A mensagem destas eleições não seria a reformulação de implacáveis polos? Elas não apresentam o desejo de tempos mais igualitários e democráticos? Eleição que nas brutais cadeiradas e repugnante má-fé confirma nossa dificuldade de competir como iguais, vendo os adversários como alternativa, e não como inimigo?
O equilíbrio dos eleitores, comprovando que sabem votar, expressa a domesticação das dualidades negativas que vão dos “dois Brasis” — o desenvolvido e o subdesenvolvido — ao clássico e messiânico “litoral/sertão”; assenta-se na oposição da casa/rua, do sabido/trouxa e chega ao cósmico Fla-Flu de Nélson Rodrigues.
No meu entender, o resultado eleitoral estampa o velho “nem um nem outro”. É sinal dos estertores para a polarização, sempre embrulhada em redes de relações pessoais, entre uma esquerda santificada e pura, destinada a cuidar do povo pobre e do pobre povo, contra uma direita satânica, compromissada com o mercado e com o imperialismo ianque.
Ao sinalizar a recusa da polaridade negativa, esse resultado não seria revelador do elo moral escondido entre Lula e Bolsonaro? Sim, porque sem o Lula do petrolão, não haveria o Bolsonaro da negação e do golpe. A preferência para o “centro” mostra o esvaziamento das fórmulas tipo bala de prata esquerdistas e do caos “salvacionista” da direita.
O resultado das urnas não é um gesto de esperança da cura de nossa estadomania, estadolatria e estadopatia? A fé cega de que será exclusivamente pelo Estado que a sociedade, vista como errada ou doente, inviável ou feudal e torta pela tara de origem racial doentia, seria consertada? Corrigida e curada por seus luminares, donos das receitas legais que logo anistiam os desviantes em função de suas prerrogativas que reagem ao poder público.
Não seria o ajustamento entre costumes, práticas sociais, legislações e diretrizes públicas que os eleitores pretendem? Não seria uma mensagem de que os extremos são reais, mas podem ser complementares? Não seria essa humildade de ser eleito para o povo e não pelo povo, como manda o populismo?
Não seria este pleito municipal um voto devotado a eleger quem promete mais liberdade para trabalhar com autonomia individual? Com menos chavões ideológicos e ineficiência cartorial, como dizia Hélio Jaguaribe? Com mais competência e menos da pomposa burrice legal que facilita a malandragem burocrática dos jeitinhos e da grossa corrupção?
Menos Estado onipotente e mais sociedade com liberdade e consciência dos limites dos seus costumes? Não seria essa a aspiração de todos nós, cansados de legalismos que excluem os privilegiados — seres isentos e acima das leis?
Não seria a hora de domesticar o elitismo de direita e de esquerda e sair dos privilégios e dos palácios feitos por nobres, mas irresistíveis aos eleitos pelo povo? Não seria tempo de mais coerência jurídica, condenando os que usam a máquina do Estado para suas ambições? Não seria tempo de governar menos para a parentela, partido, ideologia; e mais para as carências das cidades e do povo anônimo, relevante apenas no período eleitoral?
Quando — parece presumir o resultado eleitoral — uma dessas figuras será mesmo enjaulada provando que a lei vale para todos?
Esta eleição inventou o “pobre de direita”, a expressão mais reacionária do direito de escolher vigente nos Estados Democráticos de Direito. A direita estigmatizada faz perna com o “pobre de esquerda”, que também tem seu ponto cego como todo posicionamento ideológico.
Aliás, cabe perguntar: quem é mais conservador? Os esquerdistas, que permanecem atados a sua fé nos “operários de todo o mundo, uni-vos”, ou este velho cronista, que simplesmente tem fé na obrigação de compreender os inesperados? As permanentes surpresas que destoam e sepultam nossas previsões e determinismos; e escancaram a surpreendente porta da História.
Por muitos séculos, as tribos de seres humanos não percebiam que o mundo existia; cada grupo étnico se sentia único. Aos poucos, o mundo foi se transformando na soma-de-países diferentes que conviviam ou disputavam em guerras entre eles. O mundo passou a ser percebido maior do que cada país, mas suas populações não eram integradas.
Nas últimas décadas, o mundo ficou integrado econômica e culturalmente, diversas entidades foram sendo criadas para promover a cooperação entre países em fóruns internacionais. É muito recente a atual realidade em que cada país é um pedaço-do-mundo. A foto desde o espaço trouxe a percepção de que a Terra é um território unificado e com recursos limitados. O planeta deixou de ser apenas um conceito de astronomia e se transformou na casa de todos os humanos. As mudanças climáticas passaram a ser vividas em qualquer parte do globo, mostrando que a humanidade não é mais apenas um conceito filosófico. Pela primeira vez, os seres humanos perceberam que têm um destino comum que não respeita fronteiras nacionais. As migrações em massa mostram que a busca por sobrevivência não respeita as distâncias nem as fronteiras.
A Terra passou a ser uma casa e a humanidade, uma família, mas cada indivíduo se mantém ligado e fiel ao seu país. A política segue baseada nos interesses dos indivíduos organizados nos espaços nacionais e até regionais. Para o eleitor, o que interessa é qual será o melhor presidente para atender aos interesses de seu país nos próximos anos. No caso dos Estados Unidos, país decisivo no futuro do planeta e da humanidade, a eleição pode ser decidida pelos interesses dos eleitores do bairro de uma cidade, sem qualquer compromisso com o longo prazo do mundo.
O mundo ficou interligado, mas a democracia escolhe os dirigentes locais conforme as promessas dos candidatos para atender aos interesses da maioria dos indivíduos local e imediatamente. A democracia é, na verdade, uma eleitorcracia movendo os eleitores sem sentimento com a humanidade, sem compromisso com o resto do mundo, nem mesmo com povos que vivem em países vizinhos. Tampouco com os interesses da própria nação no longo prazo. Cada país é um pedaço-do-mundo, nenhum povo aceita decidir seu futuro com base em ser parte da humanidade, nem os de outro país, nem aqueles que ainda não nasceram no próprio país. Isso fica visível na aversão dos eleitores de cada país aos imigrantes, tanto os estrangeiros vindos de outros países quanto as gerações que ainda não nasceram. Sobretudo no momento em que a era da abundância deu lugar a uma era da escassez.
As eleições recentes nos Estados Unidos e na Europa mostram a visão míope da eleitorcracia. A fala e as atitudes dos candidatos, uns mais outros menos, têm de estar sintonizadas com os interesses dos eleitores para o presente em suas comunidades. O sonho nacional não foi substituído por um sonho humanista. A política segue vinculada ao tempo do mundo soma-de-países, e os candidatos são obrigados a fazer promessas colocando os desejos dos eleitores em primeiro lugar, sem considerar o suicídio implícito no longo prazo. Nos anos 1960, a corrida armamentista levou eleitores e eleitos dos Estados Unidos e da União Soviética a defenderem cada um deles, sabendo-se que, no longo prazo, se marchava para um suicídio da civilização. A catástrofe não ocorreu porque os governos tinham possibilidade de controlar o uso das bombas, mas nenhum presidente controla a ânsia de consumo e de ganância de cada cidadão, e o espírito tribal de proteger os privilégios que já dispõe contra os estrangeiros.
Diferentemente da bomba atômica, a bomba consumista é detonada por cada ser humano, controlando aos governantes pelo poder soberano do eleitor na eleitorcracia.
Os eleitores não escolhem o melhor presidente para fazer um mundo melhor no futuro, apenas o que melhora o seu ao redor nacional no imediato. A maioria dos eleitores não busca o melhor nem mesmo para o seu país como pedaço do mundo no longo prazo. A democracia não reflete o interesse do povo no futuro, apenas da maioria dos eleitores para hoje. Por isso, deveria ser chamada eleitorcracia.
Dificilmente a eleitorcracia vai definir regras nacionais para proteger o meio ambiente planetário no longo prazo. O emprego no presente pesa mais na decisão do eleitor do que o risco das catástrofes mundiais devido às mudanças climáticas. Por isso, os candidatos se aproximam na hora das propostas sobre imigrantes e meio ambiente. A eleitorcracia tem horror ao planeta, ao humanismo, ao futuro, aos estrangeiros, defende com lucidez os interesses imediatos e nacionais dos eleitores contra o resto mundo.
Maria sabia que envenenava João, mas continuou na mesma trilha, sem alterar suas ações. Um outro João estava ciente de que, pouco a pouco, matava uma outra Maria, mas não mudou seu comportamento. Ainda um outro João divulgou mensagens falsas para esconder o fato de que, aos poucos, matava uma outra Maria. E muitos outros joões e marias seguiam na mesma trilha: conscientemente continuavam a matar outras marias e joões, mas alegavam que lhes era essencial continuar com as mesmas ações: questão de sobrevivência. Sobrevivência de quem, cara pálida?
Esses joões e essas marias acreditavam-se oráculos e, assim, se desculpavam, pois muitos os admiravam, pois a propaganda que faziam funcionava! Estes admiradores fechavam os olhos para as marias e os joões mortos ou moribundos e miravam apenas uma coisa que aqueles outros joões e marias queriam mostrar: the bottom line! Ou seja, dos muitos resultados decorrentes do comportamento daquelas marias e joões, só um interessava, só a um se dava importância. Como se algo tão vasto, complexo e importante como a qualidade da vida pudesse ser medido por apenas um número, o “resultado final” de uma contabilidade enviesada, que contabiliza apenas parte dos custos, socializando muitos outros. Tais como a fumaça do cigarro, a exaustão dos motores, as florestas queimadas, os peixes intoxicados, os rios assoreados e as zonas mortas nas suas fozes, o plástico em nossas veias, os químicos eternos nas nossas comidas, o arremedo de comida que nos envenena, o ar poluído que mata, a cada ano, mais que o holocausto!
Não obstante todos esses óbitos, o resultado trimestral apresentado às bolsas é o que mais importa, o que é mais louvado, como se tais resultados não decorressem, em larga medida, daquelas mortes e doenças.
São marcas de luxo que lucram com trabalho escravo, produtores de mercadorias que envenenam pessoas, extratores de recursos naturais que desequilibram o clima, vendedores de sonhos que convencem as pessoas a se endividarem para comprar coisas de que não necessitam, todo um conjunto de pessoas articuladas entre si que, comprovadamente, levam-nos, e mais ainda nossos filhos e netos, ao abismo.
Mas esses assassinos criam empregos, pagam impostos, desenvolvem tecnologias. Sem dúvida isso é verdade. Mas, quais empregos, aqueles que levam as pessoas a crises de burn out? E os impostos que pagam, superam os subsídios que recebem e os custos que não contabilizam? E as tecnologias que desenvolvem focam na ampliação do bottom line e em não contabilizar parte dos custos, que passam a ser rotulados de “externalidades”, “acidentes” e outros eufemismos! Menos de dez empresas gigantescas são responsáveis por mais da metade do plástico que destrói os oceanos!!
É triste constatar que convivemos com assassinos que, ao invés de processados e condenados, são louvados por grande parte da imprensa e dos políticos. Alguns diriam que é o mundo que se está a construir; outros, mais realistas, dirão que é a vida, inclusive a humana, que se está a destruir!
Mesmo um exame superficial da história revela que nós, seres humanos, temos uma triste tendência para cometer os mesmos erros repetidas vezes. Temos medo dos desconhecidos ou de qualquer pessoa que seja um pouco diferente de nós. Quando ficamos assustados, começamos a ser agressivos para as pessoas que nos rodeiam. Temos botões de fácil acesso que, quando carregamos neles, libertam emoções poderosas. Podemos ser manipulados até extremos de insensatez por políticos espertos. Deem-nos o tipo de chefe certo e, tal como o mais sugestionável paciente do terapeuta pela hipnose, faremos de bom grado quase tudo o que ele quer - mesmo coisas que sabemos serem erradas.Carl Sagan, "O Mundo Infestado de Demônios"
Um estudo recentemente concluído nos Estados Unidos, com base em entrevistas a capelães de hospitais de regiões diferentes do país e de diversas origens religiosas, mostrou que a área religiosa e espiritual é fundamental para a recuperação e o bem-estar dos doentes, suas famílias e igualmente importante para o trabalho das capelanias que operam na saúde. Acresce que foram consultados capelães de origem cristã, judaica, islâmica e humanistas seculares.
Uma sondagem realizada em 2023 pela Universidade de Chicago já tinha revelado que mais de setenta por cento dos norte-americanos acreditavam no poder da oração, e associavam a frequência de serviços religiosos a um menor risco de morte, suicídio e abuso de substâncias, assim como a menor ocorrência de episódios depressivos.
As conclusões da investigação apontam para o facto de que os indivíduos com fé religiosa encontram dentro de si forças psicológicas significativas para enfrentar a doença e mesmo para a combater. E quando acabam por ser vencidos pela sua patologia, se acaso dispõem de acompanhamento espiritual, os seus últimos dias são frequentemente vividos com muito mais coragem e ânimo.
De facto, a oração (falar com Deus) tem um efeito diversificado conforme os casos, mas sempre eficaz, quando o próprio doente recorre a ela ou é alvo da oração de intercessão em seu favor por terceiros. A religião e a espiritualidade ajudam a superar sentimentos como o medo e o desespero em pacientes com doenças graves.
Aliás, os estudos em neurociências efectuados nas últimas décadas têm vindo a revelar que as crenças religiosas influenciam diretamente zonas vitais do cérebro, ao desencadearem um efeito que pode proteger os indivíduos contra quadros depressivos e sentimentos negativos como o desespero. Além disso sabe-se que duma forma geral a prática religiosa e a espiritualidade podem proporcionar a construção de significado e um sentido para a vida, e por isso abrir a porta à esperança.
Estas vantagens podem não se verificar apenas em contextos de fé religiosa tradicional, mas igualmente pela via das artes, do belo, do exercício físico, do contacto com a natureza ou por práticas culturais que vão ao encontro dos seus gostos e interesses.
O ser humano precisa de esperança ao longo da vida, muito em especial quando enfrenta uma doença grave ou se sente perante a proximidade inevitável do final do seu ciclo de vida. Caso contrário surgem inúmeros problemas emocionais, mentais e até físicos que redundam na perda da qualidade de vida, causada por exemplo pelas alterações do sistema imunitário.
A alternativa é desistir, entrar numa espiral de ressentimentos, auto-piedade, remorsos ou revolta, o que não leva a lado nenhum e apenas piora a experiência desses tempos de luta contra a doença, de convalescença ou de espera pelo desenlace final.
O ser humano parece ser o único ser vivo que tem consciência de que a sua existência física tem um fim. Os outros seres vivos respondem a um instinto de sobrevivência, têm noção dos perigos que correm ou de quando estão feridos, doentes ou se sentem enfraquecidos, mas não propriamente a consciência de que um dia desaparecerão deste mundo.
Só que esta certeza que todo o ser humano adulto possui carrega consigo implicações emocionais muito profundas. Desde logo a valorização dos seus dias, dos entes queridos e a preparação para o fim. As questões existenciais assumem assim uma relevância crescente à medida que a idade avança, ou que o corpo e a mente vão dando sinais crescentes de debilitação e perda de faculdades a cada dia que passa.
É por isso que a esperança deve ser sempre a última a morrer.
1. Esta eleição americana será a mais dramática que já vivemos. Domingo passado vimos como Trump e a sua milícia afiam as facas contra a grande maioria de nós — mulheres, imigrantes, negros, muçulmanos, judeus —, com o apoio de metade dos Estados Unidos da América. Vimos aquela ilha de lixo ululante em pleno centro de Nova Iorque. No mesmo Madison Square Garden que em 1939 encheu com um comício nazi. O mesmo banal e letal barro humano, agora em direto para o planeta.
E no dia seguinte, com duas novas leis, o parlamento israelita fez o seu maior ataque às Nações Unidas, dentro da guerra geral que Israel trava na ONU desde a fundação. A primeira lei, aprovada por 92-10 votos, decreta o fim da UNRWA em todo o território israelita num prazo de 90 dias; a segunda, aprovada por 87-9, proíbe qualquer instituição do estado de colaborar com a UNRWA. Maiorias esmagadoras, que mostram (mais uma vez) como a degradação de Israel está longe de se resumir a Netanyahu. Mais de 20 deputados nem puseram os pés na votação. O mesmo pseudo-parlamento que persegue o jornalismo. E obriga os aliados internacionais a contorções diárias — ou ao silêncio — para manter o mito de que Israel é uma democracia.
2. A UNRWA foi, a partir de 1949, o que as Nações Unidas inventaram para lidar com a Catástrofe palestina, a Nakba, quando centenas de milhares tiveram de fugir das suas casas, depois da fundação de Israel. O único caso na História em que é criada uma agência de refugiados para um povo, supostamente provisória porque ia haver uma solução — mas nunca houve uma solução. Então, a UNRWA é o que o mundo inventou por ter abandonado um povo inteiro. Ao longo de todos estes anos deu comida, educação, teto e cuidados médicos a milhões a quem foram roubados os direitos humanos básicos, tantos nos países onde continuam refugiados palestinos (Jordânia, Líbano, Síria), como nos Territórios Ocupados (Jerusalém Oriental, Cisjordânia, Gaza). Uma tragédia por todas as razões, incluindo o fato de a máquina que garante a sobrevivência ser ela mesma, por isso, perpetuadora do mal. Ao longo de 22 anos fui testemunha, em todos os lugares onde a UNRWA atua, de como tantos palestinos dependem dela para viver. E ao mesmo tempo de como é terrível essa dependência, como viabiliza a ocupação. A ajuda da UNRWA desresponsabilizou Israel. Permitiu ao mundo fechar os olhos aos crimes da ocupação. E aos israelitas fechar ainda mais os olhos aos seus próprios crimes. Pois se alguém estava a manter os palestinos vivos o mundo podia seguir como se nada fosse. Visitas cristãs à Terra Santa. Paradas gay em Tel Aviv. Jovens bonitos na praia. Uma rave. Até que tudo isso foi pelos ares no 7 de outubro. Aí, pela primeira vez, muitos jovens no mundo viram o que era a Palestina do outro lado do muro. E viram o que era Israel, essa construção do Ocidente, quando tudo lhe é permitido. Quando o Ocidente se permite escolher as vidas que valem mais, começando pela sua, e a sua própria culpa.
A UNRWA é a má consciência do Ocidente. Foi muito útil a Israel, perito em dar de comer à máquina enquanto a vai destruindo. Mas com todas as críticas que possamos ter quanto à ONU, e aos aparelhos de ajuda que perpetuam os problemas, a UNRWA só existe porque o mundo nunca fez justiça aos palestinos. E com o holocausto em curso desde 7 de outubro, a maior obscenidade depois de todas as anteriores seria tirar aos palestinos a ajuda que têm. Não é simplesmente possível substituir a UNRWA agora, ou num futuro próximo. O que não impediu supostas democracias de cortarem apoios decisivos à UNRWA por em 30 mil funcionários, 10 ou 12 pessoas serem acusados por Israel de ligações ao Hamas. Uma percentagem ínfima, e milagrosa, tendo em conta as redes de estreita proximidade acentuadas pela ocupação, como sabe qualquer pessoa que conheça aqueles territórios. Uma investigação interna foi feita, 9 pessoas despedidas por poderem ter algum tipo de laços com o Hamas. Não bastou a Israel. Era preciso acabar de vez com ela. Estas duas leis fazem isso. Banir a UNRWA de Israel significa bani-la de Jerusalém Oriental, território que Israel anexou contra todas as resoluções internacionais, e onde milhares de famílias palestinas dependem da UNRWA. E a segunda lei, ao proibir qualquer colaboração israelita com a UNRWA, impede a chegada de ajuda a Gaza, porque as Forças de Defesa de Israel não vão poder coordenar isso com a UNRWA. Salários e despesas não poderão ser pagos com bancos israelitas. Milhões de palestinos deixarão de ter escola, comida, cuidados médicos.
Há muitas formas de matar. Por exemplo, o mais conhecido “jornalista” da TV israelita há dias vibrou ao ser convidado a carregar no botão para fazer explodir um edifício no Líbano. Outros carregam no botão estando no parlamento. Mandam uma agência das Nações Unidas pelos ares. Chamam-lhe terrorista. Proíbem o secretário-geral de entrar em Israel. Insultam-no, não lhe atendem as chamadas. Isto está a acontecer desde 7 de Outubro. Ao mesmo tempo que Israel continua sentado nas Nações Unidas. A mesma organização que espezinha. A fazer o quê, mesmo?
O que é que falta para as outras nações tratarem Israel como o estado pária que é? Para Israel, enfim, aprender o que é um limite? Ou a ideia é as Nações Unidas afundarem-se com Israel?
3. Antes de começar esta crônica fui (de novo) à procura da reação de Kamala Harris ao facto de a UNRWA ser banida. E (de novo) vi a cara consternada (na linha Blinken) do porta-voz do Departamento de Estado a dizer que os EUA estavam “deeply troubled” com a decisão de Israel. De tanto “deeply troubled”, os EUA estão já enterrados até às orelhas, o que não os impede de continuarem a mandar bombas. Quanto às declarações de Kamala, não achei nada. Está com certeza deeply troubled, mas em campanha. E como foi claro desde a convenção do Partido Democrata, Kamala em campanha não tem qualquer visão além do que vinha de Biden, e de antes, apesar de esta campanha pedir mais visão do que nunca. Na convenção, Kamala desprezou os não-alinhados que lhe pediram algo tão simples como uma voz palestina-americana no palco a falar por Gaza. Desprezou os apelos ao embargo de armas. Desprezou a quantidade de muçulmanos americanos, e de jovens eleitores americanos em geral, que pediam um gesto real pelo cessar-fogo, em vez de conversa para boi dormir. E parece não entender que isso lhe vai custar votos preciosos.
A seguir à convenção, um amigo que mora nos EUA contou-me uma conversa com amigos do filho. Jovens americanos de classe média, que vão votar pela primeira vez na terça-feira. Perguntou-lhes em quem votariam. Ouviu esta resposta: Gaza vai decidir o nosso voto.
4. Torço para que Trump, proto-ditador e criminoso já condenado, perca as eleições e a derrota não seja violenta. Penso nos milhões de pessoas que estão, e estarão, sob a ameaça das tropas trumpianas. E é por tudo isso, e não apesar disso, que lamento ainda mais o que Kamala não disse e não fez desde que Biden abdicou. O fato de Trump ser tão mau não torna melhor a incapacidade de Kamala. Claro que ela é melhor do que ele, será certamente muito melhor para as mulheres e muitos imigrantes na América. Mas ficou tão aquém do que se podia esperar dela num momento histórico. Kamala continua o sistema na versão mulher não-branca e jovial. Não deu o passo entre o passado e o futuro. A generalidade do Partido Democrata não parece ter dado. Só podemos esperar que o venham a dar, com muita gente a lutar por isso.
Entretanto, o retrato do mundo é aquela bandeira das Nações Unidas derrubada, junto com um edifício da UNRWA, durante mais uma operação do exército de Israel.