quinta-feira, 2 de abril de 2020

Pensamento do dia


O destino dos 'ministérios éticos' nas crises

Em meados de 1992, com Fernando Collor já acossado pelas denúncias de corrupção deflagradas pelo irmão Pedro e com a CPI do PC trabalhando a todo o vapor rumo ao impeachment, setores do establishment político e da mídia começaram a apostar suas fichas no que chamavam de “ministério ético” para tocar o governo e salvar as coisas. Integrada por grandes nomes acima de qualquer suspeita, como Marcílio Marques Moreira na Economia, Célio Borja na Justiça e Adib Jatene na Saúde, entre outros, a equipe de Collor era um dream team para ninguém botar defeito. Em tese, poderia cumprir o papel de isolar o presidente acusado e manter a administração funcionando.

Cobrindo Congresso para O Globo em meio a essa crise, fui um dia, toda animada, perguntar ao então líder do Governo no Senado, Odacyr Soares, sobre a atuação do tal ministério ético: “Minha filha, isso é uma piada. Não tem ministério ético, nem aético, nem aidético! O que existe é presidencialismo, e o presidente é quem manda”. Estava certo ele ao jogar sua ducha de água fria na minha pauta. Nos meses seguintes, os “éticos” do governo Collor, em vez de assumir o comando, foram pedindo demissão ou sendo demitidos, um a um. Quando o impeachment chegou, forçando a renúncia do presidente em 30 de dezembro, já tinham vazado ou sido vazados.


Lembro disso ao ver a forma otimista com que estão sendo recebidos os movimentos de ministros como Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça) e Braga Netto (Casa Civil) em apoio o trabalho sensato e correto do colega da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que, contra a vontade de Jair Bolsonaro, continua sustentando a orientação pelo isolamento horizontal nessa fase da pandemia do coronavírus. Em meio ao comportamento desatinado do presidente, que critica abertamente as medidas decretadas por seu governo e pelos governadores, grava pronunciamentos na TV em que sobe e depois baixa o tom e usa o palco do Alvorada e as redes sociais para radicalizar de novo –, a posição do ministro da Saúde e dos colegas, incluindo os militares, é um bálsamo.

Esse sopro de sensatez é um alento. Há quem veja, até, a existência de dois governos paralelos, o dos ministros profissionais e o do presidente que, com seus filhos e a ala olavista radical, desobedece, sabota o trabalho e dissemina a insegurança na população. Rezemos para que Deus conserve o “ministério sensato” de Bolsonaro até porque, do jeito que as coisas estão, só Deus.

Mas o problema é que o presidente da República continua a se chamar Jair Messias Bolsonaro, eleito diretamente em outubro de 2018, empossado em janeiro de 2019 e detentor de todas as prerrogativas que lhe garante a Constituição. Nomear e demitir, vetar ou não vetar, autorizar gasto ou não autorizar, pedir decretação de Estado de Sítio ao Congresso, ser o comandante chefe das Forças Armadas, etc. Ilusão imaginar que um punhado de ministros, por mais bem intencionado e articulado politicamente que seja, vá liderar e levar sozinho o país nessa difícil travessia.

Jair Bolsonaro, que assim como o doido que não rasga dinheiro, não comete suicídio político, vai e vem, estica e solta a corda, acelera e freia. Tem método na loucura e assim continuará, reagindo a qualquer arranjo político patrocinado por forças que tentem tutelá-lo. No plano institucional, tais situações não se resolvem com jeitinho. Como ensina a história – e Collor está aí para mostrar – há momentos em que a agonia só acaba, recuperando-se um mínimo de segurança para o país, quando os homens (e mulheres), tementes ou não a Deus, resolvem cortar o mal pela raiz, com os instrumentos legítimos da democracia e do Estado de Direito.
Helena Chagas

Afastai-vos do mal

Tudo o que sustento é que nesta terra existem pestilências e existem vítimas, e que cabe a nós, dentro do possível, não juntar forças com as pestilências 
Albert Camus, "A peste"

Morrer do vírus ou da arrogância?

Como os números o demonstram, os países asiáticos estavam mais bem preparados para enfrentar esta ameaça. Claro que podemos sempre criticar a forma como a China terá ocultado os primeiros sinais da epidemia (a História encarregar-se-á de o esclarecer), mas não podemos ignorar que, apesar disso, nações como a Coreia do Sul, Taiwan e Singapura (consideradas democracias) foram rápidas a tomar decisões e a controlar os focos de contágio.

Os factos são elucidativos. Aos primeiros sinais, esses países acionaram os seus planos de emergência – não os começaram a escrever, nesse momento. Garantiram também que existiriam ventiladores suficientes nos hospitais – não os começaram a encomendar quando as enfermarias ficaram sobrelotadas. Certificaram-se de que tinham kits para testar todos os que tenham contactado com alguém infetado – e não apenas os suficientes para os que apresentassem sintomas da doença. Providenciaram a existência de máscaras para toda a população (já habituada a usá-las) – e não as tinham racionadas para servir, à justa, os médicos e enfermeiros na linha da frente. Finalmente, puseram em campo algo inédito em epidemias anteriores: um enorme manancial tecnológico e de Inteligência Artificial, capaz de fazer de cada smartphone um posto de vigilância individual e, em simultâneo, de segurança coletiva (hipotecando com isso, é certo, a privacidade ao bem comum). Em todos esses países, desde o primeiro momento, não houve espaço para excessos de confiança nem, muito menos, para a balela arrogante de que era apenas “mais uma gripe”.


Confesso que aprendi muito sobre isto a ler alguém que, até há poucos dias, me era um perfeito desconhecido: Kim Woo-ju, especialista em doenças infectocontagiosas e o professor mais antigo da principal universidade de Seul, na Coreia do Sul. Nos últimos 30 anos, ele esteve sempre na primeira linha de combate aos focos epidémicos que assolaram aquele lado do planeta: sida, SARS, MERS, gripe suína, gripe das aves, etc. Alia, com uma série de outros colegas, um vasto conhecimento científico a uma experiência rara de ação. Não tem dúvidas de que o combate à Covid-19 vai ser longo e difícil. Mostra-se estupefacto por nos países ocidentais não se promover o uso da máscara entre a população – “só pode ser por razões económicas”, refere –, mas também reconhece que há fatores culturais e de experiência recente que dividem os dois mundos. “Nós já não precisamos de ensinar às pessoas como se lavam as mãos, porque fizemos isso, em larga escala, nas epidemias anteriores”, sublinha.

Ao contrário de outros conflitos, esta guerra não será resolvida pelo poderio militar ou por sanções económicas. Quem vai derrotar o vírus, com medicamentos e uma vacina, serão os cientistas. Só que estes, para poderem triunfar, precisam do enquadramento adequado, como sublinha Kim Woo-ju:“Isto é Ciência; precisamos de ser humildes. No momento em que nos tornarmos arrogantes, perdemos. Vamos precisar de manter a humildade até que isto termine.”

Há, por isso, uma lição que devíamos aprender com esta crise e que se resume a uma única palavra: humildade. Vai ser com a “humildade” de testarem centenas de medicamentos e de hipóteses que os cientistas vão encontrar uma cura para o vírus. Sem fanfarronices e a aprender com a experiência. Terá de ser também com a mesma humildade que os países vão ter de procurar soluções para a guerra seguinte. Se a “humildade científica” salva vidas, terá de ser a “humildade política” a salvar os empregos, as empresas e a reconstruir a economia. Com uma certeza: a de que nunca houve outra crise como esta, tão global. Desta vez, trata-se apenas de tentar repor o que existia, como se fez na Europa depois da II Guerra Mundial: reconstruir o que tinha sido destruído pelas bombas. Apenas e só isso, sem imposições de reformas ou de ajustamentos. Garantir que as empresas voltam a funcionar, que as pessoas regressam aos seus empregos, que tudo será de novo o que era antes do vírus.

Se o souber fazer com humildade e respeito pelas pessoas, sem clivagens regionais, a Europa terá aqui uma oportunidade de voltar a demonstrar que o seu projeto, assente na solidariedade, na liberdade, na democracia e no desenvolvimento, é o melhor exemplo para o mundo. Se, ao contrário, insistir no estilo arrogante do “salve-se quem puder e for mais rico” dos tempos de 2008-2009, então pode perder quaisquer ilusões de futuro. Não morrerá do vírus, mas da falta de humildade. Ou antes: da sua arrogância.

Só faltava chorar

Não foi a primeira vez nessa crise sanitária que o presidente Bolsonaro deu sinais de que iria voltar atrás para logo em seguida destruir o esforço conciliatório. A primeira foi quando recuou da convocação para a manifestação contra Supremo e Congresso e depois correu para os braços dos manifestantes. A segunda aconteceu quando ele disse estar havendo uma histeria no país para em seguida recuar e adiante anunciar que faria uma festinha para comemorar seu aniversário e o da mulher. E, finalmente, diz num pronunciamento que a Covid-19 não passa de uma gripezinha e culpa os governadores por futura crise econômica. Depois, em novo pronunciamento fala em entendimento e trabalho conjunto com as autoridades estaduais e, no dia seguinte, compartilha vídeo fake com críticas aos governadores.

Não dá para levar este homem a sério. Os jornais de ontem apontaram a mudança de tom do presidente. Foi uma benevolência arriscada. Embora a afirmativa fosse correta, Bolsonaro de fato mudara o tom, era óbvio que a nova abordagem sobre o tema não duraria muito. Pois durou menos de 12 horas. O depoimento pregando a conciliação foi ao ar às 20h30m de terça. O vídeo com ataque aos governadores foi compartilhado às 7h57m de ontem. Já escrevi aqui, há muito pouco tempo, que não podemos passar a mão na cabeça de Bolsonaro como se fosse um menino travesso que pede desculpas depois de fazer uma arte. Ele não merece mais a confiança dos brasileiros.



O presidente está muito mal cercado. Os únicos assessores que ouve são os filhos e os terraplanistas de sempre. Gente séria, que aparentemente só deseja o melhor para o país, como os ministros Braga Netto, Tereza Cristina, Tarcísio de Freitas, Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro e Paulo Guedes não conseguem romper o círculo de ferro e ódio armado em torno de Bolsonaro. Os que chegam a se aproximar um pouco mais são logo sabotados por Zero Um, Zero Dois e Bananinha. O Zero Dois agora sentou praça dentro do Palácio do Planalto. Pode? Acho que não, mas no estilo de governar desta turma muito não pode e ela ainda assim segue fazendo.

A novidade desses dias é que o presidente tem chorado. Só faltava essa. Matéria de Igor Gielow, na “Folha”, revela que Bolsonaro chorou numa reunião com gente que nem era de seu círculo mais próximo. Depois, no domingo, ao voltar do passeio pelas cidades-satélites do Distrito Federal, ele falou com jornalistas e deu para ver na TV seus olhos brilhando. Uma imagem do fotógrafo Orlando Brito da mesma cena não deixa dúvidas, ele quase chorou. Essas lágrimas significam duas coisas, uma delas identificada pelo repórter da “Folha”. Bolsonaro está fragilizado emocionalmente. Eu acrescento que essa emoção, se verdadeira, deveria ser atribuída às inúmeras bobagens que ele comete. Se fossem honestas, seriam lágrimas de arrependimento.

Mas não são honestas. O choro presidencial lembra outras lágrimas da história nacional. Me refiro a um episódio envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula chorou publicamente inúmeras vezes antes, depois e ao longo do seu mandato. Mas um deles, o que ocorreu no discurso após ter sido conduzido coercitivamente para depor em São Paulo, foi de puro oportunismo político. Não havia por que chorar, e um homem como Lula não se quebra facilmente. Tanto que não derramou uma lágrima sequer quando foi preso. Mas naquele discurso, lágrimas cairiam bem, dramatizariam um ato jurídico legal, embora desnecessário.

O presidente e o ex-presidente são de matizes absolutamente diferentes, mas as lágrimas de Bolsonaro agora não diferem em nada das de Lula de março de 2016. Na reunião com gente pouco conhecida, talvez quisesse que vazasse sua emoção fingida. No domingo passado, Bolsonaro tentou chorar quando falava dos brasileiros que precisam trabalhar para levar comida para casa. Francamente, um homem que não se importa que pessoas morram com a Covid-19 e que atrasou em uma semana a distribuição de recursos emergenciais aos mais pobres não vai chorar depois de passear no mercado da Ceilândia. Por isso aqueles olhos estavam apenas rasos d’água.

Imagem do Dia


Covid-19 reinventa o Estado forte

A recessão mundial de grandes proporções que bate à porta da humanidade coloca o papel do Estado como essencial para responder a esse grande desafio. A rigor ele é chamado a socorrer a economia em momentos de grave crise, como na Grande Depressão de 1929, nas Guerras Mundiais do século passado ou em outras crises sistêmicas.

O diferencial de hoje é que não basta apenas injetar dinheiro nas empresas como aconteceu na crise de 2008. É preciso também garantir renda para os trabalhadores que ficarão sem sustento e investir pesado em saúde. O foco não são as empresas, são as pessoas.

Governantes de países de economia liberal se movimentam para que os trabalhadores não sejam demitidos. Estão reduzindo impostos sobre a folha de pagamentos das empresas com o compromisso de não haver desemprego.

Na Inglaterra, pátria-mãe do liberalismo, o governo conservador de Boris Johnson adotou um pacote de 418 bilhões de libras a ser aplicado em várias áreas. Entre suas medidas está o pagamento de 75% do salário de quem ganha até 2.500 libras. Com isso, garante uma renda de R$ 14.900, para os desempregados. Donald Trump também vai na mesma direção. Adotou um programa de U$ 2,5 trilhões e anuncia que pagará mil dólares mensais para quem ficar em casa.



A despeito das medidas adotadas, que apenas mitigam a recessão, o grande debate que se trava ao redor do planeta é determinar qual seria o momento em que a quarentena deve ser relaxada para que a economia volte a funcionar. Um dos temores é que não está afastado o risco de convulsões sociais, com saques e violência. O pano de fundo poderá ser o desemprego dantesco e a falta de renda e de condições de saúde. Nos Estados Unidos o desemprego pode chegar a 20% e as estimativas são de queda no PIB americano de 20 a 25%(anualizada) no 2º trimestre, um desastre mesmo que haja uma recuperação acelerada do 3º trimestre. Os números não serão diferentes no Brasil.

Entretanto, a prioridade de todos os governos responsáveis é salvar vidas, razão pela qual o prazo da quarentena de diversos países tem sido ampliado. O próprio Donald Trump inicialmente refratário a essa medida, estendeu sua validade até 30 de abril. O que há é uma tomada de consciência de que o retorno das atividades econômicas deve se dar de forma programada e depois do pico da pandemia. O lockdown deve ser evitado e só deve ser adotado diante da iminência real do colapso do sistema de saúde.

No Brasil a necessidade de uma intervenção do Estado é mais gritante. Temos 44 milhões de trabalhadores informais, quase treze milhões de desempregados. Estima-se que só no comércio teremos mais cinco milhões de desempregados.

Esse enorme contingente humano mora em favelas sem condições sanitárias e não terá o que comer mantida a situação atual.

Diante de fatos dramáticos, a crise atropela posições ideológicas e se impõe. A Covid-19 derrubou o discurso econômico de Jair Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes e os obrigou a editar medidas com impacto da ordem de mais de meio trilhão de reais nas áreas fiscal, trabalhista e creditícia. Entre elas o auxílio emergencial de R$ 600 a trabalhadores informais e de R$ 1.200 para mães responsáveis pelo sustento da família além das ações que envolvem o INSS, o FGTS, o salário desemprego, o crédito da Caixa e Banco do Brasil ou a redução das despesas públicas de estados e municípios.

Bolsonaro rompeu com o discurso econômico com o qual se elegeu, assim como Boris Johnson e Donald Trump. E tudo isso pode não bastar para minimizar os efeitos nocivos do isolamento nos níveis de emprego e PIB. À frente, outras medidas deste teor virão.

Mais ainda. A gravidade da crise de saúde pública, de emprego e PIB demanda por liderança política que coordene uma ação enérgica e única das três esferas de Governo para implementar e fazer chegar os recursos tempestivamente aos mais necessitados; alguém que dedique esforços sem medida para evitar uma calamidade médico-hospitalar e articule a eficácia administrativa dos entes federativos na definição dos momentos críticos de afrouxamento das medidas restritivas em vigor.
Nada será como antes depois desta pandemia.

Como gostariam aqueles

Brunella Baldi
Longe soa a música.
Devagar se aproxima.
Com ela vêm o lirismo
E o sentimentalismo.

Que maravilhosa mensagem trazem.
Como gostariam de ouvi-la
Aqueles que agora jazem
Sob os escombros e as ruínas.

Pós-choque

Naomi Klein publicou um livro intitulado “A doutrina do choque”, ou “A ascensão do capitalismo de desastres”, em que defende a tese de que o capitalismo se nutre de desastres, e de choque em choque vai ampliando seu poder. O livro é recente, mas saiu antes do ataque do coronavírus, um desastre que ninguém previa e ninguém sabe como vai terminar. E no meio do qual nenhuma tese, nem a reducionista da Naomi, sobrevive.


Oportunistas já se aproveitam da confusão da pandemia para lucrar e confirmar a pior expectativa de que o capitalismo amoral é capaz, segundo a Naomi. Está em curso a maior intervenção do Estado na vida das nações e das pessoas desde a Segunda Guerra Mundial, mas a velha briga entre dirigismo econômico e mercado persiste, enquanto contam os mortos. O mundo que emergirá do choque que estamos sofrendo será um mundo purgado pelo horror, e melhor, ou condenado pelo amoralismo para sempre.

Se estamos a caminho de uma escolha definidora do que seremos pós-tragédia viral, talvez não seja ingenuidade demais discordar da Naomi e esperar que no fim de tudo isto surja um mundo menos desigual e mais, na falta de outra palavra, decente. Para participar da velha briga, que continuará quando o coronavírus for apenas uma má memória, entre estatismo e livre mercado, traga-se de volta o John Maynard Keynes. Se for difícil transportá-lo fisicamente — afinal, o homem está morto desde 1948 —, recuperem suas ideias, e as escolhas que ele pregou para combater o capitalismo sem-vergonha.

Keynes foi o cara que defendia um Estado forte a serviço do bem geral e a intervenção do Estado na economia para humanizá-la. A austeridade “made in” Chicago que hoje norteia a maioria das economias mundiais não teria prevalecido se o keynesianismo tivesse se imposto ao liberalismo, quando ainda dava.

Mas enfim, que mundo nos espera quando passar o horror? Acho que será melhor do que este. Disse ele, ingenuamente.

Lições de 1918: as cidades que se anteciparam no distanciamento social cresceram mais após a pandemia

Em tempos insólitos e “inexperimentados” ―termo cunhado pelo brilhante filósofo espanhol Emilio Lledó para se referir a estes meses viróticos― convém mais que nunca olhar para trás, até um dos poucos precedentes em que podemos encontrar alguma luz sobre os efeitos econômicos de uma pandemia: a mal chamada gripe espanhola de 1918. Todas as precauções são poucas: o mundo e a economia mudaram, e muito, desde então. Mas a epidemia de gripe no início do século passado, segundo estimativas dos pesquisadores Sergio Correia, Stephan Luck e Emil Verner, também deixa algumas lições válidas para se enfrentar o choque econômico do coronavírus. Entre elas, que as cidades que se anteciparam na adoção de medidas de distanciamento social e foram mais agressivas em sua aplicação “não só não tiveram um desempenho pior, mas cresceram mais rápido quando a pandemia passou”. E que “intervenções não farmacológicas [entre elas, o fechamento de escolas, teatros e igrejas; a proibição de reuniões públicas e funerais; a colocação em quarentena dos casos suspeitos e a restrição nos horários de abertura dos negócios] não apenas reduziram a mortalidade, mas também mitigaram as consequências econômicas adversas da pandemia", concluíram os pesquisadores, os dois primeiros do Federal Reserve dos EUA e do Federal Reserve de Nova York e o terceiro, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

“Intervenções não farmacológicas podem ter retornos econômicos, para além da redução da mortalidade”, concluem os três pesquisadores no estudo, publicado na última quinta-feira e divulgado pela Bloomberg. A experiência “sugere” que as cidades que adotaram maiores medidas de distanciamento social “também cresceram mais no médio prazo”, o que os leva a concluir que a pandemia “deprimiu a economia, mas as intervenções de saúde pública, não”. Contudo, o estudo destaca as diferenças na hora de traçar paralelos entre aquele episódio de gripe e o coronavírus: o ambiente econômico estava marcado pelo final da Primeira Guerra Mundial e aquela doença foi muito mais letal do que a Covid-19, especialmente para os trabalhadores jovens, o que leva a pensar em um choque econômico maior naquela ocasião do que hoje. Por outro lado, hoje a economia está infinitamente mais interconectada, com cadeias de suprimentos transnacionais e um peso muito maior do setor de serviços e das tecnologias da informação, “fatores que não podem ser capturados na análise”, como reconhecem os autores.

A pandemia de gripe do início do século XX, que se prolongou de janeiro de 1918 a dezembro de 1920 e se espalhou por meio mundo, infectando 500 milhões de pessoas (um terço da população mundial na época) e matando 50 milhões, provocou uma redução média de 18% na produção industrial em escala estatal. As regiões mais expostas também registraram um maior volume de falências de empresas e famílias. “Esse padrão”, enfatiza o estudo ―intitulado, de forma contundente Pandemics depress the economy, public health interventions do not: evidence from the 1918 flu (Pandemias deprimem a economia, intervenções de saúde pública, não: evidências da gripe de 1918)―, “é consistente com a ideia de que as pandemias deprimem a atividade econômica por meio de reduções tanto na oferta como na distribuição de demanda. E, importante, as quedas na produção são persistentes: as áreas mais afetadas permaneceram deprimidas em relação às menos expostas até 1923”.

Por que medidas restritivas estão associadas a uma melhor saída da economia do buraco? É verdade, afirmam Correia, Luck e Verner, que estas "restringem a atividade econômica". “Mas, em uma pandemia, a atividade econômica também se reduz sem elas, já que as famílias diminuem o consumo e a oferta de trabalho para evitar serem infectadas. Portanto, essas medidas podem resolver problemas de coordenação associados ao combate à transmissão da doença e mitigar a ruptura econômica vinculada à pandemia", acrescentam. Segundo suas cifras, uma reação 10 dias antes da chegada da gripe aumentou o emprego na indústria em cerca de 5% no período posterior à doença. E a ampliação das medidas de distanciamento social por mais 50 dias elevou essa taxa de emprego industrial em 6,5%.

"A lógica econômica em tempos de pandemia, hoje e na época, simplesmente difere da lógica econômica em tempos normais", esclarece Verner por telefone. "Uma pandemia é economicamente tão destrutiva em si mesma que medidas restritivas, se bem projetadas, ajudam a reduzir o golpe". Pode-se aprender alguma coisa com a pandemia de 1918 com relação ao tempo que levará para a recuperação da atividade? "Não é fácil tirar conclusões contundentes e é preciso que sejamos prudentes, mas, se a experiência da época sugere alguma coisa, é que a saída em V [queda rápida, recuperação rápida] será difícil: o impacto provavelmente será mais duradouro e a saída mais provável, em forma de U ou W”, acrescenta o professor do MIT.

A “evidência dos relatos”, destaca a pesquisa, sugere alguns paralelos entre os resultados obtidos no estudo da epidemia da gripe e o da pandemia de coronavírus registrada neste período inicial de 2020: países que aplicaram medidas de distanciamento social em um estágio inicial da pandemia, como Taiwan e Cingapura, “não só limitaram o crescimento da infecção: também parecem ter mitigado a pior disrupção econômica causada pela pandemia”. As lições hoje vêm do Oriente.

A biopolítica e o apocalipse em câmara lenta

Vasco Santos, psicanalista e editor, lê nas entrelinhas do estado de emergência que o coronavírus tem permitido uma oportunista intensificação da biopolítica, para controlar, vigiar e punir.

Parece que não passa um dia em que não sejamos ameaçados com crises e selvajarias. De algum modo, esse parece ser o ar que se respira, aquilo que se lê por toda a parte, desde os jornais aos cartazes publicitários que encontramos nas ruas. Sentimos que se tornou constante o cerco, cujo intuito parece ser o de gerar um estado de alarme, inquietar o espírito e livrar-se da inteligência. Vasco Santos, psicanalista e editor literário, está entre essas poucas vozes que têm procurado minar a campanha à volta da epidemia do novo coronavírus. Em seu entender, esta é, antes do mais, uma epidemia oportunista conduzida pelos media e que nos reenvia à “experiência medieval da praga”. Em declarações ao i, explica como funciona este discurso virtual que se produz a par da realidade, umas vezes sobrepondo-se-lhe, outras deturpando-a, transcrevendo os dados de tal modo que produzam um efeito perturbador. Substituindo a experiência, o efeito de uma comunicação que reduz a linguagem à simples mecânica do lugar-comum é o de lançar no ar uma “poluição moral, procurando-se, ontem como hoje, um objecto contra-fóbico oriental alheio às comunidades atingidas”. Assim, o Covid-19 é uma reformulação do bacilo da peste, que não morre nunca, mas apenas desaparece por uns tempos, fica a aguardar pacientemente por uma aberta, para de novo acordar os seus ratos e os mandar morrer numa cidade feliz.

Vasco Santos cita outro psicanalista, Wilhelm Reich, em tempos colaborador de Freud, que traçou um diagnóstico essencial deste tempo dizendo que “existe uma energia orgânica mortal” e que esta se respira na atmosfera. Tornou-se tão familiar a ideia expressa por Karl Kraus em Janeiro de 1917, num dos seus aforismos – “O estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável” –, que, hoje, mesmo um fabulista tão popular como Murakami reconhece que “toda a gente alimenta o secreto anseio de que o fim do mundo chegue a tempo de o testemunhar”.



Já no final dos anos 1970, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger notava que o apocalipse era uma noção que tinha vindo a degenerar, sendo arrancado do território do sagrado, como uma visão profética e aterradora, para tornar-se mais um mito profano, desses que são traficados como “afrodisíacos”. Assim, o velho pesadelo, esse no sentido do qual a maçã que caiu da árvore do conhecimento parecia rolar, tornou-se mais outra metáfora para o colapso do capitalismo. E precisamente porque é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, torna-se evidente esse raciocínio que leva Enzensberger a encarar a ideia do fim do mundo como uma “utopia negativa”. Mas esta noção, quando processada no quotidiano e entregue às feras da imprensa e da opinião, com essa forma de senso comum que se materializa nos clichés, nessa corrupção da linguagem que, em última instância, torna-nos reféns de uma espécie de paranóia vazia, um abismo de falsificações, um manto de tagarelice que cobre o mundo inteiro e provoca em nós um estado permanente de ansiedade. Essa é a nova condição em que estamos a acompanhar a expansão de um vírus, “afinal, modesto e tímido”, como refere Vasco Santos, mas que “serve para impor a ordem, higienizar o corpo e a cidade e relativizar o contrato social”.

Há muito que os autores que lançaram um olhar impiedoso sobre o regime desta intriga nos dizem que o estado de excepção se torna revelador da normalidade social e acentua os mecanismos que permitem aos aparelhos de Estado “vigiar e punir”. “Se as fissuras que se abrem entre os factos não fossem preenchidas com maços de frases feitas; se a esquizoidia do laboratório não fosse dissimulada pela convicção de fazer o Bem, e um Bem cada vez mais avançado, se o raciocínio devastador não se considerasse a encarnação do Senso Comum, se... – a máquina deixaria de trabalhar, e a grande era da experimentação mergulharia num súbito, pesado silêncio”, escreve Roberto Calasso. E acrescenta: “O burburinho da Opinião Pública ajuda a evitar que tal aconteça. É agora este o insuperável combustível psíquico que impulsiona a vida. Como Kraus observou certa vez: ‘A vida continua. Mais do que é legítimo’”.

Mas estamos num plano em que a vida já não faz o sentido que fazia antes, em que o próprio mundo se nos torna estranho, e quanto mais avançamos, menos sabemos. Neste ponto, Vasco Santos recorre ao testemunho de Paulo Varela Gomes que, diante deste problema, propõe que se ponha de parte a biologia: “É evidente que o centro da questão não está nos factores biológicos da Peste, mas sim nos organismos sociais humanos que a contraem, a espalham (e a protegem?). Seguidamente, é necessário não procurar na infraestrutura das formações económicas e sociais a inserção directa da doença; a Peste é, com efeito, um fenómeno ideológico e político, isto é, pertence ao Estado e aos seus Aparelhos”.

No caso específico do Covid-19, Vasco Santos nota que este tem permitido pôr em prática “uma estratégia higienista, antipsicanalítica pela acentuada diminuição da empatia, pela distância social legitimada”. Esta intensificação da biopolítica leva a que se possa notar a tendência que há hoje para que, como refere o autor e editor italiano Roberto Calasso, nós próprios sejamos “uma entidade administrável, que poderá até permanecer por muito tempo na quietude de um armazém, mas que a qualquer momento pode ser chamada a contribuir para o reequilíbrio do massacre”. O que se diz sobre as medidas extraordinárias que a guerra exige vale também para as epidemias. E Vasco Santos vê como o novo coronavírus e as medidas de contenção que este tem exigido acentuam “a ideologia da saúde (por falência da ideia de salvação) e forcluem a morte, esse tabu excelentíssimo de agora”.

“Desinfectamos magicamente as mãos porque somos contra a morte”, acrescenta, antes de nos remeter para o ensaio de Susan Sontag A Doença como Metáfora. É ali que a ensaísta norte-americana nos diz que “a doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa”. “Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença. Embora todos prefiram usar somente o bom passaporte, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós será obrigado, pelo menos por um curto período, a identificar-se como um cidadão do outro país”.

Neste momento, estando confusos, atordoados com a informação que nos sacode em rajadas, sucessivos balanços, números de vítimas, de mortos, não sabemos bem o que pensar das medidas de prevenção. Boa parte de nós acolhemo-las, satisfeitos porque alguma coisa está a ser feita, e, assim que as coisas se agravem, será natural que as medidas também se agravem. Seguimos as notícias da pandemia relatada em tom patético e apocalíptico como em tempos nos reuníamos no templo para que o cura nos abalasse diariamente com enormidades e ninharias. Enquanto esta “catástrofe permanente” se apossa de tudo, causando em nós habituação, fica muito claro que o apocalipse, que em tempos tinha algo de venerável, na sua constituição prodigiosa recorrendo a metáforas soberbas, terríficas, está cada vez mais distante de uma ideia do sagrado. Assim, como notava Enzensberger, esta catástrofe tornou-se um “fenómeno inteiramente secularizado”.

“O nosso monstro de sete cabeças responde por uma série de nomes: Estado-polícia, paranóia, burocracia, crise económica, corrida às armas, destruição do meio ambiente”, escreve o ensaísta alemão. “Em tempos, as pessoas viam o apocalipse como um ato da Justiça divina, ao passo que hoje parece um produto metodicamente calculado das nossas acções, e aos espíritos que tomamos como responsáveis pela sua abordagem chamamos comunistas, magnatas do petróleo, terroristas, multinacionais; os gnomos de Zurique e os Frankensteins dos laboratórios de biologia (...) O apocalipse costumava ser um evento singular, que nos acometeria sem aviso como um raio rasgando céus azuis: um momento inimaginável que apenas os visionários e os profetas poderiam antever – e, como é óbvio, ninguém quereria ouvir os seus avisos e previsões. O nosso fim do mundo, por sua vez, é cantado nos telhados até pelos pardais; falta-lhe o elemento surpresa; parece ser apenas uma questão de tempo. A desgraça que esperamos que se abata sobre nós é insidiosa e torturante de tão vagarosa na sua abordagem – é o apocalipse em câmara lenta”.