa época. Para além da patologia, a depressão pode ser vista também como um sintoma social.

O que nossa época nos exige? Euforia, confiança, velocidade. Temos de ser proativos. O que ela nos promete? Se soubermos traçar nossas metas e construir nossa estratégia, atingiremos o sucesso. Se produzirmos e consumirmos, alcançaremos a felicidade. Ser feliz deixou de ser uma possibilidade esporádica para se tornar uma obrigação permanente. Para nós, seres dessa época, nada menos que o gozo pleno. Fora disso, só o fracasso. E o fracasso, este é sempre pessoal. Se não alcançamos o que nos prometeram no final do arco-íris, é porque cometemos algum erro no caminho. E fracassar, como sabemos, passou a ser não um fato inerente à vida, mas uma vergonha.

O depressivo, nesse contexto, é a voz dissonante. É o cara na contramão atrapalhando o tráfego, como na letra de Chico Buarque. Como diz Maria Rita, é aquele “que desafina o coro dos contentes”. Ela afirma, logo no início do livro: “Analisar as depressões como uma das expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam, em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão ruidoso quanto foram as histéricas no século 19. A depressão é a expressão do mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo desenfreado”.

Nesse sentido, a mera existência do depressivo aponta, nas palavras da psicanalista, a má notícia que ninguém quer saber. Se basta ser proativo, bem-sucedido e saudável, por que tantos e cada vez mais, como mostram as estatísticas, são classificados como depressivos?

“A depressão”, diz Maria Rita, “é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social dessa primeira década do século 21. Por isso mesmo, os depressivos, além de se sentirem na contramão do seu tempo, veem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social da sua tristeza”.

Cada época cria seus proscritos. Na época da euforia e da velocidade, nada mais desafinado do que um depressivo. Se, em vez de hoje, o depressivo, então chamado de melancólico, vivesse no romantismo do final do século 18, “estaria tão adequado à cultura e aos valores de sua época quanto um perverso hospedado no castelo do marquês de Sade”.

Hoje, porém, os depressivos parecem ser não só os portadores de uma má notícia, mas de uma doença contagiosa. Quem quer ter por perto alguém que sofre num mundo cuja existência só se justifica pelo sucesso e pela felicidade plena? Num mundo em que todos têm de estar “de bem com a vida” para merecer companhia?

O depressivo não apenas sofre, mas silencia num mundo em que as pessoas preenchem todos os espaços com sua voz. E não apenas silencia, mas em vez de preencher seu tempo com dezenas de tarefas, uma agenda cheia, se amontoa no sofá da sala e nada quer fazer. Não só é lento, como chega a ser imóvel. Sua mera existência nega todos os valores propagandeados dia após dia ao redor de nós — e também pelo nosso próprio discurso afirmativo e de autoconvencimento.

Ao existir, o depressivo faz uma resistência política passiva ao establishment. Obviamente, ele não é um ativista nem tem consciência disso e preferiria não sofrer tanto. O que Maria Rita nos propõe é enxergar a depressão para além dos aspectos clínicos. Enxergar também como sintoma da sociedade em que vivemos. Como a psicanalista competente que é, o que ela nos propõe é escutar. Nesse caso, escutar o que a depressão tem a nos dizer quando escutada como sintoma social, como expressão de um mal-estar no mundo.

Os medicamentos podem fazer diferença nas depressões graves num primeiro momento, para arrancar da apatia e possibilitar uma elaboração dessa dor que permita lidar com a vida de uma forma menos paralisante. Inclusive para romper com o imobilismo e buscar uma escuta pela psicoterapia ou pela psicanálise. Mas acreditar que a medicação resolve tudo é calar a dor de quem a vive. E, no âmbito social, é ignorar o que ela diz sobre o que há de torto em nosso mundo.

Afirmar que a indústria farmacêutica resolve tudo é tentar silenciar o impossível de ser silenciado, como prova a escalada das estatísticas da depressão. Na esfera social, significa dizer que é uma ótima vida correr desde que acorda até a hora de dormir, sem ter um minuto sequer para elaborar o que de bom e de ruim viveu naquele dia. Como o coelho da Alice, sempre com pressa, com pressa, com pressa... Sem tempo para viver a experiência. Ou, como diz Maria Rita, vivendo no tempo do outro.

Acreditar que a epidemia mundial de depressão pode ser erradicada com pílulas é afirmar que no nosso mundo nada falta. E um pouco mais grave que isso: é acreditar não apenas que é possível atingir uma vida em que nada falte, como atingi-la é uma mera questão de adaptação, proatividade e saúde.

Na esfera do indivíduo, tratar a depressão apenas com medicamentos é tornar ilegítima a dor de quem dói. É dizer ao depressivo que o que ele sente não merece ser escutado porque é produto apenas de uma disfunção bioquímica. É reforçar a crença de que o depressivo não tem nada a dizer sequer sobre ele mesmo. É cristalizar o estigma. Sem contar que tentar calar os sintomas da depressão à custa de remédios leva ao embotamento da experiência, ao esvaziamento da subjetividade. O que se sente é silenciado — e não elaborado. E, ainda que alguém achasse que vale a pena se anestesiar da condição humana, o efeito do remédio, como bem sabemos, é temporário.

Para alguns, encontrar médicos que resolvem tudo apenas com pílulas vai ao encontro de suas próprias crenças — e de sua necessidade de proteção. É mais fácil acreditarem ser vítimas de uma doença, uma disfunção que está fora deles, a pensar que é um pouco mais complexo e mais difícil de lidar do que isso. É mais fácil do que aceitar que cada um, como sujeito psíquico, está implicado nesse mal-estar. Eu tomo remédio e não preciso pensar que algo me incomoda. Eu engulo uma pílula e não preciso lidar com a inadequação que me faz sofrer.

É possível compreender que, para quem já está na contramão do mundo e é visto muitas vezes como um estorvo, ajuda não ter ainda mais essa “culpa”. Tranquiliza pensar que aquela dor que está sempre ali foi causada por uma disfunção involuntária dos neurotransmissores. E que pode ser resolvida com um comprimido.

O problema é que a realidade mostra que não é tão simples assim. Quem já fez tratamento com antidepressivos sabe que “curar” uma depressão não é o mesmo que tratar de uma micose ou mesmo de uma pneumonia. Não basta tomar remédio: é preciso expressar a dor, é necessário elaborar o sofrimento e, em geral, mudar a vida ou a forma de olhar para a vida e para si mesmo.

Ao conversar com minha filha sobre esse tema, ela fez um comentário que cabe nesse contexto. “É curioso como os filmes de ficção científica sempre usaram aquela imagem terrorífica de seres humanos levando uma injeção na nuca e se tornando embotados. Isso era assustador e nos assustava”, disse. “Agora, o que assustava passou a ser a vontade das pessoas. Elas querem tomar uma pílula, ou uma injeção na nuca, e ficar embotadas.”

Maria Rita sugere que vale a pena para todos — e não apenas para os depressivos — pensar o que a depressão está nos dizendo sobre nosso mundo. É isso ou continuar assistindo, impotentes, ao crescimento da epidemia, que atinge não apenas adultos, mas adolescentes e crianças, cada vez mais cedo. É preciso prestar atenção nesse mal-estar no mundo, escutá-lo, de verdade e com verdade, sem cair nos contos de fadas contemporâneos que transformam todos os monstros em déficits bioquímicos. Ao contrário de todas as profecias, a indústria farmacêutica não vai nos salvar de uma vida sem vida.

O livro de Maria Rita Kehl é complexo e vai muito além dessas minhas primeiras interpretações. Uma das questões mais instigantes é a relação entre a depressão e o tempo. O depressivo seria também aquele que se recusa a se inserir no tempo do outro. O nome do livro — O tempo e o cão — vem da experiência pessoal da psicanalista, ao atropelar um cachorro na estrada. Ela viu o cachorro, mas a velocidade em que estava a impedia de parar ou desviar completamente dele. Conseguiu apenas não matá-lo. Logo, o animal, cambaleando rumo ao acostamento, ficou para trás no espelho retrovisor.

É isso o que acontece com as nossas experiências na velocidade ditada pela nossa época. Diz Maria Rita: “Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. (...) Seu esquecimento (do cão) se somaria ao apagamento de milhares de outras percepções instantâneas às quais nos limitamos a reagir rapidamente para, em seguida, com igual rapidez, esquecê-las. (...) Do mau encontro que poderia ter acabado com a vida daquele cão, resultou uma ligeira mancha escura no meu para-choque. (...) O acidente da estrada me fez refletir a respeito da relação entre as depressões e a experiência do tempo, que na contemporaneidade praticamente se resume à experiência da velocidade”.

Penso que talvez sejamos, também, o próprio cachorro. Sempre cambaleando num mundo que nos atropela, num mundo cheio de atropeladores que têm tanto medo quanto nós. Somos esse vira-lata cambaleando e às vezes caindo, com tanto medo que terminem de nos atropelar, que às vezes morremos antes de medo que do atropelamento. Será que essa é a única narrativa possível para a nossa vida? Como atropelador ou como cachorro atropelado ou quase atropelado ou com medo de ser atropelado?

Por coincidência, estava zapeando na TV, quando encontrei a psicanalista no Café Filosófico da TV Cultura. Lá, ela fez algumas considerações muito interessantes. Anotei duas delas para acrescentar a esta coluna. “Nos dizem que ‘tempo é dinheiro’. Ora, tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma violência”, afirmou Maria Rita (citando o professor Antonio Candido). “Tempo é o tecido de nossas vidas.” E um pouco mais adiante: “Em qualquer sociedade, o poder se instaura por alguma forma de controle do tempo”.

Quem quiser ler o livro de Maria Rita Kehl precisa saber que é um livro difícil. Não se lê fácil como uma daquelas obras de autoajuda. Exige tempo, parada, reflexão. Para quem é leigo, é preciso ler e reler alguns trechos, voltar. Talvez até pular algumas partes que, depois de ler e voltar e reler, ainda assim não alcançamos. Mas vale todo o esforço.

Aprendi algo sobre isso, recentemente, ao ouvir Benjamin Moser, autor de Clarice, (Cosac Naify), uma excelente biografia de Clarice Lispector. Ele contou que os livros que mais gosta da escritora são os mais difíceis, aqueles que teve de ler para escrever a biografia, e não os primeiros que leu e compreendeu de imediato. Disse algo mais ou menos assim: “Os escritores têm de nos alcançar, mas nós também temos de alcançar os escritores”.

Acho que é isso. Vale a pena essa busca para alcançar alguns escritores e suas vozes a princípio obscuras. Alcançar alguém é sempre uma experiência rica — e intransferível. O livro de Maria Rita Kehl, assim como os livros mais estranhos de Clarice Lispector, vale porque ao final desse esforço há uma voz original, dissonante de todas as mesmices que ouvimos — e eventualmente repetimos.

Para mim, que acordo todos os dias — e especialmente na segunda-feira — pensando em como não sentir mal-estar num mundo tão brutal, que exige uma velocidade que me rouba a vida, fez todo o sentido. Só consigo viver porque a cada dia minha questão crucial não é me adaptar a um tempo que não é o meu. Mas encontrar formas de me recusar a viver segundo valores que para mim não fazem sentido, me recusar a viver no tempo do outro. É essa busca — e essa insubordinação — que me mantém em pé, ainda que às vezes cambaleando, como o cachorro atropelado por Maria Rita. E até caindo.
Eliane Brum, "A menina quebrada"

Fui bater nas Filipinas

Por uma dessas curvas que as tecnologias abrem todos os dias, fui bater nas Filipinas. E tive a surpresa de ser apresentado a um xará, com apetrechos informativos iguais ao nome e sobrenome de quem assina este artigo. Surpreso, vi-me habitando o país de Imelda Marcos (lembram-se?), a mulher do ditador Ferdinando, aquela que tinha uma coleção de 1,2 mil pares de sapatos. Um fenômeno de reencarnação, coincidência ou um drible perpetrado pela comunicação tecnológica nesses tempos de falsidades e meias verdades?

A jogadora que tentou me driblar tem o nome de IA, Inteligência Artificial. Marquei um encontro com a cuja, e batemos ligeiro papo sobre nós e outros personagens. Designada pelo gênero feminino, apesar de fazer parte de todos os gêneros, mesmo os indistinguíveis na sopra de letras com que são nomeados, ela confessou não ter emoções e, portanto, não iria responder a protocolar pergunta, “como está você”? Absolutamente racional, impunha limites para se comportar na linguagem.


Limites que se apresentaram no início do papo. Propus que me ajudasse a caminhar pelos jardins que circundavam a Academia de Platão, na vizinhança de Atenas. Meu sonho era dialogar um pouquinho com o filósofo. Resposta frustrante: não posso lhe ajudar. Não tenho poder para transportar pessoas ao passado ou ao futuro. Mas posso lhe ajudar com informações sobre o que Plato (assim mesmo) pensava. Aceitei e engatilhamos a conversa.

Continuo a perguntar: qual a diferença ou semelhança entre os tempos de Platão e os dias de hoje em matéria de corrupção? Sem grandes diferenças, respondeu. Desde sempre, os políticos agem de acordo com seus interesses, deixando de cumprir os deveres funcionais. Os verdadeiros estadistas, lembrou, devem ser motivados pelo desejo de servir o povo com profunda compreensão de justiça. Corruptos, então, como se deduz, existiam ontem e existem hoje.

Indaguei da senhora, equipada de artificial inteligência, como lembrou, se corremos o risco de vivenciar uma III Guerra Mundial. Mais uma vez, foi peremptória: não tem condição para garantir essa probabilidade, porque não dispõe de capacidade de prever o futuro. Foi um gesto de modéstia e sinceridade, conclui. Mas fez a ressalva de que é possível trabalhar para soluções pacíficas e evitar conflitos, usando-se, para tanto, ferramentas da diplomacia e da cooperação entre Nações. A interlocutora, desse modo, abriu uma fresta para a ocorrência de eventos que classificou como “catastróficos”. E clamou: temos de estar cientes de riscos potenciais e tomar medidas para mitigá-los.

No terreno do conhecimento sobre este figurante, a gentil madame pisou em falso. Fui parar nas Filipinas, na figura de um consultor político. Ocorre que a teia informativa que abrigava o filipino encaixava-se plenamente em minha trajetória. Por isso, reagi: quero saber sobre o fulano nascido em Luis Gomes, RN, Brasil. A senhora deve estar errada. Imediatamente, ela pediu desculpas, reconheceu que se confundiu e passou novas informações, incluindo as tarefas de jornalista, que também desenvolvo. Mesmo com palavras novas, o conteúdo foi o mesmo.

Sabia que o ChatGPT 4, mais avançado, abrigava a possibilidade de criar imagens a partir de uma situação descrita. Tanto que um amigo acionou a jovem senhora IA, que lhe mandou impressionantes desenhos de descrições para imagens que ele pediu: gatos brancos, de olhos amarelados; gatos pretos, de olhos esverdeados; um gato na praia chuvosa, usando guarda-chuva, a par de fotos de nossos ancestrais. Desenhos fantásticos.

Tenho poucas incertezas. Entre elas, a de que a IA, mesmo com a ligeireza para alinhavar trilhões de referências e encaminhar respostas em segundos para curiosos, não será capaz de se esquivar do cérebro humano. Que terá condição de distinguir entre a obra do autor e o plágio. Peguei no pé da aclamada IA quando contestei o painel sobre o tal pensador filipino. E leio que pegaram na mentira a última modelagem do ChatGPT, que usou informações falsas para cumprir rapidamente a tarefa que lhe foi pedida. Viveremos tempos de guerra entre a decisão humana e os dribles tecnológicos. Ufa!