quarta-feira, 25 de março de 2020

Brasil: Governo segue recomendação sanitária


Governo mostra falta de bússola moral com proposta para a crise

O direito pode dar duas contribuições em um momento de crise. A primeira delas é indicar o fim último para o qual devem convergir todas as ações do Estado —que, no caso, é a preservação do direito à vida e da dignidade humana, especialmente dos mais vulneráveis.

A segunda função do direito é contribuir para a estabilização de expectativas, permitindo a cooperação e coibindo comportamentos oportunistas e contrários ao interesse comum.

Ao editar a Medida Provisória (MP) 927, de uma só tacada, o governo conseguiu criar enorme insegurança jurídica, além de violar, de maneira frontal, sua obrigação de “não deixar ninguém para trás”.

Preservar o emprego e a renda dos mais pobres —ao lado de medidas de proteção da saúde da população— é o que mais importa neste momento.

Sem renda ou salário, uma imensa parte das famílias perderá as condições mínimas de subsistência. Em um país tão desigual como o Brasil, em que 13,6 milhões de pessoas vivem em comunidades e favelas e em que cerca de 70% dos empregados recebem até três salários mínimos, a perda da renda ou a precarização do emprego terão consequências devastadoras para largas parcelas da população.

Ainda que o artigo 18 da referida MP, que permitia simplesmente a suspensão do contrato sem qualquer contraprestação, tenha sido revogado horas após sua publicação —em decorrência de uma rápida e avassaladora reação da sociedade e das demais instituições—, sua mera proposição dá a dimensão do quanto este governo é destituído de bússola moral.

De acordo com o ministro Paulo Guedes (Economia), Bolsonaro determinou um recuo porque estava “apanhando muito”. O recuo cínico do presidente, mantendo outros pontos controvertidos da MP, confirma a estratégia do governo de dar três passos à frente, recuar um e, com isso, avançar duas casas no desmonte do estado social.

A adoção de medidas voltadas à proteção da saúde financeira das empresas não é apenas legítima, mas essencial. As empresas precisam, sim, ser ajudadas neste momento, até porque delas depende grande parte dos empregos.

Para isso, além de abertura de crédito e medidas no campo tributário, países como França, Dinamarca e mesmo os EUA criaram mecanismo de transferência de recursos para os trabalhadores, de forma a aliviar o peso do salário para as empresas.

Na Inglaterra, o governo conservador de Boris Johnson (frise-se o termo “conservador”) decidiu arcar com 80% do salário de empregados, até o teto de 2.500 libras (cerca de R$ 15 mil), sob condição de que os empregos sejam mantidos. Evidente que a situação dos cofres brasileiros não se assemelha a dos ingleses.
Depois de escancarada a lambança, Guedes assumiu que houve “erro de redação” e que a MP deveria ter sido acompanhada por outras medidas que combinassem o seguro-desemprego com algum tipo de compensação financeira decorrente da perda do salário. Mas, claramente, o governo não tinha nenhuma proposta para colocar à mesa.

Permaneceram na MP outras questões juridicamente obscuras. O artigo 2º conferiu um ardiloso cheque em branco para empregadores, na medida em que possibilitou que acordos individuais se sobreponham aos acordos coletivos e à própria lei.

Isso frustra não apenas a Constituição, mas vai também na contramão do que dispõe a Convenção 98 da OIT. Não devemos nos surpreender se esse dispositivo for utilizado, entre outras coisas, para reduzir salários —o que é vedado pelo artigo 7º, VI da Constituição Federal.

Dada a confusão instaurada pela MP 927, o melhor seria a suspensão imediata de sua eficácia e a edição de uma nova medida que de fato contribuísse para promover o bem-estar dos mais vulneráveis, sem causar mais insegurança jurídica.
Oscar Vilhena Vieira

'Eleito' diz não ao povo


O povo tem que parar de deixar tudo nas costas do poder público
Jair Bolsonaro

Convite ao genocídio

Quando parecia que os líderes das principais nações do mundo estavam convergindo para compreender a gravidade e o ineditismo da crise decorrente da pandemia de covid-19 e para adotar medidas restritivas à atividade econômica e à circulação de pessoas para tentar conter a velocidade da expansão do contágio, a semana iniciou sob o signo do risco de grave retrocesso.

Nos Estados Unidos, candidato a novo epicentro da pandemia graças à velocidade com que os casos de infecção pelo novo coronavírus crescem, Donald Trump recuou da postura mais comedida que vinha adotando nos últimos dias para dizer que quer o país “reaberto” na Páscoa.

Essa declaração contraria todas as projeções de epidemiologistas, que acreditam que o pico da doença ainda não chegou aos EUA. A volta de Trump ao negacionismo tem uma razão evidente: a aproximação das eleições. Sua candidatura foi atingida em cheio pela constatação, literalmente na pele das pessoas, de que o sistema de saúde americano não é funcional e, num momento de calamidade pública, pune até com a morte aqueles que não têm recursos para bancar exames e internações.

A pandemia colocou em pauta, mais do que antes, as propostas do Partido Democrata para a reforma do sistema.

O problema é que os humores do presidente norte-americano sempre influenciam diretamente os de seu admirador brasileiro. E não demorou.


Jair Bolsonaro, que tinha levado um susto com o combo comitiva majoritariamente enferma, repúdio à sua ida ao Coronapallooza, panelaços em doses diárias, pesquisas mostrando um derretimento de sua popularidade e protagonismo dos governadores no combate ao coronavírus, voltou a zombar do risco em cadeia nacional de rádio e TV.

Não que ele tivesse se convencido da gravidade do que ainda estamos prestes a viver em algum momento: toda sua tentativa de soar colaborativo com governadores ou compassivo soava forçada, do discurso recitado à expressão corporal incomodada.

O “vamos abrir na Páscoa” de Trump foi um convite ao relaxamento de Bolsonaro. Em rede nacional, o presidente foi cínico. Encontrou espaço para invadir o confinamento de milhões de brasileiros aflitos para dizer que seu passado atlético faria com que, mesmo que contraísse covid-19, para ele seria uma “gripezinha” ou “resfriadinho”.

Além de zombaria com milhares de doentes e dezenas de mortos, essa postura é uma tentativa patética de vacina: o Hospital das Forças Armadas se recusa a fornecer os testes de dois integrantes da comitiva bolsonarista aos EUA. Ao mesmo tempo o governo tenta restringir a Lei de Acesso à Informação Pública com um pretexto justamente neste momento. Coincidência?

O presidente encontrou energia para, no momento em que se espera que seja adulto, responsável e lidere o País, brincar com a Rede Globo e ironizar um médico do quilate de Drauzio Varella, que tem uma vida dedicada à saúde pública e aos mais vulneráveis.

Trump não é o único estímulo a que Bolsonaro volte a calçar o Rider da irresponsabilidade. O presidente é suscetível às redes sociais, e ali o que não falta é idiota clamando que existe “histeria” da mídia com uma pandemia cuja letalidade ainda não é conhecida.

Mais: alguns empresários boçais desdenharam da pandemia nos últimos dias ao dizer que um número “x” de mortes não era pior que um número “y” de falências ou empregos perdidos.

Não se pode mercadejar com a vida. Isso é uma verdade absoluta para qualquer país, todas as religiões e indistintas ideologias. É o que nos separa da barbárie. Transigir com mortes em nome de uma incerta retomada econômica é nos privar, além de tudo de que já abrimos mão em nome da solidariedade, daquilo que nos é inalienável e não entra em quarentena nunca: nossa humanidade.

Imagem do Dia

Estátua de Nelson Rodrigues, em Copacabana,
 com máscara cirúrgica (Márcia Foletto / O Globo)

De Leila Diniz, 75 anos, para Bolsonaro: "(.)"

Bolsonaro, em sua ignorância aos grandes nomes da pátria, desconhecedor confesso de Tom Jobim e João Gilberto, não deve ter noção de quem foi Leila Diniz (1945-1972), a primeira grande estrela das novelas da Globo. Ela faria 75 anos neste 25 de março. Lá do alto, no entanto, em sua nuvem de plumas e paetês, ela manda dizer que sabe muito bem o que o presidente fez no verão passado. Hoje de manhã, estupefata depois de ter visto o discurso da excelência na televisão, mandou um e-mail que aqui vai em primeira, e besuntada de álcool gel, mão.

“Meu desprezível Bozo, não pergunte pra Damares quem sou eu. Ela deve me achar um mau exemplo de mulher, o avesso desse negócio de abstinência sexual e virgindade que ela prega do alto da goiabeira dela. Eu sou aquela que preferia trepar no coqueiro e tirar coco. Eu, grávida, ia à praia sem aquela bata que cobria a barriga. Me cuspiram na cara em Ipanema. Sofri o diabo por querer fazer o que quisesse, sem prestar contas aos que não quisessem. Me chamavam de (*) e feminista. Eu não era uma coisa nem outra. Queria ser livre, fazer o que me desse na telha. Uma vez, diante de um empresário assediador, que queria me comer de qualquer jeito, eu cansei de ser gentil e repetir dúzias de desculpas. O cara não entendia, oferecia grana, joias, o (*) a quatro. Uma noite, (*) da vida com a boneca aqui que só dizia não, ele escrotizou de vez. Disse que eu dava para todo mundo. Foi aí que eu precisei ser sincera, herança maior que meu pai, membro do partido comunista, me deixou: “É verdade, eu dou pra todo mundo, sim, mas não dou pra qualquer um”. O cara parou de me encher o saco.

Estou escrevendo, Bozo, porque eu estava aí, no auge da carreira, estrelinha de novela, quando o pau quebrou. Os militares fecharam o Congresso e milhares de intelectuais, estudantes, políticos, sindicalistas, foram postos em quarentena nas prisões. O vírus da época era a ditadura. Eu vi o filme que te inspira, meu caro, sei muito bem o que você fez no verão passado e o que você está ensaiando repetir. Sofri na pele com os teus ídolos. Em 69, meia dúzia de meses depois do AI-5, dei uma entrevista prum pasquim aí do Rio. Nada que outras mulheres já não estivessem dizendo e vivendo em Ipanema, na PUC, mas em jornal era novidade. Zero de política. Não mandei a gurilada tomar onde quer que fosse. Eu queria apenas a liberdade de viver do meu jeito. Disse, por exemplo, que podia ser feliz com um homem e ir pra cama com outro. Que não estava casada, que na minha cama passavam uma noite e eu mandava embora.

Foi no tempo em que mulher não falava palavrão, e eu falava todos. Tudo mais suave que esses que você diz hoje pros jornalistas. Os caras do pasquim, quando publicaram a entrevista, no lugar dos palavrões colocaram asteriscos. A (*) ficou pior ainda. Deu a maior (*). As feministas e a esquerda me acharam uma (*) por estar falando em sexo numa hora daquelas. A família católica me chamou de (*). A milicada me achou uma (*) perigosa. Perdi todos os contratos, precisei abrir uma loja de roupa indiana na General Osório, e só voltei a trabalhar na televisão depois que assinei um documento no DOPS. Nele eu me comprometia com a polícia a nunca mais falar palavrão na televisão e em entrevista. Foi (*).

Hoje é meu aniversário, Bozo. A Elis Regina já me mandou um beijo, e eu devia estar comemorando na nuvem da Elke Maravilha. Estou passando aqui para mandar um (*) básico e dizer, meu caro, que vi o teu discurso na televisão ontem. Assustador. Parecia a cena de um filme que fiz com o Nelson Pereira, o “Azyllo muito louco”. É baseado num conto do Machado de Assis (já te ouço perguntando, “quem?”). É a história de um sujeito que interna toda a cidade num hospício, todos suspeitos de loucura, e no final acaba sozinho lá dentro porque, evidentemente, o louco era ele. Acho o filme a tua cara, Bozo, e com isso me despeço. Está dispensado de me dar os parabéns. Fica aí com o teu vírus e receba daqui o meu mais estridente panelaço."

Presidência cobrada

Nós estamos aqui, os quatro governadores do Sudeste, em respeito ao Brasil e aos brasileiros, e em respeito ao diálogo e entendimento. O senhor, como presidente da República, tem de dar o exemplo, tem que ser o mandatário para comandar, dirigir, liderar o país, não para dividir
João Doria, governador de São Paulo

Oxigênio em volume máximo

A pandemia do coronavírus comprova que não existem soluções privadas para a saúde da população. A escala e a natureza do problema não deixam dúvidas sobre a importância de sistemas públicos abrangentes e qualificados. A imensa base do iceberg está constituída por crianças e adultos que não sabem ser fonte de disseminação. A fração dos que são positivos e experimentam nenhum sintoma ou sinais limitados de infecção, estimada em 86%, é a principal origem do contágio dos casos da doença.


O invisível e, para a maioria, imperceptível microrganismo não tem preferência por raça, cor, orientação sexual ou condição social. Cada indivíduo é simultaneamente risco para os outros e vulnerável ao contato com portadores do vírus. Não se pode culpar ninguém pela alta letalidade, especialmente em idosos, pessoas com morbidades prévias e inexistência de vacina ou garantia de cura. A resolução do dilema entre o impacto econômico da propagação viral e as medidas drásticas para minimizar mortes foi favorável à saúde. Governos que inicialmente minimizaram a doença, tentaram relativizar, apelaram para o “sempre foi assim” não convenceram. O reconhecimento da ameaça coletiva provocou uma virada radical nas prioridades cotidianas.

Informações sobre o número de casos, as comparações, projeções e expectativas de controle da doença se tornaram mais ou tão importantes do que os índices de desempenho dos mercados. Cidades vazias e ruas desertas abrigam uma intensa e detalhada troca de informações e experiências sobre o autoisolamento. A pertinência de caminhar ao ar livre, meios para comprar alimentos, como realizar a vacinação, o uso de produtos e práticas de higiene e apoio a parentes, amigos e vizinhos tornaram-se assuntos importantes. Mortes de alguns em nome da minimização de prejuízos econômicos foram desautorizadas. A regra de ouro do equilíbrio fiscal e o corte indiscriminado de gastos sociais perderam sentido. Exceto bizarrices pontuais, prevalece um vigoroso consenso internacional em torno da necessidade de aumentar despesas públicas com saúde, assistência social e ciência e tecnologia. Nas mídias, estão cientistas e profissionais de saúde, compartilhando publicamente seus conhecimentos e incertezas. Aqueles economistas cheios de certezas sobre os sacríficos a serem impostos para os pobres foram ofuscados pela força e premência dos debates para preservar vidas.

O Brasil reconheceu precocemente o coronavírus como emergência de saúde pública. Mas parte do precioso tempo (mais de dois meses) entre a tragédia na China e a primeira morte no Brasil foi desperdiçada no contencioso histeria versus drama social. Medidas para fortalecer o SUS e atenuar o agravamento da recessão econômica vêm sendo administradas a conta-gotas. Os investimentos sociais anunciados são insuficientes, desproporcionais à magnitude da crise sanitária. Escassez e parcelamento de recursos federais para a saúde —R$ 5 bilhões, aprovados no final de fevereiro, provenientes do remanejamento de emendas parlamentares, acrescidos agora por R$ 6,8 do DPVAT — dificultam superar com presteza limites estruturais do SUS. Sem um volume adequado de recursos, fica inviável organizar da noite para o dia um sistema assistencial abrangente e integrado. Estados e prefeituras com maiores orçamentos estão participando dos esforços propostos pelo Ministério da Saúde, mas desenvolvem atividades adicionais, por vezes contrárias às normas federais.

Apesar das deficiências do SUS, as teses sobre a superioridade da assistência privada em relação à pública foram superadas pela realidade. A ideia de que o atendimento dependa exclusivamente da capacidade de pagamento dos pacientes serviria, quando muito, como roteiro de filme de terror. Sistemas universais de saúde mostraram-se poderosos aliados para o controle da pandemia. O SUS será estratégico para a redução das mortes por coronavírus se mais e novos recursos forem direcionados para atenuar a precariedade da capacidade instalada pública, distribuição espacial heterogênea de recursos humanos e equipamentos e padrões diferenciados de acesso e qualidade. O SUS realmente universal assegura a todos, assintomáticos e doentes, as mesmas chances de prevenção e cura. Pacientes graves sentem falta de ar e podem necessitar de ventilação mecânica, oxigênio em volume máximo, em hospitais e centros de terapia intensiva. Para os demais, recomenda-se ar puro, permanecer em casa, trabalhar e estudar em ambientes não poluídos e mobilizar apoio para fortalecer o SUS. Três palavras, saúde para todos, ajudam a renovaro ar e as esperanças.

Suicídio político em cadeia nacional de rádio e televisão

Mau militar como o definiu no passado Ernesto Geisel, o terceiro general-presidente da ditadura de 64. Mau esposo como ex-mulheres dele admitiram. Mau chefe de família, a julgar pelas relações conflituosas com os filhos e dos filhos entre si. Mau deputado, como registram os anais da Câmara.

Como Jair Messias Bolsonaro, chamado por seus devotos irascíveis de Mito, poderia vir a ser um bom presidente da República? Sua fala à Nação, ontem à noite, confirmou mais uma vez a antiga lição que de onde menos se espera daí é justamente que não sai nada capaz de produzir algum alento ou de reverter expectativas.

Bolsonaro é o que é e ponto. Na véspera, ao reunir-se com governadores do Norte e Nordeste, anunciara uma ajuda de quase 90 bilhões de reais para que os Estados enfrentem a pandemia do coronavírus. Defendeu a salvação de vidas, embora tivesse suspendido o pagamento de salários a trabalhadores carentes.



Só recuou da medida quando começou a apanhar nas redes sociais. Ordenou ao ministro Paulo Guedes, da Economia, que tirasse seu nome daquela enrascada. Mais tarde, Guedes diria que tudo não passou de um “erro digital”. Quando alguns dos seus assessores pensaram que ele poderia enveredar por um bom caminho...

Foram surpreendidos outra vez. Aconselhado por seus três belicosos filhos e outros garotos expoentes do “gabinete do ódio”, quase às escondidas dos seus ministros, Bolsonaro gravou um pronunciamento que, de tão desastroso, foi recepcionado por mais um panelaço de norte ao sul do país, o oitavo.

Os antigos samurais cometiam haraquiri para demonstrar sua coragem. Pilotos japoneses da 2ª Guerra Mundial se lançavam com seus aviões carregados de explosivos sobre alvos inimigos para provar sua fidelidade ao imperador. Para nada, Bolsonaro cometeu suicídio político em cadeia nacional de rádio e televisão.

Propôs a reabertura do comércio, em parte fechado para impedir a circulação de pessoas. Criticou o fechamento das escolas e outras providências restritivas tomadas por prefeitos e governadores para esvaziar as ruas. Atacou a imprensa, culpando-a por alimentar a “histeria”. E de novo referiu-se ao vírus como uma “gripezinha”.

E tudo isso por quê? O “gabinete do ódio” conferiu que a defesa do presidente e do governo está em baixa nas redes sociais e fora delas. É o que atestam as pesquisas conhecidas até aqui. Então Bolsonaro decidiu municiar seus seguidores com argumentos que estanquem a sangria na sua base de apoio que se esfarela.

O cordato ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reagiu mandando que ele se calasse se não quiser apressar sua saída do cargo. O fiel aliado de Bolsonaro, Davi Alcolumbre, presidente do Senado, em quarentena desde que testou positivo para o vírus, afirmou que o país “precisa de uma liderança responsável”.

Dito de outra maneira: segundo Alcolumbre, Bolsonaro comporta-se como um irresponsável. Bravata do senador que deve a Bolsonaro a função que ocupa? Pode ser. Mas não esqueça que um eventual impeachment presidencial dependerá em grande parte de Alcolumbre e de Rodrigo Maia, presidente da Câmara.

O ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética ainda teve o dissabor de ver suas palavras comparadas com as do Comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, em mensagem à tropa. Pujol pregou a união e elogiou os integrantes do sistema de saúde por seu exemplo de coragem.

A retaguarda militar que Bolsonaro imagina dispor está cada vez mais desencantada com ele. E a linha de frente das Forças Armadas, blindada contra a tentação de uma aventura que possa destruir o Estado de Direito. A galope, Bolsonaro torna-se irrelevante e perfeitamente dispensável. Que assuma Mourão.Ricardo Noblat

O antídoto para a epidemia não é a segregação, mas a cooperação

Muitos culpam a globalização pela pandemia de coronavírus, e dizem que a única maneira de evitar novos surtos é des-globalizar o mundo. Construir muros, restringir viagens, reduzir o comércio. No entanto, enquanto a quarentena a curto prazo seja fundamental para frear epidemias, o isolacionismo de longo prazo levará ao colapso econômico sem oferecer proteção real contra doenças infecciosas. Exatamente o oposto. O verdadeiro antídoto para a epidemia não é a segregação, mas a cooperação.

Epidemias mataram milhões de pessoas muito antes da atual era da globalização. No século XIV, não existiam aviões nem cruzeiros, e ainda assim a Peste Negra espalhou do Leste da Ásia para a Europa Ocidental em pouco mais de uma década. Ela matou entre 75 e 200 milhões de pessoas. Na Inglaterra, quatro a cada dez pessoas morreram. A cidade de Florença perdeu 50 mil de seus 100 mil habitantes.

Em março de 1520, um único portador de varíola, Francisco de Eguía, chegou ao México. À época, a América Central não tinha trens, ônibus, nem sequer burros. Isso não impediu que, em dezembro, a doença tivesse devastado toda a América Central, tendo matado, segundo estimativas, até um terço de sua população.



Em 1918, uma cepa de gripe particularmente virulenta conseguiu se espalhar em poucos meses para os cantos mais remotos do mundo. Ela infectou meio bilhão de pessoas — mais de um quarto da espécie humana. Estima-se que a gripe tenha matado 5% da população da Índia. Na ilha do Taiti, 14% morreram. Em Samoa, 20%. No total, a pandemia matou dezenas de milhões de pessoas - talvez até 100 milhões — em menos de um ano. Mais do que a Primeira Guerra Mundial matou em quatro anos de batalhas brutais.

No século que passou desde 1918, a humanidade se tornou cada vez mais vulnerável a epidemias, por uma combinação de crescimento populacional e melhorias nos serviços de transporte. Um vírus pode sair de Paris e chegar a Tóquio e à Cidade do México em menos de 24 horas. Deveríamos, portanto, ter esperado viver em um inferno infeccioso, com uma praga mortal após outra.

No entanto, a incidência e o impacto das epidemias diminuíram drasticamente. Apesar de surtos horrendos, como AIDS e Ebola, no século XXI as epidemias matam uma proporção muito menor de humanos do que em qualquer outro período desde a Idade da Pedra. Isso ocorre porque a melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento, é a informação. A humanidade tem vencido a guerra contra epidemias porque, na corrida armamentista entre doenças e médicos, os patógenos dependem de mutações cegas, enquanto os médicos dependem da análise científica da informação.

Uma vez que os cientistas entenderam o que causa as epidemias, ficou muito mais fácil lutar contra elas. Vacinas, antibióticos, higiene aprimorada e uma infra-estrutura médica muito melhor permitiram que a humanidade ganhasse vantagem sobre seus predadores invisíveis. Em 1967, a varíola ainda infectou 15 milhões de pessoas e matou 2 milhões delas. Mas, na década seguinte, uma campanha global de vacinação contra a varíola foi tão bem-sucedida que, em 1979, a Organização Mundial da Saúde declarou que a humanidade havia vencido e que a doença havia sido completamente erradicada. Em 2019, nenhuma pessoa foi infectada ou morta por varíola.

Defenda sua fronteira

O que essa história nos ensina para a atual epidemia de coronavírus?

Primeiro, que você não pode se proteger fechando permanentemente suas fronteiras. Mesmo se você reduzir suas conexões globais ao nível da Inglaterra em 1348, isso ainda não seria suficiente. Para realmente se proteger através do isolamento, virar medieval não serve. O mundo teria que voltar à Idade da Pedra. Estaríamos dispostos?

Em segundo lugar, a História indica que a proteção real vem do compartilhamento de informações científicas confiáveis e da solidariedade global. Quando um país é atingido por uma epidemia, deve estar disposto a compartilhar honestamente informações sobre o surto, sem medo de uma catástrofe econômica — enquanto outros países devem poder confiar nessas informações e estender a mão amiga, em vez de ostracizar a vítima. Hoje, a China pode ensinar aos países de todo o mundo muitas lições importantes sobre o coronavírus, mas isso exige um alto nível de confiança e cooperação internacional.

A cooperação internacional é necessária também para medidas efetivas de quarentena. Quarentena e bloqueio são essenciais para impedir a propagação de epidemias. Mas quando os países desconfiam um do outro, os governos hesitam em tomar medidas tão drásticas. Se você descobrisse 100 casos de coronavírus no seu país, iria bloquear imediatamente cidades e regiões inteiras? Isso depende do que você espera de outros países. Bloquear suas próprias cidades pode levar ao colapso econômico. Se você acha que outros países irão ajudá-lo, será mais provável que você adote essa medida drástica. Mas se você pensa que outros países o abandonarão, provavelmente hesitaria até que fosse tarde demais.

Talvez a coisa mais importante que as pessoas devam perceber sobre essas epidemias seja que a disseminação delas em qualquer país põe em perigo toda a espécie humana. Isso ocorre porque os vírus evoluem. Vírus como o corona se originam em animais, como os morcegos. Quando eles passam para os seres humanos, inicialmente os vírus estão mal adaptados aos novos hospedeiros. Enquanto se replicam em humanos, eles ocasionalmente sofrem mutações. A maioria das mutações é inofensiva. Mas, de vez em quando, uma mutação torna o vírus mais infeccioso ou mais resistente ao sistema imunológico humano — e essa cepa mutante do vírus se espalha rapidamente na população humana. 

Como uma única pessoa pode hospedar trilhões de partículas de vírus que sofrem replicação constante, toda pessoa infectada oferece ao vírus trilhões de novas oportunidades para se tornar mais adaptado aos seres humanos. Cada hospedeiro humano é como uma máquina de jogo que fornece ao vírus trilhões de bilhetes de loteria — e o vírus precisa comprar apenas um bilhete vencedor para prosperar.

Isso não é mera especulação. O livro “Zona crítica”, de Richard Preston, descreve exatamente essa cadeia de eventos no surto de ebola em 2014. O surto começou quando alguns vírus do ebola passaram de um morcego para um humano. Esse vírus deixou as pessoas muito doentes, mas ainda estavam mais adaptados a morar dentro de morcegos mais do que no corpo humano. O que transformou o ebola de uma doença relativamente rara em uma epidemia violenta foi uma única mutação em um único gene em um vírus do que infectou um único humano, em algum lugar na área de Makona, na África Ocidental. A mutação permitiu que a cepa mutante do ebola — chamada cepa Makona — se ligasse aos transportadores de colesterol das células humanas. Agora, em vez de colesterol, os transportadores estavam puxando o ebola para dentro das células. Essa nova cepa Makona era quatro vezes mais infecciosa para os seres humanos.

Enquanto você lê essas linhas, talvez uma mutação semelhante esteja ocorrendo em um único gene no coronavírus que infectou uma pessoa em Teerã, Milão ou Wuhan. Se isso de fato está acontecendo, é uma ameaça direta não apenas aos iranianos, italianos ou chineses, mas também à sua vida. Pessoas de todo o mundo compartilham um interesse de vida ou morte em não dar ao coronavírus essa oportunidade. E isso significa que precisamos proteger todas as pessoas em todos os países.

Na década de 1970, a humanidade conseguiu derrotar a varíola porque todas as pessoas em todos os países foram vacinadas contra a doença. Se mesmo um país não vacinasse sua população, poderia ter colocado em perigo toda a humanidade, porque enquanto o vírus existisse e evoluísse para algum lugar, ele sempre poderia se espalhar novamente por toda parte.

Na luta contra os vírus, a humanidade precisa proteger estritamente as fronteiras. Mas não as fronteiras entre os países. Pelo contrário, precisa proteger a fronteira entre o mundo humano e a esfera do vírus. O planeta Terra está se unindo a inúmeros vírus, e novos vírus estão em constante evolução devido a mutações genéticas. A fronteira que separa essa esfera de vírus do mundo humano passa dentro do corpo de todo e qualquer ser humano. Se um vírus perigoso consegue penetrar nesta fronteira em qualquer lugar do mundo, coloca toda a espécie humana em perigo.

Ao longo do século passado, a humanidade fortaleceu essa fronteira como nunca antes. Modernos sistemas de saúde foram construídos para servir de barreira nessa fronteira, e enfermeiros, médicos e cientistas são os guardas que a patrulham e repelem os invasores. No entanto, longas seções dessa fronteira foram deixadas lamentavelmente expostas. Existem centenas de milhões de pessoas em todo o mundo que carecem de serviços de saúde básicos. Isso coloca todos nós em perigo. Estamos acostumados a pensar em saúde em termos nacionais, mas fornecer melhores cuidados para iranianos e chineses ajuda a proteger também israelenses e brasileiros de epidemias. Essa verdade simples deveria ser óbvia para todos, mas infelizmente ela escapa até mesmo às pessoas mais importantes do mundo.

Um mundo sem liderança

Hoje a humanidade enfrenta uma crise aguda, não apenas devido ao coronavírus, mas também devido à falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam confiar em especialistas científicos, os cidadãos precisam confiar nas autoridades públicas e os países precisam confiar uns nos outros. Nos últimos anos, políticos irresponsáveis minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Como resultado, agora estamos enfrentando esta crise desprovida de líderes globais que podem inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada.

Durante a epidemia de ebola de 2014, os Estados Unidos serviram como esse tipo de líder. O país cumpriu um papel semelhante também durante a crise financeira de 2008, quando reuniu países suficientes para impedir o colapso econômico global. Mas, nos últimos anos, os EUA renunciaram ao seu papel de líder global. O atual governo americano cortou o apoio a organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde e deixou bem claro ao mundo que os EUA não têm mais amigos de verdade - eles têm apenas interesses. Quando a crise do coronavírus eclodiu, os EUA ficaram à margem e até agora se abstiveram de assumir um papel de liderança. Mesmo que eventualmente tente assumir a liderança, a confiança no atual governo dos EUA foi corroída a tal ponto que poucos países estariam dispostos a segui-lo. Você seguiria um líder cujo lema é "Eu primeiro"?

O vazio deixado pelos EUA não foi preenchido por mais ninguém. Muito pelo contrário. Xenofobia, isolacionismo e desconfiança agora caracterizam a maior parte do sistema internacional. Sem confiança e solidariedade global, não seremos capazes de parar a epidemia de coronavírus, e provavelmente veremos mais dessas epidemias no futuro. Mas toda crise também é uma oportunidade. Esperamos que a epidemia atual ajude a humanidade a perceber o grave perigo que representa a desunião global.

Para dar um exemplo proeminente, a epidemia pode ser uma oportunidade de ouro para a União Europeia recuperar o apoio popular que perdeu nos últimos anos. Se os membros mais afortunados da UE, com rapidez e generosidade, enviarem dinheiro, equipamentos e médicos para ajudar seus colegas mais atingidos, isso provaria o valor do ideal europeu melhor do que qualquer discurso. Se, por outro lado, cada país tiver que se defender sozinho, a epidemia pode soar como a morte do bloco político.

Neste momento de crise, a luta crucial ocorre dentro da própria humanidade. Se essa epidemia resultar em maior desunião e desconfiança entre os seres humanos, será a maior vitória do vírus. Quando os humanos brigam, os vírus se fortalecem. Por outro lado, se a epidemia resultar em uma cooperação global mais estreita, será uma vitória não apenas contra o coronavírus, mas contra todos as doenças futuras.
Yuval Noah Harariautor dos best-sellers “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 lições para o século XXI”. Este artigo foi publicado originalmente na revista “Time” e fará parte de um e-book do autor a ser lançado pela Companhia das Letras

Até paredes indicam cuidados

Grafite em Roma

Há uma década, políticos resgataram bancos. Agora, terão de socorrer gente

Quando o Lehman Brothers quebrou em setembro de 2008, o que se viu nos dias seguintes foi um esforço inédito para colocar em volta de uma mesa os maiores banqueiros do mundo e autoridades monetárias para socorrer a economia internacional.

Aquela instituição supostamente sólida era a ponta de um iceberg de um sistema corroído. Meses depois, governos de todo o mundo tinham destinado 9 trilhões de dólares para salvar seus bancos e casinos, diante da maior crise do capitalismo em 70 anos.

Contas públicas quebraram, governos mentiram e políticos caíram, mas o sistema foi preservado.

Uma década depois, é o estado uma vez mais que volta a ser convocado para assumir o papel central de salvador. Mas, agora, não bastará reuniões com bancos e salvar o mercado financeiro. Não falta liquidez nos bancos.


O resgate terá de ser ao povo, o que exige uma transformação importante na lógica de governos que, nos últimos anos, desmontaram modelos de proteção social, reduziram benefícios e acusaram milhões de “vagabundagem” por se apoiar no estado.

No Reino Unido, a crise chega em um momento complicado para o setor de saúde, alvo de sucessivos cortes nos últimos anos. Resultado: o país tem hoje uma das menores taxas de leitos por habitantes entre os países ricos e inferior mesmo à China.

Em tantos outros lugares, os efeitos do resgate de 2008 e 2009 ainda eram sentidos e traduzidos em cortes de seguro-desemprego e aumento da idade mínima de aposentadoria.

Agora, justamente quanto o sistema foi desmontado em grande parte, uma pandemia de coronavírus desembarca em um mundo que optou por estar despreparado.

Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que 25 milhões de pessoas podem perder seus empregos por conta da atual crise. E fica a pergunta: qual rede social vai preservar a dignidade dessas pessoas?

Alguns governos já se deram conta que o apoio terá de ir diretamente à população. Na Austrália, o plano anunciado pelo primeiro-ministro Scott Morrison previa um cheque de 750 dólares australianos para os mais vulneráveis. Bancos foram instruídos a ampliar os prazos de pagamentos de dívidas de pequenas e médias empresas, enquanto isenções fiscais entrarão em vigor.

Pequenas empresas também poderão pegar emprestado recursos, colocando o governo como fiador. Seguro-desemprego foi dobrado, enquanto outras medidas continuam a ser avaliadas.

Pela Europa, o caminho é semelhante. Na Alemanha, o governo passou a dividir com empresas os gastos por manter milhões de pessoas empregadas. Na Irlanda, empresas poderão pagar seus empregados e receber uma compensação de até 203 euros por semana por parte do governo. Para aqueles contaminados por coronavírus, o estado reembolsará as empresas em 305 euros.

Mas isso não vai ser suficiente e a crise exigirá de governos uma ação de uma escala ainda maior para resgatar seus cidadãos. No total, os trabalhadores podem perder uma renda de 3,4 trilhões de dólares, afirma a OIT. O risco é de que a pandemia crie uma legião de novos pobres.

Para os próximos dias, a ONU e entidades internacionais vão se unir para lançar uma operação humanitária global, na esperança de sair ao resgate de milhões de pessoas que, ainda que sanas, passarão a ser ameaçadas de desnutrição ou outras doenças diante da falta de recursos.

Especialmente preocupante é a situação de milhões de pessoas que, apesar de trabalhar, já vivem à beira da miséria.

“Ao contrário da crise financeira de 2008, injetar capital apenas no setor financeiro não é a resposta. Esta não é uma crise bancária ―e, na verdade, os bancos devem ser parte da solução”, disse o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.

“E não é um choque comum na oferta e na procura; é um choque para a sociedade como um todo. A liquidez do sistema financeiro deve ser garantida, e os bancos devem usar sua resiliência para apoiar seus clientes”, afirmou. “Mas não esqueçamos que isto é essencialmente uma crise humana”, alertou.

“Acima de tudo, precisamos nos concentrar nas pessoas ―trabalhadores com salários baixos, pequenas e médias empresas e os mais vulneráveis. E isso significa apoio salarial, seguros, proteção social, prevenção de falências e perda de empregos”, defendeu.

“A recuperação não deve vir nas costas dos mais pobres —e nós não podemos criar uma legião de novos pobres”, alertou. “Precisamos colocar os recursos diretamente nas mãos das pessoas”, completou.

Desta vez, o que está em jogo não é o sistema capitalista. Mas a vida de milhares de pessoas. De uma forma irônica, a pandemia volta a dar cara ao estado. Ela testa a relação de confiança entre autoridades e cidadãos, justamente num momento de uma fratura profunda nesse pacto social.

Não serão banqueiros ou mega-empresários que salvarão as comunidades com sua filantropia. Nem muito menos um patriotismo oco de redes sociais com a repetição de palavras como “mito”.

Não serão caças ou submarinos, nem o porte de armas, que trarão um sentimento de segurança. Mas um sistema de saúde robusto. Um estado resiliente e que tenha o cidadão como prioridade.

Nos últimos dias, diante da certeza de uma recessão no mundo, a OCDE fala na necessidade de se criar um novo Plano Marshall. Mas, desta vez, o que está em jogo não é a sobrevivência de uma elite no poder financeiro-político. Mas um resgate que impeça que a pandemia se transforme em miséria para aqueles que consigam sobreviver.
Jamil Chade

Insanidade presidencial

Foram cinco minutos de delírio, insensatez, irresponsabilidade e desinformação. O presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento ontem cuja única avaliação possível é de que o país é governado por uma pessoa insana. Bolsonaro defendeu a ideia de que como o grupo de 60 anos é de risco as escolas não devem ser fechadas. Ele não acredita, pelo visto, em contágio. Ontem, o Ministério da Saúde repetiu que é a maior pandemia do século, e o presidente vangloriou-se: disse que por ser um “atleta” só pegaria um “resfriadinho”. O Brasil corre riscos sérios com um presidente assim.

Sua insanidade tem ameaçado o país e atrapalhado a ação do governo. Seus interlocutores dizem que ele repete em privado o que disse ontem em público. Ele de fato não acredita na ciência. As poucas vezes em que disse algo razoável foi por cálculo político. Ficou com medo da perda de popularidade. Ele faz um jogo. Imagina que se continuar falando que os governadores é que criam a crise econômica e exterminam emprego salvará seu governo. Inepto e leviano, ele se preocupa apenas com a própria popularidade, bloqueia boas iniciativas e dedica-se à sua guerra pessoal contra supostos inimigos.


Como ele não pode ser isolado, Bolsonaro contamina a ação governamental, atrasa as medidas necessárias, torna penoso o dia a dia de quem no governo pensa diferente e quer que as medidas sejam tomadas. A parte da máquina que funciona tem tentado. As medidas de socorro aos estados, por exemplo, foram um movimento importante, sólido, mas há muito a fazer em todas as áreas. Do que tem sido anunciado, pouca coisa se materializou. A distribuição de R$ 200 de complemento de renda para quem está em situação de vulnerabilidade não se sabe quando virará realidade. Já faz uma semana que o governo anunciou, e ontem governadores procuravam saber como isso tinha andado e nada recebiam de resposta.

Há milhões de brasileiros que não têm dinheiro poupado, porque nunca tiveram sobras em seu orçamento, e enfrentam neste momento um abrupto colapso da capacidade de geração de renda. A questão social é urgente. Os trabalhadores por conta própria no país são 24 milhões pessoas, 19 milhões deles na informalidade, porque não têm CNPJ. Dos 6,3 milhões de trabalhadores domésticos, 4,5 milhões não têm qualquer vínculo empregatício. No setor privado, 11 milhões trabalham sem carteira assinada.

A solução não é voltar tudo à “normalidade” a qualquer custo, como propôs Bolsonaro. É ampliar de maneira forte a rede de proteção social e tornar mais eficiente a ação governamental. Isso é urgente num país com tantas desigualdades como sempre foi o Brasil. Todas as nossas distorções se agravaram na recessão e na estagnação recentes. Estávamos frágeis quando desabou sobre nós a pior crise em décadas.

Ontem, a bolsa subiu, o dólar caiu, os mercados comemoraram. Nada disso é tendência, nada disso tem a ver com a vida das pessoas vulneráveis no Brasil. Os ativos estão na lógica da volatilidade e comemoraram o acordo para aprovação do pacote de estímulo americano. O presidente americano Donald Trump já marcou a data para o fim da crise, como se mandasse em curvas epidemiológicas. Bastava olhar para os dados de Nova York para saber que o fim ainda demora.

No delírio em que vive o alienista que nos governa, os governadores e os prefeitos que anunciaram restrições de circulação estão exagerando porque querem derrubar a economia numa conspiração contra seu governo. Eles estão, na verdade, salvando vidas.

A questão é complexa e delicada. É preciso parar a economia para tentar salvar vidas e ampliar a rede de proteção social para também salvar vidas. Bolsonaro acha que é preciso manter a economia funcionando e tem pressionado, ou agredido, as autoridades dos estados e municípios. O critério que o mundo está adotando é fazer os bloqueios e estudar os casos que, logicamente, são essenciais, mas o país deve reduzir a atividade por razões de prudência sanitária.

Diante das dores econômicas existem remédios, mas não serve a anestesia que vem da negação da gravidade e extensão da crise sanitária. O governo tem muito a fazer em todas as áreas: do resgate dos socialmente vulneráveis à proteção das empresas e principalmente na luta contra a epidemia. Mas Bolsonaro hoje é um obstáculo à ação do Estado brasileiro.

Presidente ou coveiro?

O Pr repetiu opiniões desastradas sobre a pandemia. O momento é grave, não cabe politizar, mas opor-se aos infectologistas, passa dos limites. Se não calar estará preparando o fim. E é melhor o dele que de todo o povo. Melhor é que se emende e cale
Fernando Henrique Cardoso

Inimaginável

Um dia de cada vez. Assim vamos vivendo o inimaginável – palavra mais precisa para os dias de hoje, quando o amanhã nunca foi tão incerto. Para todos. Concreto para nós brasileiros é o presidente inepto, cada dia mais perdido em si mesmo – o que deve ser um emaranhado de taokei com coisa nenhuma.

Incapaz. Por isso mesmo capaz de tudo. Inimaginável.

No isolamento das nossas quarentenas, pensamos na vida - a de antes e a de agora. A do futuro, por enquanto, é indizível, insonhável. Sobrevivendo ao corona, em que caixinha vamos nos acomodar?

A dos farinha pouca, meu pirão primeiro, que é a dos estocadores de papel higiênico, álcool em gel e tudo o mais que couber em vários carrinhos de supermercados? Esse mesmo box ainda abriga buscadores de tirar alguma boa vantagem da desgraceira – durante e depois. Esses não mudam nunca. Sobrevivendo, serão os mesmos.

A dos corajosos, responsáveis, profissionais (da Saúde, particularmente) que arranjam força sobre-humana para atuar ajudando quem precisa, onde cabem ainda os que, em qualquer circunstância, encontram meios de repartir o que têm – pouco ou muito – com quem precisa e não tem?

A dos que tiram lição da fragilidade humana, agora exposta, para repensar seu modo de ser e estar no mundo?

Onde estaremos amanhã?

Resposta difícil.

Hoje, o possível é cultivar paciência, calma e alguma fé. Para os que são de rezar, talvez seja hora de buscar santos das causas difíceis, tidas como impossíveis. São Expedito, por exemplo, que pode atender a muitos porque no nosso sincretismo religioso é o Orixá Lagunedé.

Vale também invocar São Judas Tadeu, Santa Rita de Cássia ou Santa Filomena. Ou todos juntos. E mais outros. Não custa nada.

São Judas Tadeu, evangelista, em vida, tinha como lema “resistir sempre”. (Apropriado, não?) É outro dos santos das causas difíceis, com fama de infalível. Santa Rita de Cássia, protetora dos doentes, é celebrada como a milagrosa das curas. Santa Filomena é a protetora dos aflitos, onde cabe hoje a humanidade inteira.

Santo Expedito/Logunedé, São Judas Tadeu, Santa Rita de Cássia, Santa Filomena, rogai por nós. Please.

Vale a Oração de Santo Expedito. (Só mais uma das muitas que temos recebido nesses dias sem adjetivos para definir). 

Santo Expedito das causas justas e urgentes, socorrei-nos nesta hora de aflição e desespero, interceda por nos junto ao divino. Vós que sois um santo guerreiro, santo dos aflitos, dos desesperados, das causas urgentes, protegei-nos, ajudai-nos, dai-nos força, coragem e serenidade. Ajudai-nos a superar estas horas difíceis, protegei-nos de todos e de tudo que possa nos prejudicar. Protegei nossas famílias, atendei, com urgência, nossos pedidos. Devolva-nos a paz e a tranquilidade. Amém.

É o que temos pra agora.
Tânia Fusco

Bolsonaro, o presidente mórbido que sabota o Brasil

Cada dia de verborragia do presidente Bolsonaro, como o que foi visto em rede nacional nesta noite de terça, é um dia a menos para ver a solução da crise em que o Brasil se vê inserido. Uma crise sem precedentes. Cada conflito autoinflingido e de emulação da tática do presidente Donald Trump é mais um dia de sabotagem para o Brasil. E de autossabotagem do presidente que poderia estar unindo as pessoas na dor das mortes que estão chegando pelo coronavirus, —e vão se multiplicar —, e em propostas para encontrar um ponto de intersecção entre a economia e esta tragédia anunciada.

Seus acertos evaporam diante da quantidade de fel que ele injeta em suas palavras que deveriam serenar uma nação assustada. Mas Bolsonaro não quer que o brasileiro perca o medo. É o método do choque para neutralizar quem ele julga adversários. Se acerta ao deixar o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e sua equipe, assumirem o protagonismo para orientar a população sobre o ritmo de expansão do vírus, faz questão de contrariar morbidamente as diretrizes que a Organização Mundial da Saúde (OMS). “O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas?”, questionou ele em vídeo.


Uma afirmação inacreditável, que nem mesmo as crianças confinadas hoje no Brasil poderiam repetir. A OMS já declarou que os pequenos são vetores de propagação do coronavírus, como mostrou a experiência chinesa. Se as crianças pegam, seus pais vão pegar, e quem estiver circulando e encontrar os pais, vai pegar. O motorista da van escolar, o vendedor da cantina. Podem-se isolar idosos, mas algum contato com o mundo externo eles terão. Seja na farmácia, no mercado, ou para receber um delivery. Bolsonaro sabe, ou deveria saber, o que Mandetta repete diariamente, sobre como funciona o vírus e seu contágio.

Mas o presidente tem maldade, enquanto a maioria dos brasileiros já se confinou sob a consciência admirável de entender que pode se contagiar, mas também ser fonte de contágio de alguém mais vulnerável que ele. Idoso ou alguém com menos recursos para se tratar em hospital. Ninguém quer essa responsabilidade para si, de ter contribuído para a morte de alguém. O presidente do Brasil, com seus 23 contagiados ao redor, nem consegue alcançar esse sentimento. “Esse cara é irresponsável, vai matar todo mundo, como quer abrir as escolas?”, gritava indignada uma mulher do balcão de uma janela em São Paulo.

Retórica para chocar. E não adianta se iludir. Bolsonaro vai seguir sendo isso. E o país precisa funcionar, apesar de Bolsonaro. Suas reações intempestivas, minuciosamente calculadas – quase sempre seguindo as de Trump —, já foram mapeadas e ele não vai sobreviver à crise do coronavírus. Não tem como. Deveria olhar também para seu ídolo e entender o que vem por aí. O presidente norte-americano lida hoje com mais de 52.000 infectados e 675 mortes. Nova York, com quase 26.000 infectados, virou o atual epicentro do coronavírus no mundo. No dia 13 de março, os EUA tinham 2.179 infectados e 47 mortos, quase o mesmo número que o Brasil nesta terça: 2.201 brasileiros infectados e 46 mortes.

Nesta terça, Trump também chocou o país ao sugerir que poderia abrir o confinamento a que o país se submeteu em duas semanas. Horas depois, moderou o tom, ao dizer que o mais importante “é a saúde dos norte-americanos”. Trump é Trump, e já anunciou pacotes trilionários para segurar seu prestígio junto à sociedade. Bolsonaro não tem esse dinheiro. E virão mais vítimas do coronavírus, e um luto profundo, que o presidente brasileiro prefere ignorar. Como ignora o capital criativo que poderia dispor para colocar o país com foco apenas na saúde. A indústria voltada a isso, puxada pela necessidade de investir na no fim da crise do coronavírus. Uma população consciente, disposta a se sacrificar por um bem maior. Mas Bolsonaro só enxerga 30%.

Perde a chance de relembrar que o Brasil já mostrou resiliência para outros desafios, como a própria propagação da Aids, nos anos 90. Também já trabalhou em conjunto com diversos setores da sociedade para vencer a recessão e a inflação quando o ex-presidente Itamar Franco pegou o país em frangalhos depois do impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992. Um ano depois, indústria, sindicatos, varejo e Governo sentavam à mesa para eleger um motor que colocasse a economia em pé. O símbolo daquele momento foi o fusca, e os carros populares, em que todos cediam um pouco, para garantir que a economia reagisse.

Imagina se Bolsonaro fosse o estadista que gostaria e se inspirasse em exemplos assim... Ele já não sabe fazer outra coisa se não fomentar o caos. Só que, agora, ele é engolido pelo mesmo caos que inventa. Não haverá rede social, nem narrativa que o salve do seu próprio desastre como presidente, criando factoides quase diários, para ganhar palmas dos seus 30% de apoiadores. Eles ainda resistem, embora haja fissuras nesse grupo. Mas virão as mortes, e com elas, a percepção de que muitas poderiam ser evitadas. E não foram porque Bolsonaro é arrogante. Não há como sair ileso. Nesta crise, ele assinou a própria sentença de morte política.