domingo, 23 de janeiro de 2022

A Covid e os bilionários

Foi o próprio Fórum Econômico Mundial que alertou: a cada 26 horas o mundo ganha um novo bilionário e a cada quatro segundos morre uma pessoa por conta da desigualdade, Choca, mas não surpreende. O capitalismo mostrou todas as suas garras desde o começo da pandemia. As estatísticas são terríveis e reveladoras. Mais de 17 milhões de pessoas morreram, isso contando por baixo e os 2755 bilionários do mundo viram sua fortuna crescer durante a pandemia mais do que nos últimos 14 anos.

Isso nos dá ideia de como interessa a certos grupos mais selvagens a continuidade da pandemia. Ser contra as máscaras e a vacina passa a fazer sentido diante desses números. Segundo levantamento do jornal o Globo, a ONG Oxfam calculou que a fortuna dos 10 mais ricos do mundo dobrou de 700 bilhões de dólares para 1,5 trilhão, 99% da população teve perda de renda, 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza e o Brasil ganhou 10 bilionários enquanto a fome aumentou a níveis de 17 anos atrás. Foi neste período que começou a ser combatida com o Bolsa Família, agora extinto e o governo Lula conseguiu tirar o país do mapa da fome.


Os bens de luxo voltaram a ser disputados por esses mais ricos e os ossos pelos mais pobres. Vivemos uma situação em que a miséria não causa mais nenhum efeito naqueles que se aproveitam justamente dessa desigualdade vergonhosa para ficarem mais ricos. Só há uma solução para essa discrepância e até mesmo as organizações internacionais como a Oxfam sugerem taxar as grandes fortunas, agora com a pandemia, ainda maiores. A mesma pesquisa diz que se os dez homens mais ricos do mundo perdessem 99,99% da sua riqueza, continuariam mais ricos que 99% da população. Não dá nem para calcular esses números à luz do humanismo, mas é verdade.

Além de ser uma opção política, a taxação das grandes fortunas, e mais a instituição da renda básica do ex-senador Eduardo Suplicy, passam a ser determinantes para a mudança desse quadro e passa a ser determinante também a mudança de orientação, começando aqui pelo Brasil, dessa política.

É uma tarefa longa, mas se continuarmos andando para trás como vem acontecendo vai ficar cada dia mais difícil. Acabar com a pandemia ou transformá-la numa endemia é a tarefa inicial, mas deve vir acompanhada de uma transformação política e econômica. Mais pandemias virão e é fundamental estarmos preparados, pelos menos com menos desigualdade, para enfrentarmos novamente essa seleção nada natural da vida. As eleições estão aí para concretizar essa mudança.

Ficamos nós

Já se passaram 75 anos desde que W.H.Auden escreveu o ambicioso poema “A era da ansiedade”, obra com dimensão de livro (200 e tantas páginas, dependendo da edição) que lhe rendeu o que talvez seja, até hoje, o Prêmio Pulitzer mais citado e menos lido da história. A obra em seis partes transcorre num bar nova-iorquino onde quatro desconhecidos discorrem sobre a vida, suas tormentas, perdas e sonhos. Descrito assim, soa a leitura fácil. Na verdade, excetuando estudiosos e privilegiados, a maioria de quem nela mergulha abandona a empreitada já na primeira parte (a signatária inclusive) — e vai procurar versos menos barrocos, menos alegóricos do poeta. Talvez, numa nova tentativa...

Mas foi justo com essa obra mamute de 1947, que versa sobre a teimosia humana em se entender como gente depois da Segunda Guerra, que Auden cunhou o que nos define hoje. Vivemos uma era da ansiedade continuada, pandêmica, agarrados ao que éramos sem saber se resta tempo para mudar. Num dos versos mais cativantes do poema, o personagem Quant diz que o mundo também precisaria de um bom banho , além de uma semana de descanso, para se recuperar do que fazemos com ele.

Vivemos aos sobressaltos, alternando espasmos de assombro com as catástrofes da hora. Sequer temos tempo para digerir as várias dores, coletivas ou privadas, que a todo momento disputam nossa atenção. A ansiedade surda, pesada e pegajosa que dá poucos sinais de se dissolver sozinha ora nos coloca em alerta máximo à espera de um Godot, ora nos prostra em estado de sonambulismo cívico para poder digerir o que passou. Isso não é viver, convenhamos.

Retirantes, Cândido Portinari

Merece admiração irrestrita quem consegue manter o foco e não se dispersa com o jorrar ininterrupto de notícias que se empilham e nos tapam a visão. Foi muito impactante assistir ao recente descarrego emocional do coordenador da Agência Humanitária e Ajuda Emergencial da ONU, Martin Griffiths, durante entrevista concedida ao site Democracy Now. “Um milhão de crianças sofrendo de desnutrição extrema! Um milhão de crianças!”, disse Griffiths com indignação incontida. Números são sempre abstratos quando em escala tão enorme, mas 1 milhão de crianças à beira da inanição num país de 23 milhões de habitantes nada tinha de abstrato. Ele referia-se ao alerta de que, a prosseguirem as sanções econômicas dos Estados Unidos contra o novo regime de Cabul, e a retenção de fundos afegãos pelo Banco Mundial com a volta do Talibã ao poder, ali poderão morrer, só este ano, mais civis que durante os 20 anos de guerra.

Menos de cinco meses atrás, estávamos todos grudados nas imagens do dramático desenrolar do abandono à própria desgraça daquele povo. Hoje, a pauta é outra. Sempre foi assim, apenas a notícia corria em ritmo mais lento. Parecia haver uma hecatombe ambiental aqui, um terremoto devastador acolá, alguma chacina macabra alhures, pensávamos compreender. Foi a instantaneidade e disseminação planetária do fluxo noticioso que nos desenraizou do viver de ontem, sem ainda aprendermos a viver no amanhã. Quanto ao presente, o sentimos em suspenso.

A ensaísta franco-cubano-americana Anaïs Nin, no primeiro volume do seu “Diário (1931-1934)”, se debruçou sobre outro tipo de desperdício humano: transitar por um mundo em que você hiberna pensando estar a viver e onde a ausência de prazer e alegria pode parecer uma doença inócua. “Milhões vivem assim (ou morrem assim ) sem sabê-lo”, escreveu. Trabalham em escritórios. Dirigem carros. Passeiam no parque em família. Criam os filhos. Por vezes, até acordam graças a algum tratamento de choque — o encontro com alguém, a descoberta de um livro, a mágica de ouvir uma canção —e são salvos da morte. Mas alguns nunca despertam.

Preâmbulo longo para conclusão telegráfica: entrou em estado vegetativo terminal o presidente da República que nem piscou para a despedida da mulher-raiz da alma nacional, Elza Soares. Ela, ao contrário, deixa uma teimosa sinfonia de permanecer viva para sempre.

Opção pelo conformismo

Neste ano em que o Brasil completa seu bicentenário, Darcy Ribeiro completaria 100 anos de idade. É dele a frase: “Ou nos indignamos, ou nos conformamos”. Durante nossa história, nos conformamos com a escravidão, com a corrupção, com a desigualdade, com o desflorestamento, a deseducação, com a persistência da pobreza. Nos conformamos com estas tristes características da economia e da sociedade, e não construímos um país com eficiência, justiça e sustentabilidade. Por 350 anos, a escravidão das pessoas era tão aceita que o fato não era percebido como uma anormalidade moral.

Agora, no nosso bicentenário, vemos como normal a realidade que nos transmite a televisão: lado a lado a fome que maltrata e mata 20 milhões de pessoas famintas, e notícias de que somos o celeiro do mundo, o maior exportador de alimentos; ao lado também de farta propaganda de alimentos para convencer quem já come a comer mais; e também programas de culinária,novelas e reality shows onde os personagens passam parte do tempo esbanjando comida, ao redor de mesas ou em frente de geladeiras e fogões.

Diante deste quadro, Darcy diria: “Ou nos conformamos, ou nos indignamos com a simultaneidade da fome com o excesso de comida. Aparentemente, a opção brasileira continua pelo conformismo. Salvo para grupos de pessoas de boa vontade, que as televisões também mostram, exercendo a generosidade de levar comida para alguns dos que não têm. Graças a estas pessoas e empresas que não se conformam, centenas de de pessoas recebem comida uma ou outra vez, durante um dia ou outro dia. Mas estes gestos pessoais de boa vontade que alimentam alguns não são capazes de transformar o país para que a fome não ocorra em nosso território.

No conjunto, a sociedade brasileira optou pelo conformismo, que mantém as perversidades tão toleradas que nem são percebidas como imorais. Tanto quanto a escravidão era aceita, “porque os escravos são negros”, a educação de qualidade é negada porque “a criança é pobre”, a fome ao lado da gastronomia porque “uns têm, outros não”. As pessoas se conformam com a realidade injusta moralmente, até absurda logicamente, mas real e permanente porque aceita como uma opção coletiva pelo conformismo.

Brasileiros ricos passam bem pela pandemia

Eles representam cerca de 2% da população brasileira, mas seus gastos são equivalentes a quase 20% do consumo nacional.

Em meio à pandemia, enquanto a maior parte do país sofria com perda de renda, em meio ao avanço do desemprego e da inflação, os brasileiros mais ricos se viram impedidos de gastar em viagens internacionais e em compras nas principais capitais do consumo do mundo.

Com uma "poupança forçada" pela mudança de hábitos, eles gastaram em luxos no mercado nacional e investiram volume recorde de dinheiro no exterior.

Assim, enquanto parte da população fazia fila para receber ossos no açougue, em meio aos preços recordes da carne e ao avanço da fome, outra parcela — bem menor — aguardava na fila para comprar um helicóptero.


Segundo um fabricante ouvido pela BBC News Brasil, a espera por uma aeronave nova chegou a 20 meses, dependendo do modelo, em meio a um salto de demanda.

A fabricante de carros de luxo Porsche bateu recordes de vendas no país em 2020 e 2021, enquanto o setor imobiliário de luxo e super luxo — de apartamentos acima de R$ 1 milhão e R$ 2 milhões, respectivamente — registrou um crescimento de mais de 80% nos lançamentos e de 47% nas vendas.

Segundo a empresa de pesquisa de mercado Euromonitor, a chamada "classe A" brasileira representava 2% da população em 2021.

São pessoas com renda familiar anual acima de US$ 45 mil (R$ 248 mil ao ano ou cerca de R$ 21 mil por mês, ao câmbio atual), cujos gastos equivaleram no ano passado a 19,4% do consumo nacional.

Embora a classe A tenha diminuído após dois anos de pandemia (ela representava 2,7% da população em 2019, segundo a Euromonitor), o consumo dessa parcela de maior renda foi bem menos afetado pela crise sanitária do que o restante da população.

"Os consumidores ricos acumularam reservas involuntárias importantes por conta das opções de lazer reduzidas e das limitações sociais impostas pela pandemia", observa Guilherme Machado, gerente de pesquisa da Euromonitor International.

"A maioria dos brasileiros desses grupos de maior renda está acostumada a viajar para o exterior e comprar itens de luxo nos principais centros globais de consumo, como Nova York, Paris e Londres. Mas, com o fechamento de fronteiras, esses consumidores têm buscado o prazer no mercado de luxo local, resultando em níveis de faturamento sem precedentes para algumas marcas de luxo", destaca o pesquisador.

Uma dessas marcas foi a Porsche. Enquanto a venda de automóveis de passageiros em geral no Brasil despencou 28% em 2020 e caiu mais 3,6% em 2021, em meio a paradas de produção provocadas por uma escassez global de semicondutores, a marca de luxo bateu recordes de vendas no país nos dois anos da pandemia.

Os compradores têm enfrentado filas de espera superiores aos 3 a 6 meses normalmente necessários para a customização dos carros que são sinônimo de ostentação.

"Em 2021, nós vendemos 3.079 veículos aqui no Brasil, um crescimento de 24% em relação a 2020, quando havíamos vendido 2.487 unidades", conta Leandro Rodrigues, gerente comunicação e relações públicas da Porsche no Brasil.

"2020 era o nosso recorde anterior, batemos recordes em 2020 e 2021", destaca, lembrando que a empresa passou a operar diretamente no Brasil em 2015 e tem crescido a uma média de 27% ao ano desde então. A trajetória de alta não foi abalada pela pandemia.

"Quando você tem clientes que tinham uma parcela grande de consumo no exterior e de repente esse consumo não acontece, naturalmente eles têm recursos disponíveis para a compra de produtos aqui no Brasil", avalia Rodrigues.

O executivo destaca ainda as restrições de opções de lazer mesmo dentro do país como outro fator que explica o impulso nas vendas.

"Naturalmente, alguns clientes buscaram outras maneiras de se manterem entretidos e realizarem seus sonhos e suas vontades. Isso são fatores que ajudam a explicar essa demanda", conclui o executivo.

Os consumidores não se abalaram nem com o efeito do câmbio sobre o preço dos carros. Com fábrica na Alemanha, a operação da Porsche no Brasil foi impactada pela valorização de 40% do euro em relação ao real desde o período anterior à pandemia.

"Parte dessa alta precisou ser repassada aos preços", diz o porta-voz. O Porsche 911, modelo mais vendido pela montadora, tem valores que variam de R$ 800 mil a mais de R$ 1 milhão.

Em meio a um salto de demanda, o mercado brasileiro de helicópteros e jatos executivos viu a fila de espera pelos produtos chegar a até 20 meses durante a pandemia.

"O mercado vinha represado há um tempo devido aos problemas econômicos brasileiros. Com o advento da covid e do lockdown, houve uma demanda maior, principalmente em helicópteros na área VIP e o que chamamos de 'para público', como polícia e bombeiros", diz Rubens Cortellazzo, gerente de vendas da fabricante italiana Leonardo Helicópteros.

"Área VIP são operadores civis, como empresas de grande porte, empresários e táxi aéreo", explica o executivo, sobre o sentido no mercado de helicópteros da sigla que em inglês quer dizer "very important person" (pessoa muito importante).

Segundo Cortellazzo, as vendas para o segmento privado foram impulsionadas pelo medo de contágio e pela redução na oferta de voos comerciais durante a pandemia.

Conforme o executivo, o mercado brasileiro civil de helicópteros monoturbina e biturbina de médio porte cresceu 26% em número de entregas em 2021, em relação a 2020.

"Muitos clientes ficaram com recursos represados. Com a restrição de viagens internacionais e o medo da pandemia, houve mais apetite para investir em equipamentos para utilizar no mercado local", conta o gerente.

"A espera para compra, que antes era de 12 meses, chegou a 15 ou 16 meses, dependendo do modelo. Tem modelo em que estamos falando já em 20 meses de espera."

Cortellazzo diz que os compradores usam os helicópteros principalmente para trabalho.

"A gente brinca que o helicóptero é uma 'máquina do tempo'. Você economiza muito tempo no deslocamento de uma reunião para outra, de São Paulo para o interior, de uma capital a outra. Então o helicóptero é uma ferramenta muito interessante para esses empresários."

A aeronave de entrada da Leonardo (isto é, seu modelo mais básico), chamada AW119 Koala, tem preço médio de 4,3 milhões euros (cerca de R$ 27 milhões).

Para o mercado VIP, que vai até aeronaves de médio porte, o valor pode chegar a 15 milhões de euros (cerca de R$ 94 milhões).

As vendas de apartamentos de luxo e super luxo bateram recorde nos primeiros nove meses de 2021.

São empreendimentos com três ou quatro suítes, metragens amplas acima dos 100 m², janelas e pés direitos generosos e grande número de vagas na garagem.

Em janeiro e setembro do ano passado, os lançamentos neste mercado chegaram a 7,6 mil unidades, alta de 81% em relação a igual período de 2020. No mercado imobiliário brasileiro em geral, os lançamentos cresceram 30% na mesma base de comparação.

Em vendas, o avanço do mercado de luxo e super luxo foi de 47% nos nove primeiros meses de 2021, com mais de 10 mil unidades comercializadas, superando R$ 15,4 bilhões em valor geral de vendas, segundo dados da Brain Inteligência Estratégica, consultoria especializada no mercado imobiliário.

Para Marcos Kahtalian, sócio fundador da Brain, um dos fatores que impulsionou as vendas no mercado imobiliário de alto padrão no período recente foi a taxa de juros em nível baixo — a Selic (a taxa básica, determinada pelo Banco Central) começou 2021 em 2%, menor percentual da história.

"Isso injetou uma grande liquidez no mercado e atraiu recursos ao setor imobiliário, já que outros investimentos estavam com retornos muito baixos", diz Kahtalian.

"Outro fator, foi comportamental: em função da pandemia, houve uma busca intensa — para aquelas pessoas que tinham renda, evidentemente — por moradias maiores, mais amplas, mais confortáveis, tanto nas capitais, quanto fora delas. Houve um movimento em busca de espaço e qualidade", observa o consultor.

São Paulo e Rio de Janeiro são os dois principais mercados para os empreendimentos de luxo, com destaque para bairros como Jardins, Vila Nova Conceição e Moema na capital paulista e Zona Sul e Barra da Tijuca na metrópole fluminense.

Nas cidades do interior, se destaca a busca por empreendimentos horizontais, como condomínios de lotes ou condomínios fechados de casas de alto padrão.

Em 2022, a alta de juros pode desacelerar um pouco esse mercado, acredita Kahtalian.

"Para o mercado de luxo, a alta de juros faz menos diferença do que para a classe média, mas faz alguma diferença", diz o consultor.

"Faz menos diferença porque normalmente o comprador não financia o imóvel, ou financia pouco. Mas faz alguma diferença porque há uma atratividade para o capital ser investido de outra forma", afirma, citando como exemplo os investimentos de renda fixa, como títulos públicos, que têm baixo risco e se tornam mais interessantes com a Selic próxima dos 10%.

Também esse ano, devido à forte alta recente dos preços no mercado imobiliário, a definição de luxo e super luxo deve ser revista, subindo para empreendimentos a partir de R$ 1,5 milhão e R$ 3 milhões, respectivamente.

"O mercado de luxo e super luxo é pouco representativo em unidades — cerca de 7% do total nos últimos nove meses. Mas é mais ou menos 33% do valor lançado e 40% do valor total vendido. Ou seja, é um mercado de menos volume, mas de muito valor", diz o sócio da Brain.

Por fim, um último dado que mostra como o chamado andar de cima passou com tranquilidade pela pandemia vem do mercado financeiro.

Segundo dados do Banco Central, o investimento financeiro brasileiro no exterior superou os US$ 18 bilhões (R$ 100 bilhões) entre janeiro e novembro do ano passado, alta de 76% em relação a igual período de 2020 e recorde da série histórica iniciada em 1995.

Conforme Claudia Yoshinaga, coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da FGV (Fundação Getulio Vargas), isso se deve à maior facilidade atual para investir em produtos internacionais e à forte alta recente do dólar em relação ao real, que leva investidores a buscarem a segurança de ter parte do seu dinheiro fora dos riscos da economia brasileira.

"Esse tipo de investimento se popularizou de alguma maneira, saiu daquele cliente 'private' com milhões de reais. Mas ainda não é um produto que qualquer brasileiro tem, estamos falando das camadas mais ricas, de um segmento de varejo de alta renda", diz a professora.

"É um público que tem o dólar como uma moeda importante no seu dia a dia, em viagens de férias ou hábitos de consumo atrelados ao dólar, como itens de luxo e vinhos. Então, para essas pessoas, ter uma parte do seu investimento em moeda forte ajuda, como uma forma de diversificar e de se proteger de altas de preços", observa a especialista em finanças.

"São pessoas que em sua maioria não perderam renda na pandemia e reduziram suas despesas, porque gastam muito com restaurantes, entretenimento e viagens de férias no exterior. Com o distanciamento, essas pessoas conseguiram guardar mais dinheiro."

Para Yoshinaga, apesar de a alta do dólar deixar os investimentos no exterior mais caros e a alta de juros no Brasil tornar os investimentos locais mais atrativos, a volatilidade do ano eleitoral deve continuar estimulando brasileiros a buscar investimentos no exterior, como uma forma de diminuir sua dependência do que acontece na economia nacional.

Flagelo convergente

Os seguidores de Lula e os de Bolsonaro detestam que seus respectivos chefes sejam comparados entre si. Sim, são gritantes as diferenças, mas ambos convergem em ponto crucial. Os líderes das pesquisas não apresentaram até aqui um conjunto de ideias coordenado de como tirar o País da estagnação.

Cada um ajudou a aprofundar aquilo que o professor e economista da FGV Fernando de Holanda Barbosa deu o título em recente publicação de “flagelo da economia de privilégios”. Os privilegiados, segundo o autor, são empresários obtendo subsídios, tratamento fiscal diferenciado, conjuntos de trabalhadores com tratamentos especiais, funcionários dos três Poderes com salários acima do setor privado, além de aposentadorias e pensões também especiais.

O “conflito social” entre enormes grupos de privilegiados e o resto produz as cíclicas crises fiscais das quais a atual está longe ainda de ter sido debelada. E ela precisa ser resolvida logo, sob o risco de tirar qualquer perspectiva de futuro para o País.


A manutenção do sistema de privilégios é também o pano de fundo para se entender o embate político no Brasil que, no extremo, não passa de disputa cada vez mais acirrada (pois os cofres quebraram) por extrair renda do Estado. A esfera da política, em especial a do Legislativo, reflete essas “escolhas” pelo voto, e sustenta o cenário macro no qual falta investimento pois falta poupança e falta poupança pois não há uma “escolha” política nesse sentido.

A convergência entre os personagens políticos Lula e Bolsonaro se dá, portanto, no fato de representarem a manutenção do “status quo” – algo que enfurece as respectivas claques, especialmente a acadêmica, mas que todo dia encontra exemplos no noticiário sobre a facilidade com que os grupos de privilegiados pulam de um lado para o outro do espectro político.

A rigor, as próximas eleições deveriam ser vistas como o verdadeiro choque entre as forças empenhadas em mover o País para fora do flagelo dos privilégios e o “sistema”, que dá sinais de estar confortável com Lula ou Bolsonaro (o Centrão vai mandar tanto faz qual dos dois). Mas essas forças, chamadas de “terceira via”, estão desarticuladas, ainda que tenham cabeças brilhantes, think tanks excelentes e diagnósticos precisos.

É necessário reconhecer que não se trata apenas de sucesso eleitoral em prazo historicamente muito curto. O problema maior é enfrentar a situação de um país que dá preferência a consumo em vez de poupança, e está desprovido de uma noção geral de justiça social e combate à desigualdade.