terça-feira, 23 de agosto de 2016

Charge O Tempo 22.8.2016

Quem não acredita em igualdade com liberdade

Nos tempos zangados que estamos vivendo, é comum os críticos das políticas de esquerda agarrarem-se à certeza de que ações de intenção igualitária não prezam a democracia, as liberdades dos cidadãos que trabalham, produzem e não devem carregar o ônus de benefícios dados a “pesos mortos” da nação. Do outro lado, não é raro encontrarmos na defesa dessas políticas uma referência desqualificadora à “democracia burguesa”. Alguma esquerda ainda não se convenceu de que a democracia pode transcender conflitos de classe, é um valor universal do Ocidente. E na má-fé desses mal-entendidos está uma das raízes da impossibilidade de se discutir política, hoje, aqui, entre nós.

Quem tem o poder de fabricar o discurso corrente pensa mais ou menos assim: há os que produzem riqueza, criam empregos, fazem crescer a economia; e há os que não. Quando o Estado carrega parte dessa riqueza dos seus donos para quem não a produziu, comete um roubo. Os produtores são defraudados. E o Estado sabe disso. Em lugar de estimular o crescimento da economia para gerar empregos faz demagogia populista. Compra com isso a gratidão do povo. E se elege enquanto a farsa durar. Fragilidades desse raciocínio: a distribuição de renda pelo Estado não é feita para os que, crescendo a economia, seriam empregados. É feita para os não empregáveis, os das margens. Dito com as palavras certas: os pobres mesmo, os que não serão incluídos quando a economia crescer. A economia globalizada de dominância financeira não é feita para eles. É feita para o “mercado”. 

Consta de ações desvinculadas da produção real. De especulação com indicadores financeiros que são números de números, não coisas. E de “sinais”. É preciso “enviar sinais para o mercado”. Para que ele se acalme. Sinais ao mercado são em geral capitulações de boas políticas sociais, que custam dinheiro. Por exemplo, um ajuste fiscal que não leva em conta as diferenças sociais, uma reforma da previdência que desconsidera o fato de que há regiões do país em que a expectativa média de vida não é de 73 anos, e um aposentado aos 65 usufruirá seu descanso por apenas alguns meses. O mercado se acalma, as expectativas se alinham para cima. Vivemos hoje mais de expectativas do que de realidades. Congelam-se as despesas do Estado por 20 anos. — Pensam: boa expectativa! — Mas com isso também se frigorificam os investimentos em educação e saúde. — Como assim?, reagem os congeladores. O mínimo constitucional está garantido para a saúde e a educação! — Pois é, o mínimo. E se em 20 anos houver aumento de receita do Estado, o mínimo continua como referência, e o excedente, que devia irrigar o que há de mais importante para um país, vai para outros lugares, não congelados. Os juros da dívida não estão congelados. A dívida cresce sem parar, os juros, altos, também. Paguem-se os juros da dívida. — Bom sinal! O mercado fica feliz. A economia se alegra. A educação continua ruim, a saúde segue doente. E os pobres, pobres. Porque o Estado congelou despesas que só dão despesa.

A base dessa visão é o direito de propriedade. Direito muito justamente garantido pela Constituição. A dívida é propriedade de alguém, que precisa ser remunerado. De fato, deve. Mas, se o devedor é o Estado e os juros são pagos com o congelamento da saúde e da educação e rédea curta nos programas sociais, quem paga é o povo. O povo pobre paga mais, paga com um futuro que deixará de ter. Também está inscrito na Constituição o princípio dos limites sociais da propriedade. Mas isso, desdenham os donos do mercado e da dívida, é excrescência de uma Constituição capenga. Direito à propriedade e limitação desse direito são uma contradição que precisa ser eliminada. Os donos do mercado e da dívida trabalham nisso, devagar, pelas beiradas do mingau.

E tem mais, dizem: as políticas sociais de esquerda são autoritárias, precisam de um Estado inchado, que custa os tubos ao contribuinte, o povo. São, portanto, na verdade, antipopulares, porque oneram injustamente a sociedade. E por que são autoritárias essas políticas? Porque — resposta pronta — a esquerda não ama a democracia. Usa-a. Assim que puder, joga-a fora. A democracia “formal”. “Burguesa.” A que pode ser um estorvo para as “aventuras populistas”. — Infelizmente, ainda há mesmo uma esquerda que não tem grande apreço à democracia. Amar a democracia exige aceitar perder, corretamente, no voto. Nada demais. Há uma esquerda que não sabe perder (no voto). E com essa atitude legitima a dicotomia entre a liberdade democrática e o projeto de igualdade social.

Precisamos olhar para essa esquerda. Ela, essa, específica, é parte do problema. Não é parte da solução. E Deus sabe que uma solução precisa vir. Já ninguém aguenta mais. — No próximo sábado, sem falta.

Para que serve um velho

Sinto falta dos velhos. Eles sumiram. Há os que se esconderam, porque ninguém mais quer ouvi-los, e há os que se portam como jovens, na ânsia de serem ouvidos. O velho mesmo, o velho clássico, o velho sábio que nos fazia baixar as orelhas e sentar de perna de índio em volta da cadeira, esse velho nós estamos matando.

Ponha-se no lugar dele: quando era jovem, há algumas décadas, sua meta era entrar no mundo dos velhos – porque eram os velhos que detinham o poder, o saber e o sucesso na carreira. Agora que virou velho, sua meta é entrar no mundo dos jovens, porque são os jovens que detêm o poder, o saber e o sucesso na carreira. Quem aguenta uma rasteira dessas?

O publicitário Dado Schneider, 55 anos, repete em suas palestras que, justo na vez dele, justo na hora de ele ficar velho, houve essa transformação inédita na história da humanidade: um volume brutal de conhecimento passou a ser transmitido das gerações mais novas para as gerações mais velhas. E há um efeito hediondo nessa inversão de papéis.

Porque, se os jovens agora gozam de poder e saber, que serventia têm os velhos? Se o nosso guru se chama Google, se o modelo de sucesso é Zuckerberg – 32 anos –, se a compreensão do mundo parece melhor na juventude, qual é a vantagem da velhice? Quem vai parar para ouvir um velho? Pior: quem vai aceitar ser velho?

'OLD MAN' graphite drawing by Pen-Tacular-Artist
É triste que o velho mesmo, o velho clássico, o velho sábio que nos fazia baixar as orelhas e sentar de perna de índio em volta da cadeira, morra no momento em que mais precisamos dele – um momento em que "estamos nos afogando em informações mas famintos por sabedoria", como disse o biólogo E. O. Wilson.

Quer dizer: temos acesso ao conhecimento como ninguém jamais teve, mas falta quem nos oriente. Falta quem nos situe nessa biblioteca de fragmentos, quem nos ajude a filtrar essa enxurrada de informações que mais atormenta do que educa. Falta quem nos ensine a lidar com essa nova vida – ou, em outras palavras, nos falta sabedoria. Que nada mais é do que saber empregar o conhecimento.

Em toda a história da civilização, os velhos exerceram um papel crucial. Na Roma antiga, o conselho de anciãos, que já era comum nas sociedades orientais, ganhou o nome de Senado – e os anciãos passaram a fiscalizar autoridades e a controlar as finanças públicas. Porque o jovem, ele é importante quando precisamos de iniciativa, ímpeto e energia, mas nada disso basta sem prudência, traquejo e paciência. Aos 30 anos de idade, Alexandre, o Grande, já havia conquistado o mundo, mas seu maior conselheiro era o velho Aristóteles.

Que conselheiro nós temos hoje? Qual foi a última vez que você parou para ouvir um velho, frente a frente, sem qualquer obrigação familiar, apenas pelo prazer de beber um pouco de sabedoria? Ainda dá tempo, mas seja rápido. Porque esse velho nós estamos matando.

Conceder reajuste ao STF agora seria escárnio

Os ministros do Supremo Tribunal Federal querem elevar seus vencimentos de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil. A reivindicação desafia a paciência dos 12 milhões de brasileiros que tiveram seus contracheques mastigados pela crise. Os salários das togas do Supremo servem de referência para outras remunerações de servidores. Quando sobem, puxam os demais.


No final da descida da cascata, a coisa custará algo como R$ 5 bilhões por ano. Ou R$ 15 bilhões até 2019. Que totalizarão R$ 73 bilhões quando somados aos R$ 58 bilhões do pacote de reajustes que Michel Temer já concedeu a 14 categorias de servidores. No caso do Supremo, o valor do reajuste foi sugerido pelos próprios beneficiários. A aprovação cabe à Câmara e ao Senado. A sanção, ao presidente da República.

Na Câmara, 2 em cada 10 deputados estão pendurados em processos que aguardam julgamento no Supremo. No Senado, 4 em cada 10 senadores estão na mesma situação. No Planalto, há um presidente interino cuja efetivação depende do resultado de um julgamento que é comandado no Senado pelo presidente do STF, o ministro Ricardo Lewandowski.

Quer dizer: convertido em sindicato de si mesmo, o Supremo pede a um Legislativo imundo e a um Executivo provisório que lhe conceda o reajuste que o próprio tribunal estipulou. Ninguém disse ainda, talvez por medo, mas esse processo se assemelha muito a uma chantagem.

Como em qualquer reivindicação salarial, há bons argumentos em sua defesa, sobretudo num país inflacionário. A questão é que o Estado brasileiro quebrou. Os magistrados não são obrigados a permanecer no tribunal. Se preferirem, podem trocar o salário 20 vezes acima da média remuneratória do país e a segurança do serviço público pelos lucros e incertezas da atividade privada. Só não podem injetar escárnio na crise.

Imagem do Dia

Templo entre os rochedos de Wulong , no Japão

O mundo moderno está a ponto de provar que o ''bem' é idiota

"Você quer comer manteiga? Você quer um vestido bonito? Você quer viver deliciosamente? Você quer conhecer o mundo?"

O que vocês acham dessas propostas como forma de sedução, meninas?

Quem viu o excelente filme "A Bruxa", de Robert Eggers, sabe do que estou falando. O filme é um show do gênero terror para quem gosta de terror sofisticado e não desse lixo previsível que anda por aí, do qual até o Demônio (sim, com letra maiúscula) fica envergonhado.

A própria imagem da boca da jovem Tomasin (personagem principal do filme) melada de manteiga já pode nos dar a dimensão da consistência do Demônio neste filme: o que você colocaria na boca lambuzada de manteiga da jovem Tomasin? E a pergunta essencial: o que ela pediria para você colocar na boca lambuzada de manteiga dela?

Antes, um reparo: que nenhum inteligentinho imagine que estou "demonizando o sexo", tá? Normalmente inteligentinhos não entendem nada de sexo, e muito menos de mulher. Porque são "do bem".

Sim, Nelson Rodrigues dizia que teríamos saudade do canalha honesto um dia, eu digo que já estamos com saudade do Demônio honesto hoje em dia. O Demônio do filme "A Bruxa" é um Demônio honesto. Já explico por quê.


Conheço alguns satanistas por força do meu trabalho com pesquisa em religião. Todos que conheço são quase veganos. O máximo que pregam é o "combate" à Igreja Católica (coisa que qualquer criança no jardim da infância aprende nos últimos cem anos). Nem sabem o que foi o calvinismo (denominação protestante do filme). Os calvinistas eram gente de fibra, criaram os Estados Unidos. O mundo que legaremos para o futuro será um misto de praça de alimentação de shopping e gente tosca pedindo coisas de graça.

Nada como medir forças com o pecado e o Demônio (do tipo do filme) para criar músculos. Um Demônio honesto merece uma missa.

Os satanistas de hoje estão preocupados com o aquecimento global. Nada entendem do que um satanista decente entenderia. Você está se perguntando sobre o que um satanista decente entenderia? Preste atenção. Mas deixe de lado qualquer presunção de bondade que você tenha sobre si mesmo. Você quer mesmo conhecer o mundo?

Essas perguntas que abrem essa coluna são feitas pelo Demônio à jovem Tomasin na sequencia final do filme "A Bruxa". Ele pede a ela que assine seu livro (significando o pacto com ele), ao que ela responde, prontamente: "O que você tem para me oferecer em troca?". Aí, ele faz essas perguntas para ela. O que ele tem a oferecer para ela em troca é manteiga, beleza, delícia e o mundo inteiro.

Não vou contar mais nada. A pergunta dela para o Demônio indica que estamos diante de uma mulher sincera e de verdade.

O filme é construído a partir de textos do século 16. Textos de tribunais calvinistas (puritanos ingleses) em que manifestações do Demônio eram descritas. Almas superficiais veriam nisso apenas "patriarcalismo", "repressão", "abuso religioso", ou seja, tudo o que inteligentinhos veem em toda parte por conta de sua crassa pobreza de espírito.

A verdade é que o Demônio no filme é um especialista em natureza humana (sei que inteligentinhos ficam nervosos com essa termo, "natureza humana", mas quem liga para eles?). O Diabo é um humanista. Sempre foi. No filme, ele está preocupado em fazer Tomasin gozar. E o gozo, como bem sabia a psicanálise (não sabe mais), é "coisa de mulher que conversa com Deus e o Diabo".

A honestidade do Demônio está no fato dele saber que um pacto com ele significa o vício no gozo. E quem é viciado no gozo sabe que não há muita saída. Uma vez dentro da sua beleza e sua delícia ("Você quer um vestido bonito? Você quer uma vida deliciosa?"), fazemos qualquer negócio para permanecer gozando. Até morrer de gozar.

Outro dia, numa conversa, confessei que se fosse me dada apenas a possibilidade de ser um autor de livros de autoajuda, um palestrante motivacional ou um assassino profissional, eu escolheria esta última opção, por ser a mais sincera.

O mundo contemporâneo está a ponto de provar o que o Demônio nunca conseguiu fazê-lo: que o "bem" é idiota.

Ela seria o próprio dilúvio

São poucos os que acreditam, mesmo no PT, na possibilidade de uma reviravolta na sorte da já considerada ex-presidente Dima Rousseff. Está condenada. Tem uma semana para mudar o voto de sete senadores, dos 59 que já se manifestaram pelo seu impeachment. Missão quase impossível, apesar de viável na teoria.

Enquanto agora faltam dez dias ou um pouco mais, especula-se com a hipótese de Madame ser reconduzida ao poder. Seria o que de pior pudesse acontecer ao Brasil. Começa que ficaria sem vice-presidente, pois Michel Temer renunciaria. O atual ministério estaria demitido, por inteiro. No Congresso pareceria fora de propósito formar maioria, ainda que fosse grande o contingente de adesistas dispostos a dar o dito pelo não dito.


Na economia, os ínfimos resultados obtidos por Henrique Meirelles dariam lugar à maior das crises já verificadas na Republica. O número de desempregados se multiplicaria, assim como a falência atingiria a maior parte das empresas nacionais.

A maior dúvida, porém, diria respeito à mesma Dilma. Teria ela condições de governar uma nação nesse caso posta em frangalhos? Em que forças se basearia, já desligada do PT e sem um partido que não a tivesse repudiado? Onde buscaria apoio, sequer para encontrar auxiliares dispostos a acompanhá-la? Trata-se de um imperativo categórico reconhecer o malogro de um governo novamente chefiado por ela. Nem poderia repetir o vaticínio de Luís XV, aquele do “depois de mim o dilúvio”, pelo reconhecimento de que ela seria o próprio dilúvio.

Por tais motivos, afasta-se a visão do caos…

Orfandade olímpica

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O Brasil é uma terra de atletas órfãos, onde a sobrevivência é um gesto heroico e cotidiano
Katia Rubio, autora de 24 livros sobre psicologia do esporte e estudos olímpicos

Enlouquecimento global

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Evgeny Kazantsev
Segundo dados da Nasa, recentemente divulgados, 2016 deverá ser o ano mais quente no planeta desde pelo menos 1880. Antes disso não havia registros globais. O passado mês de julho já foi, em média, à escala planetária, o mais abrasador de sempre.

Há cerca de três anos a revista “Science” divulgou um estudo segundo o qual existe uma relação direta entre clima e violência. Uma equipe de pesquisadores das universidade de Princeton e Berkeley, liderada por Solomon Hsiang, cruzou dados sobre clima com outros sobre violência humana, ao longo de vários séculos. Os cientistas afirmam ter encontrado fortes evidências de que o aumento da temperatura, em particular quando associado a mais chuva, tende a elevar os índices de violência, quer individual, quer de grupo.

Lembrei-me, ao ler este estudo, de uma conversa que tive, há já muitos anos, com o romancista, poeta, cineasta e antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho. Foi na larga varanda do apartamento dele, no bairro da Maianga, em Luanda, durante a estação das chuvas. A cidade inteira era como um navio prestes a naufragar no calor. Ruy Duarte, poeta extraordinário — imagino o deslumbramento com que os leitores brasileiros o descobrirão um destes dias —, além de rara e curiosíssima figura humana, cresceu entre os horizontes sem fim do sul de Angola, por onde o pai, um aventureiro português, se passeava, caçando elefantes, e acabou transformando essa experiência inicial no centro de toda uma vida. Não fez outra coisa, quer enquanto poeta, cineasta ou antropólogo, senão debruçar-se, com curiosidade e paixão, sobre o universo dos pastores nômades do deserto do Namibe. Na tarde que hoje recordo vestia apenas um pano colorido atado à cintura, o traje tradicional desses mesmos pastores, além dos colares e pulseiras que sempre usava.
—Já reparaste que as maiores paixões, quase todos os grandes desastres de amor, bem como os piores crimes, ocorrem durante a estação das chuvas? — perguntou-me.

Devo ter olhado para ele com mal disfarçada incredulidade, pois logo me citou uma mão cheia de exemplos, uns íntimos, outros gerais e públicos. Comecei eu próprio a procurar histórias de conflitos desesperados e vastas loucuras de amor. A maioria ocorrera, em conformidade com a tese de Ruy, nos meses mais quentes, os quais, em Angola, são também os das grandes tempestades. Fiquei interessado:

— E porque acontece isso?

Ruy acreditava que o excesso de energia no ar, resultante da soma do calor e da chuva, enlouquece os espíritos. É como se as pessoas estivessem sob o efeito de uma droga poderosa, à qual não têm como escapar. Na época, eu estava escrevendo um romance sobre a extrema violência que se seguiu à independência de Angola, em particular a decorrente de uma suposta tentativa de golpe de Estado, a 27 de maio de 1977 (fim da estação das chuvas), na sequência da qual foram assassinados largos milhares de dissidentes. A conversa com Ruy deu-me o título para o livro: “Estação das chuvas”.

Ruy Duarte de Carvalho não tinha nenhuma base científica para sustentar a sua tese. Era pura intuição poética. Como tantas vezes acontece, contudo, a poesia parece ter-se antecipado à ciência.

Num outro exemplo interessante, a equipe liderada por Solomon Hsiang concluiu, que os períodos mais quentes e secos da oscilação sul do El Niño duplicam a probabilidade de qualquer país nos trópicos começar uma nova guerra civil.

A acreditar nas teses em causa vivemos em cima de brasas. Nos próximos anos, à medida que o aquecimento global se for agravando, iremos ter mais guerras.

Os políticos que se esforçam por desacreditar os estudos sobre o aquecimento global são, por coincidência, os mesmos que costumam defender os interesses dos fabricantes e traficantes de armamento. Veja-se o exemplo de Donald Trump. Não estou a sugerir que os fabricantes de armamento sejam responsáveis pelo aquecimento global, mas imagino que estejam atentos ao fenômeno.

No plano particular, convém ter cuidado com os amores da estação das chuvas, que, no Rio, acontecem sobretudo entre dezembro e abril. Ou seja, no fim do verão e naquela estação esquiva e quase metafísica à qual os cariocas gostam de chamar outono.

Se acaso, durante esses meses, cometermos algum ato tresloucado, arrastados por uma paixão avassaladora, empurrados por uma força maior do que nós, podemos sempre culpar o aquecimento global. Não foi o excesso de calor, afinal, a justificação de Meursault, o protagonista d’ “O estrangeiro”, de Camus, quando, numa praia argelina, cego pela luz do sol, assassinou um árabe?

José Eduardo Agualusa

O que o Rio ainda pode aprender com o legado dos Jogos de Londres


Parte da área do Parque Olímpic 2012 foi transformado em parque
No dia em que os Jogos de Londres acabaram, em 2012, a capital britânica já tinha um plano cuidadosamente traçado e um órgão público pronto para conduzir o legado olímpico.

Mas, ainda que as autoridades tenham conseguido revitalizar uma área degradada, que por anos carregou a fama de violenta e de mal servida de serviços e transporte públicos, nem tudo saiu exatamente como planejado.

"Há muito mais acerto que erro. Mas há coisas negativas, em especial relacionadas aos que moravam na região antes das intervenções e acabaram sendo pressionados a sair, a ir embora", observa Eduardo Fraga, empreendedor cultural que teve a oportunidade de acompanhar neste ano o trabalho da empresa pública criada exclusivamente para executar o projeto do legado.

A BBC Brasil conversou com especialistas e moradores da região de Stratford, no leste de Londres, sobre o legado dos Jogos de 2012.
Transporte, limpeza e o parque público, ainda que tenha que se pagar para usar a piscina olímpica e a pista de ciclismo, são apontados como heranças bem sucedidos da última Olimpíada. Ainda assim, há elefantes brancos e promessas não cumpridas.

O destino da vila dos atletas e dos novos empreendimentos erguidos nos arredores do Parque Olímpico é um dos itens da lista do legado que atraem duras críticas.

A promessa de manter 50% das moradias (não apenas da vila mas também as construídas ao arredor do parque) na categoria "economicamente acessível" não foi integralmente cumprida. A área atraiu novos investidores e moradores, o que fez o preço dos imóveis subir e acabou pressionando as autoridades locais a mudarem os planos.

Atualmente, cerca de 30% das moradias estão destinadas ao público mais carente com os chamados aluguéis sociais, além da compra compartilhada na qual o poder público ajuda pagando parte do imóvel e que atenderia a profissionais com renda mais baixa como policiais, bombeiros e enfermeiros.

Promessa de manter 50% dos imóveis
"economicamente acessíveis" foi descumprida
"O conceito de habitação economicamente acessível por si só é complexo e controverso. Ainda assim, as novas habitações estão sendo ocupadas não exatamente por uma maioria mais carente e nem por todos os que ali moravam antes das transformações", avalia o pesquisador Erick Omena, que faz doutorado em planejamento urbano em Oxford.

Omena pesquisa táticas de dominação para conduzir processos de remoção de moradores e estudou o caso de Londres. Ele diz que na área do parque olímpico foram destruídos dois acampamentos de ciganos, que acabaram sendo desmembrados e levados para quatro outras áreas, 450 unidades habitacionais destinadas a solteiros em situação vulnerável, uma horta e um jardim comunitário, além de uma moradia universitária.

"Existia um senso de comunidade ali que acabou sendo perdido", salienta o pesquisador, lembrando ainda que não se criaram tantos empregos quanto os prometidos.

"Essa conta exata dos empregos gerados e dos perdidos ainda precisa ser feita", diz Omena, observando que o shopping construído na região já estava previsto antes dos Jogos, mas ajudou a absorver parte da mão de obra local.

A área foi de fato revitalizada, ainda que não fosse um espaço totalmente abandonado. Hoje não há nada que remeta à pilha de geladeiras enferrujadas um dia fotografada bem no local onde foi construído o Parque Olímpico.

Ganhou uma eficiente rede de transporte, prédios novos e Parque Olímpico foi reformado, mantendo alguns dos equipamentos onde atletas competiram, oferecendo uma imensa área verde, fontes que funcionam no verão e charmosos passeios nas beiras dos canais.

Com tudo limpo e novinho, acabou atraindo interesses e pessoas de outros lugares.Image captionCom tudo novo, bairro ficou caro - muitos moradores não estão conseguindo continuar ali

O estudante brasileiro Danilo Freire foi um dos que foram morar próximo ao Parque Olímpico, num alojamento para universitários.

"Quando eu cheguei a Olimpíada já havia terminado, então eu não passei pela fase de construção, mudanças. As moradias são novas, e os preços são altos. Como o bairro é mais pobre do que a média, ficou ainda mais difícil de comprar uma casa legal na região", conta Freire.

Ainda que duas universidades tenham planos de construir unidades na região e o museu Victoria & Albert se prepare para abrir uma unidade ali, muitos dos locais não estão conseguindo se manter na vizinhança e, assim, deixam de desfrutar do legado diariamente.

Havia uma pista de ciclismo pública, mas que agora tem acesso limitado a quem paga - uma hora custa 40 libras (R$ 172) e paga-se 15 libras (R$ 64,50) para usar a de mountain bike. A preço da piscina é 5 libras (R$ 21,50) para adultos nadarem por uma hora.

"Houve a privatização de equipamentos públicos", lamenta Omena, que questiona a prometida "mobilidade social" aos que ali moravam.