sábado, 29 de junho de 2019

Brasil das malas


Radiografia do fanático 'que só sabe contar até um'

A questão do extremismo e da identidade do fanático, seja no âmbito político, cultural ou psicológico, agita todo o mundo e é de forte atualidade para a sociedade brasileira que se debate entre extremos difíceis de conciliar. Entre as definições que existem do fanático, nenhuma me parece mais aguda do que a do recentemente falecido escritor israelense Amós Oz, considerado um dos maiores e mais livres pensadores do nosso tempo. Em sua obra Mais de Uma Luz(Companhia das Letras, 2017), define o fanático como “aquele que só sabe contar até um”. Sua realidade termina nele. Sua matemática se esgotada aí. Não cabem nem dois, porque, segundo ele, “uma das realidades contundentes que identificam um fanático é sua ardente aspiração de mudar o outro para que seja como ele”.


O fanático abraça toda a realidade para que não possa haver ninguém diferente dele. Não existem em suas contas a soma nem a multiplicação. Segundo o escritor, “ele não quer cortinas no mundo, nem sombra de vida privada ou diferente da sua”. O verdadeiro fanático “se acredita enviado por Deus para purificar o mundo e torná-lo todo igual, sem diferenças”.

Nesta linha de raciocínio, para o fanático, “a justiça é mais importante do que a vida”, e o “ódio cego faz que quem se encontre do outro lado da barricada seja idêntico a ele”. Uma vez mais, o fanático só consegue contar até um. O dois não existe para ele, ou deve ser assimilado ou destruído.

Essa forte presença do fanatismo é hoje, segundo o escritor, mais perigosa depois do nazismo e do stalinismo. Naquela época, por algum tempo, os nazistas, por exemplo, se envergonhavam de sua condição e até chegavam a escondê-la. Hoje é ainda mais grave, já que a vacina parcial que tínhamos recebido está acabando e os fanáticos agem com o rosto descoberto, quase com orgulho. “Ódio, fanatismo, animosidade ao outro, ao diferente, e brutalidade política são proclamados à luz do sol”, segundo o escritor.

E assim, nesse clima do ressurgimento do fanático, “cada vez mais pessoas escolhem o ‘furioso’, o ‘chocante’ o ‘sinistro’, o ‘enlouquecedor’ e até ‘morrer e matar’”, anota o escritor israelense que morreu sem receber o Nobel de Literatura, certamente por suas posições abertas em favor do diálogo entre Israel e a Palestina, sua grande obsessão democrática e humanista. E acrescenta que hoje talvez não seja inocente nem casual “a infantilização das multidões em todo o mundo”, com o objetivo de alimentá-las com o maná da fascinação do fanatismo.

“Todos os tipos de fanáticos tendem a viver em um mundo em que tudo é preto ou branco”, escreve Amós, que confirma sua definição de alguém “que só sabe contar até um”. Não existe para ele a riqueza da soma das diferenças. O verdadeiro fanático é alheio e insensível à ideia de que possa haver algo ou alguém diferente dele. Assim, acaba privado de tudo o que enriquece e enobrece o mundo como é a diversidade. O fanático nunca entenderá valores como a amizade com alguém que possa levantar uma bandeira diferente da sua, como o diálogo, a política de gênero, a riqueza de compartilhar ideias e pensamentos que não sejam os seus.

O fanático de hoje é incapaz de desfrutar da luminosidade produzida pela mistura das cores. Para isso, teria de aprender a somar e multiplicar a luz em um grande caleidoscópio que reflita a riqueza da vida e de seus contrastes. Infelizmente, “só sabe contar até um”. Todo o resto não existe para ele, ou só lhe interessa domesticado ou morto.

Bolsonaro 'beija a cruz' por acordo Mercosul-UE

Jair Bolsonaro emitiu na cidade japonesa de Osaka a senha que eliminou o derradeiro entrave para a assinatura, em Bruxelas, na Bélgica, da histórica aliança de livre comércio entre Mercosul e União Européia. Num encontro com o presidente francês Emmanuel Macron, o capitão beijou a cruz do Acordo de Paris, comprometendo-se com o respeito às metas de redução de gases poluentes. Macron voara para o Japão disposto a travar o desfecho da negociação com o Mercosul caso Bolsonaro não afastasse de vez o risco de retirar o Brasil do acordo climático de Paris.

O gesto de Bolsonaro não foi banal. Marcou uma espécie de rendição do presidente brasileiro ao pragmatismo diplomático. Ele hesitava em reconhecer integralmente o Acordo de Paris desde a campanha presidencial de 2018. Na véspera, irritado com cobranças ambientais feitas pela premiê da Alemanha, Angela Merkel, Bolsonaro dissera que os alemães "têm a aprender muito conosco" em matéria de meio ambiente. Avisara que não desembarcara na reunião do G20 para "ser advertido por outros países". O ministro palaciano Augusto Heleno soara ainda mais corrosivo, recomendando a Macron e Merkel o seguinte: "Vão procurar a sua turma!"

Em Bruxelas, a delegação brasileira, comandada pelos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Tereza Cristina (Agricultura), procurava acertar-se com a turma europeia. Numa troca de telefonemas, Bolsonaro foi alertado para o fato de que os comentários feitos em Osaka ecoavam na sala de reuniões de Bruxelas. Não restava ao capitão senão abraçar as metas de Paris, pois o respeito ao acordo climático está expressamente previsto no tratado comercial do Mercosul com a União Europeia.

Consumado o desfecho positivo, Bolsonaro foi às redes sociais para faturar a novidade como uma conquista pessoal. Deu de ombros para esforços realizados ao longo de duas décadas. Não mencionou o passado senão para magnificar o presente: "Histórico!", escreveu Bolsonaro. "Nossa equipe, liderada pelo embaixador Ernesto Araújo, acaba de fechar o Acordo Mercosul-UE, que vinha sendo negociado sem sucesso desde 1999. Esse será um dos acordos comerciais mais importantes de todos os tempos e trará benefícios enormes para nossa economia."

No final de 2018, após a vitória de Bolsonaro na disputa presidencial, o então futuro ministro da Economia Paulo Guedes ofereceu uma ideia da importância que o novo governo atribuiria ao bloco regional que agora entusiasma o capitão: "O Mercosul não é prioridade", disse o Posto Ipiranga a uma repórter do jornal argentino Clarín. "Você está vendo que aqui tem um estilo que combina com o presidente, que fala a verdade. A gente não está preocupado em agradar."

A arrogância era uma decorrência da desinformação. Sob Michel Temer, estreitaram-se as negociações do Mercosul com o bloco europeu. A coisa só não avançou porque o apodrecimento ético do governo Temer afugentou os parceiros. A gestão Bolsonaro encontrou a bola na marca do pênalti. Até Paulo Guedes percebeu que seria uma tolice não empurrar um bom acordo comercial para o fundo da rede.

De resto, é imperioso registrar que o fechamento do acordo foi azeitado por ninguém menos que Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos ameaça impor barreiras tarifárias para produtos procedentes da Europa. Acossados, os países europeus passaram a enxergar o Mercosul com outros olhos. É como se dissessem para Trump: "Já temos para quem vender os nossos automóveis. E passaremos a comprar commodities agrícolas do Brasil, não dos Estados Unidos".

Suprema ironia: Ao fechar a economia dos Estados Unidos o populista preferido de Bolsonaro ajuda a abrir o mercado do Brasil. Grande avanço. Resta saber onde o chanceler Ernesto Araújo, ministro da cota de Olavo de Carvalho, vai acomodar o seu discurso anti-globalismo. É cada vez menor o espaço para a encenação daquilo que o ex-ministro Santos Cruz chamou de "show de besteiras".

Pensamento do Dia


As palavras são implacáveis

“As ações são a primeira das tragédias humanas, sendo as palavras a segunda. As palavras talvez sejam as piores. Elas são implacáveis”
Oscar Wilde
O brilhante escritor irlandês sabia bem do que falava. Perseguido e condenado acerbamente por suas ações, legou para o futuro as palavras que o deixariam figurar entre os maiores autores de seu tempo.

Sabia pensar e sabia escrever. E sabia quais palavras usar e quando. Exatamente o contrário do que acontece em nosso país nos dias de hoje.

No quintal dos Bolsonaros Cia Ltda, as palavras são usadas sem nenhuma correspondência com seu significado.

Vejam o que tuitou o ministro da Educação a respeito da prisão do sargento da FAB que transportava 39 kg de cocaína no avião presidencial: "Tranquilizo os "guerreiros" do PT e de seus acepipes o responsável pelos 39 kg de cocaína: NADA tem a ver com o Governo Bolsonaro. Ele irá para a cadeia e ninguém de nosso lado defenderá o criminoso. Vocês continuam com a exclusividade de serem amigos de traficantes como as FARC".

O crime cometido pelo sargento entrará para as calendas da História muito antes da aceitação, pela sociedade brasileira, da nomeação bolsonarista de um ministro para a pasta da Educação que não sabe o que quer dizer ‘acepipes’ e que usa seu cargo para julgar e condenar a seu bel prazer quem lhe dá na telha (fraquinha).

Ele ignora o peso das palavras.

Assim como o general Augusto Heleno que etiqueta como “falta de sorte” a maleta do sargento ter sido examinada no aeroporto em Sevilha. Falta de sorte? Ou falta de fiscalização eficiente no aeroporto militar de Brasília?

Da mesma forma que o capitão Bolsonaro assegura que o sargento e seus 39 kg de cocaína só foram apreendidos porque viajavam com ele, autoridade máxima do país! E não parou por aí. Disse que o militar se deu mal porque com ele vai ser assim: “creu, sifu, se deu mal”. Se não fosse o azar do rapaz a aduana sevilhana não o pegaria? Foi isso que ele quis dizer?


Jair Bolsonaro é o típico dono de quintal que arma a churrasqueira e senta com os companheiros para o papinho dominical sem compromisso com a realidade. Ali o objetivo é relaxar e se divertir. Ao saber que Angela Merkel se disse preocupada com as ações de seu governo, declarando que via “com grande preocupação, a questão da atuação do novo presidente brasileiro", disse: “Os alemães têm a aprender muito conosco. O presidente do Brasil que está aqui não é como alguns anteriores que vieram para serem advertidos por outros países. Não, a situação aqui é de respeito para com o Brasil. Não aceitaremos tratamento como no passado de alguns casos de chefes de estado que estiveram aqui”.

Tantas seriam as boas respostas que o capitão poderia dar se conhecesse a história da Alemanha, se lesse pelo menos um livro por ano, se estudasse um pouco mais. Mas não. Ficou nessa resposta que não dignifica o Brasil, só nos desmerece.

Se ao menos isso ficasse só entre nós... Quem dera...

Mas a Internet está aí para isso mesmo e o mundo inteiro conheceu o que disse Angela Merkel e o que respondeu o capitão. Assim como conheceu a ‘falta de sorte’ do militar que viajava no avião presidencial.

Viver na era digital, como disse Fernando Gabeira, é muito perigoso.

Tempo do dia, clima da era

Atravessamos época muito esquisita. Os movimentos ultraconservadores e nacionalistas de direita trouxeram questionamentos sobre o que é verdade e o que é mentira, o que é fato e o que é invenção, o que é ciência e o que é crendice, o que é avanço e o que é retrocesso. Em muitos casos — talvez em todos — os questionamentos estão embalados por premissas erradas em um mundo onde o conhecimento, aquele que não se alcança por completo nem mesmo após uma vida inteira de estudos e leituras, está sendo rapidamente trocado pelo arranhão intelectual. Arranhão intelectual é aquela assistida rápida ao vídeo do YouTube, leitura do grupo da família ou aquele passar de olhos por um punhado de caracteres no Twitter. Arranhão intelectual é aquela frase em latim para marcar pose, não posição, é aquele monte de asneiras sobre o cabeçote de meio milímetro do parafuso que não faz a menor falta no argumento estruturado. Arranhão intelectual às vezes é apenas o tempo do dia. O problema é quando ele é confundido com o clima da era.

Para quem teve a oportunidade de se sentir cidadão do mundo nos últimos 20 e poucos anos ao estudar e morar em outros países, convivendo com culturas diversas, era fácil acreditar que o clima daquela era seria insuplantável. Assim como para quem cresceu rodeado de mentores excepcionais era fácil não enxergar discriminação de gênero. Tive professores, mentores, parentes e marido — o último no presente e no singular — realmente fora de série. Foi apenas ao retornar ao Brasil com um filho pequeno, depois de alguns anos no FMI, que senti o peso de ser mulher numa profissão dominada por homens. Mas minha história não interessa. Interessam os fatos que hoje tornam inevitável a constatação de que mais do que o tempo do dia, o clima da era é de enfrentamento de uma realidade ainda brutal e ameaçada pelas inclinações ultraconservadoras que passaram a ocupar grande espaço no Brasil e no mundo.

E qual é essa realidade? No Brasil, os números não deixam dúvidas, como mostram o IBGE e o Banco Mundial. Nos últimos anos, apesar do desemprego elevado, as mulheres vêm aumentando sua participação no mercado de trabalho. Contudo, o índice de subemprego entre elas ainda é pouco mais de uma vez e meia maior do que entre os homens. Em cargos de diretoria e gerência, elas representam 42% do total de empregados, mas recebem apenas o equivalente a 71% do salário deles. Entre profissionais das diversas áreas do conhecimento — ou seja, falamos de pessoas com ph.D. ou doutorado — elas são maioria: 63%. Contudo, recebem o equivalente a 65% dos rendimentos deles, cuja qualificação é a mesma. Pasmem — esse é o pior diferencial entre as dez ocupações pesquisadas pelo IBGE. Em média, tomando-se todas as ocupações, elas recebem 79% do rendimento deles. O que salva esse número são os empregos como cargos de apoio administrativo — em que elas ganham 86% do salário deles — e o que o IBGE chama de “ocupações elementares”, em que elas ganham cerca de 90% do salário deles. Ou seja, o que fica bastante claro é que, no Brasil, quanto mais qualificada a mulher, maior a disparidade salarial em relação aos homens de mesma qualificação. Não há qualquer explicação para diferença tão gritante. Ou melhor, há uma diferença não surpreendente: mulheres que têm filhos recebem cerca de 35% menos do que mulheres que não têm filhos. Para as mulheres de renda mais elevada, essa diferença diminui, pois são capazes de superar as dificuldades contratando babás ou pagando creches. Para as mulheres de renda baixa, a falta de estrutura para atender a suas necessidades impõe enorme custo de ter filhos. Custo que poderia ser aliviado com políticas públicas como a provisão de creches ou a escola em tempo integral.

Em todo o mundo se vê grande movimentação das mulheres para garantir condições que lhes permitam a equiparação com os homens. Há países que estão mais avançados nessa empreitada, como a Espanha — as últimas eleições deram vitória ao PSOE, partido tradicional de centro-esquerda, por ter sido o que melhor levantou a bandeira da igualdade de gênero e do repúdio aos retrocessos representados pelos conservadores. Há países que estão engajados nas questões dos direitos das mulheres devido à superexposição a líderes cujo discurso tende a desprezar metade da população, como Trump aqui nos Estados Unidos. No Brasil, há uma mobilização crescente, embora ainda prevaleça um grau de apatia ou de repúdio perturbador. O tempo do dia não está fácil para quem defende a igualdade de gêneros como um valor a ser abraçado por todos. Mas, no fim das contas, o que importa é o clima da era, o Zeitgeist. Chova ou faça sol, esse já está francamente entranhado nas gerações mais jovens e nas nem mais tão jovens assim. Saravá.
Monica de Bolle