terça-feira, 2 de julho de 2019

Banalização do protesto

Há o velho dito de que tudo o que é demais enjoa. Não que já se possa aplicá-lo às manifestações convocadas às ruas para protestar ou apoiar o que quer que seja, mas é inequívoca a redução do de impacto desses atos realizados à razão média de um por mês nos últimos tempos. O excesso de uso torna as coisas banais; que, deixando de ser novidade, perdem em eficácia.

Outro fator que enfraquece o potencial desse instrumento de pressão é a confusão da pauta. O ato de domingo 30 tinha como foco principal a defesa do ministro Sergio Moro. Até aí, tudo certo. Se os manifestantes enxergam a necessidade de reforçar a posição dele na condição de símbolo do combate à corrupção, ok.


Mas quando resvalam para outros temas como ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Congresso em geral e aos presidentes da Câmara e do Senado em particular, transitam no perigoso terreno da incoerência, caindo, assim, na inconsistência.

É ou não é uma contradição em termos se defender a reforma da Previdência e ao mesmo tempo lançar desaforos contra o Parlamento que está fazendo andar a proposta? Ora, foi o próprio presidente Jair Bolsonaro quem disse ao entregar a PEC ao Congresso que já tinha feito a sua parte e dali em diante a tarefa estava com deputados e senadores. O deputado Rodrigo Maia e o senador Davi Alcolumbre assumiram a missão e, por isso, deveriam ser celebrados e não criticados pelos defensores da reforma.

Outra contradição é o ataque ao STF que em diversas ocasiões tomou decisões que vão ao encontro das demandas dos manifestantes em prol do combate à corrupção, dando respaldo às ações da Lava Jato. Portanto, não basta protestar. Há que fazê-lo com harmonia entre pensamento e ação. Do contrário, a grita corre o risco de cair no vazio.

Bolsonaro nos passos do PT

Ao vetar a parte do novo marco jurídico das agências reguladoras (Lei 13.848/19) que estabelecia a indicação de diretores a partir de uma lista tríplice, o presidente Jair Bolsonaro mostrou sintonia com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em vez de proteger a autonomia das agências, a preocupação comum dos dois presidentes foi manter a ingerência política sobre elas.

Dias antes do veto, Bolsonaro afirmou que “as agências travam os Ministérios. Você fica sem ação. Você tem que negociar com agência, é um poder paralelo”. Foi precisamente essa a visão sobre as agências que imperou durante as administrações petistas e que tantos prejuízos gerou. Com a diminuição da relevância e da funcionalidade das agências reguladoras, importantes serviços públicos ficaram sem a devida regulamentação e sem o devido controle. O preço de tal descaso foi pago pela população.


Mas não é apenas com Lula da Silva que o presidente Jair Bolsonaro vem se identificando quando o tema são as agências reguladoras. Ele segue também os passos da presidente Dilma Rousseff, que ficou conhecida pelo atraso na indicação das diretorias das agências. Por falta de iniciativa da presidente, cargos ficaram vagos durante meses. Houve casos de vacância de mais de ano. Além disso, verbas cortadas prejudicaram o funcionamento das agências.

Segundo levantamento feito pelo Estado e pela União Nacional dos Servidores de Carreira das Agências Reguladoras Federais (UnaReg), até dezembro Bolsonaro terá de preencher 14 vagas. Até o momento, ele indicou apenas 3 nomes. A demora poderá levar à mesma situação ocorrida na gestão de Dilma, com diretorias vagas inviabilizando o trabalho das agências, sem quórum mínimo para as votações. Para que um cargo não fique vago, é preciso indicar os nomes antes do término do mandato dos diretores.

Das 14 vagas, 4 já estão abertas e apenas 2 nomes de substitutos foram enviados pelo Executivo ao Senado. Outros cinco postos ficarão vagos até o início de agosto, quando vencem os mandatos dos atuais dirigentes. Apenas para um deles já há um indicado.

Foi tão grave o problema da vacância nas diretorias das agências durante o governo de Dilma Rousseff que o Congresso estabeleceu uma medida corretiva para a inércia presidencial. A Lei 13.848/19 previu que, “ocorrendo vacância no cargo de Presidente, Diretor-Presidente, Diretor-Geral, Diretor ou Conselheiro no curso do mandato, este será completado por sucessor investido na forma prevista no caput e exercido pelo prazo remanescente, admitida a recondução se tal prazo for igual ou inferior a dois anos” (art. 5.º, § 7.º).

O atraso de Bolsonaro na indicação de nomes para as agências reguladoras é contraditório com o veto aplicado à Lei 13.848/19. O presidente se insurgiu contra a lista tríplice, querendo liberdade total para indicar candidato, mas ao mesmo tempo não fez as indicações que deveria fazer. A contradição, no entanto, é apenas aparente. As duas atitudes manifestam profunda incompreensão a respeito do papel das agências, a mesma incompreensão vista durante os 13 anos de PT na administração federal.

A confirmar seu desapreço pelas agências, o presidente também vetou uma importante garantia contra a “captura regulatória”, que é a utilização das agências por parte de agentes políticos ou empresariais para fazer valer seus próprios interesses. O Congresso proibiu a indicação de quem tivesse, nos últimos 12 meses, algum vínculo, como sócio, diretor ou empregado, com empresa que explora atividade regulada pela agência. O presidente vetou essa restrição, alegando que era exagerada. Ora, para realizar sua missão de promover a qualidade e a continuidade da prestação dos serviços públicos, a agência precisa ter independência tanto da esfera política como do setor privado.

O Congresso tentou corrigir um problema, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou a solução. Como se vê, a origem dos problemas nem sempre está no Legislativo. Provém muitas vezes do inquilino do Palácio do Planalto.

Novo Brasil encolhe


O senso dos exaltados

Muitos cartazes e faixas nas manifestações de domingo passado em apoio ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, tinham um significado muito claro: defendiam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Legítimas palavras de ordem em favor da reforma da Previdência, da Operação Lava-Jato e da legislação anticrime, fatores de mobilização da opinião pública, foram desvirtuadas por algumas lideranças que defendem a substituição de nossa democracia representativa por um regime autoritário.

Militantes do Vem Pra Rua e do MBL, que convocaram os protestos, foram agredidos por integrantes de grupos de extrema direita que defendem a transformação do governo num regime militar. O MBL e o Vem Pra Rua surgiram durante o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas não participaram das manifestações pró-Bolsonaro de maio passado por terem sido convocadas para pressionar o Congresso e o Supremo. Entretanto, apoiam a Lava-Jato e Sérgio Moro. Por isso, convocaram a manifestação de domingo, que foi engrossada pelos militantes que defendem uma intervenção militar. Os dois grupos se estranharam. Na Avenida Paulista, somente não houve um conflito generalizado por intervenção da Polícia Militar, que conteve os mais exaltados.

Tais fatos merecem uma reflexão sobre o nível de exacerbação criado pela radicalização política. Alguém já disse que o senso comum em relação a certos temas nem sempre coincide com o bom senso. Os protestos foram convocados depois que o site The Intercept Brasil passou a divulgar supostas trocas de mensagens entre Moro e procuradores da Lava-Jato em Curitiba, que sugerem a intervenção do então juiz federal na condução da operação, inclusive com a indicação de possíveis testemunhas. Há duas discussões cruzadas na questão: uma trata da objetividade dos crimes cometidos pelos réus da Lava-Jato e as penas em relação aos seus atos; a outra, da necessária separação de papéis entre quem investiga, quem acusa e quem julga, pressupostos da ordem democrática. A esfera de decisão sobre esses assuntos é o Poder Judiciário.


É óbvio que, na democracia, o povo tem direito de se manifestar como quiser. Tanto o Congresso como o Supremo têm que saber suportar a crítica das ruas. Mas não é uma boa política o Executivo estimular esse tipo de mobilização, muito menos um ministro de Estado como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, subir no palanque como se fosse mais um militante de direita radical.

Por uma série de razões, entre as quais a situação da economia, o presidente Jair Bolsonaro vive um momento delicado de seu governo, que ainda não deslanchou e perde popularidade. Em circunstâncias normais, diante da agenda do governo no Congresso e dos problemas da economia, o movimento natural seria a busca de negociação política. Mas não é isso que acontece. Essa mudança na chamada “correlação de forças” anima a oposição a retomar a iniciativa política e, em contrapartida, estimula o presidente da República a buscar apoio nas ruas, mobilizando sua base eleitoral mais ideológica.

Tanto os setores governistas mais moderados quanto os da oposição estão sendo frustrados nas tentativas de negociação política por causa dos mais exaltados. De um lado, o PT mantém uma ofensiva contra a Lava-Jato e Sérgio Moro, na expectativa de que o Supremo anulará o processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por causa do suposto relacionamento indevido do ex-juiz com os procuradores da força-tarefa de Curitiba. De outro, o presidente Jair Bolsonaro agarra a bandeira da luta contra corrupção e manipula a opinião pública contra os demais poderes, para deslocar a linha de apoio do seu governo para a fronteira majoritária que respalda a Lava-Jato.

Esse ambiente de radicalização, porém, inibe os agentes econômicos e atrasa a aprovação das reformas que podem retirar a economia da estagnação, principalmente a da Previdência. Os lobbies contrariados pela reforma estão organizados e atuam intensamente no Congresso para manter seus privilégios. Como são setores incrustados no aparelho de Estado, em todos os níveis, têm mais poder de barganha do que os demais trabalhadores a serem atingidos pelas mudanças na Previdência, principalmente os do setor privado, cujos sindicatos estão muito enfraquecidos em razão do desemprego e do fim do imposto sindical.

A situação somente não é mais desfavorável à aprovação da reforma porque há um esforço para blindar a economia de parte das principais lideranças da Câmara, lideradas pelo seu presidente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que foi muito atacado nas manifestações. Na linha de frente das pressões corporativistas para manter os privilégios na reforma estão partidários do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula. É a chamada unidade dos contrários.

O balé eleitoral de Bolsonaro

Jair Bolsonaro é um político profissional. Já passou 47% da sua vida no Legislativo, o triplo do tempo em que esteve no Exército, que o prendeu, processou e afastou por indisciplina. Mesmo assim, continua no autoengano da negação da política e esgrimindo uma suposta ignorância sobre o que diz a Constituição.

Na noite de domingo, ele escreveu: “Respeito todas as Instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade.”

A essência dessa frase de 16 palavras é o exorcismo de outra, com 20 vocábulos: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está destacada em parágrafo único no primeiro artigo da Carta — à qual Bolsonaro jurou obediência oito vezes seguidas nos últimos 30 anos.

Não se pode exigir que presidentes sejam sábios, mas é razoável esperar que, ao menos, leiam compromissos que juram ou subscrevem.

Apenas 48 horas antes, Bolsonaro havia celebrado a adesão ao acordo Mercosul-União Europeia, cujo fundamento é a cooperação entre instituições, sob princípios da democracia liberal e do desenvolvimento sustentável. É, essencialmente, um grande acordo político, com efeitos práticos no comércio nas duas margens do Atlântico.

Como premissa, estabelece a impossibilidade de retrocessos em tratados em vigor. Obriga a “implementação efetiva” de políticas ambientais e antidesmatamento, como previsto no “Acordo de Paris”; contra a discriminação no trabalho, por gênero, identidade ou orientação sexual; impõe ações contra o trabalho escravo e infantil; garantias aos direitos dos índios, à liberdade sindical e ao direito de negociação coletiva, entre outros aspectos.

Bolsonaro vai precisar se aperfeiçoar no contorcionismo retórico para continuar no balé eleitoral da negação da política, evidência de um certo transtorno bipolar com a democracia. O acordo Mercosul-União Europeia deve aumentar sua taxa de confusão entre aquilo que aparentemente deseja e a vida real sob regras democráticas.

Um juiz para chamar de seu

Às vezes tenho dó dos juízes e juízas (para que não digam que não reconheço o sexo na magistratura). Logo terão de decidir se um casal em “conchinha na cama”, e ela se esfregando de costas no cara, se ela queria ou não transar. É evidente que logo surgirão centenas de casos envolvendo cães, gatos, passarinhos, larvas de estimação e afins. O mundo segue sua trajetória irrevogável em direção a infantilização.

Quem tem o direito de decidir o lugar da escova de dentes na pia do banheiro? Como decidir quem deve decidir a marca da pasta de dente? Com a emancipação masculina em curso, os homens portadores da nova masculinidade (ou deveria dizer novas masculinidades, já que existe uma masculinidade para cada homem?), seguramente exigirão o direito de decidir a marca da pasta de dente.

As mulheres, por sua vez, já há décadas nessa estrada da maioridade ou emancipação, se queixarão da suposição de que escolher a marca da pasta de dente seria “função do gênero feminino” —“@s juízes” decidirão?

Na verdade, marchamos para uma situação em que pessoas exigirão o direito, enquanto cidadãos, de ter um juiz para cada uma delas. Um juiz do trabalho, cível, criminal, e por aí vai.


Claro que deverá ser um algoritmo. No futuro próximo, terão acesso a um juiz app para baixar no celular e decidir quem tem o direito de escolher o vinho no restaurante e se você tem ou não direito de comer carne numa mesa ao lado de um vegano. Cometer esse ato poderá ser considerado irresponsabilidade afetiva para com as emoções do cidadão da mesa ao lado, que se sentirá ofendido com a indiferença alimentícia praticada pelo carnívoro boçal.

Há pouco dias me contaram que numa muito importante universidade dos Estados Unidos, mandar um email num grupo de pesquisa virou um inferno. A questão é: como usar a gramática diante do fato de que você poderá ofender a um transgênero caso haja um (ou uma?) na equipe que recebe o email?

Quem ainda acha que o politicamente correto é “necessário” é porque ganha dinheiro com ele ou porque não percebeu ainda que essa prática é uma forma de censura destruidora da capacidade de pensar, agir, escrever e falar. A desarticulação que o politicamente correto causa na educação, na ciência, na publicidade, na política é indicativo de que ele se transformou num mercado em si.

Pela primeira vez na história uma forma de censura se fez mercado: o politicamente correto é uma forma de inquisição ao portador. E o linchamento constante típico das redes sociais torna o politicamente correto uma arma contra patrocinadores, profissionais do esporte, da arte (esses, normalmente, já vendidos ao politicamente correto), da mídia, da política, do Poder Judiciário, enfim, toda forma de atividade pública.

O mercado jurídico cresce para advogados que adoram esse inferninho. Se você pode ser processado por respirar para o lado errado, os advogados adoram. Já os juízes, não sei. Trabalhar como juiz numa sociedade de retardados mentais sociais não me parece a coisa mais fácil do mundo.

As pessoas se recusam ao uso da autonomia ou do senso comum e decidiram que precisam de um “juiz para chamar de seu”. Ninguém assume nada, apenas terceirizam. Já terceirizavam filhos, idosos, animais, agora vão terceirizar o ato de decidir questões cotidianas. O excesso de demandas ao judiciário é índice de retardo mental social. Os advogados ganharão mais dinheiro com esse retardo mental social.

A própria gestão da cidade cede a infantilização do convívio social. Exemplo: na região da praça Panamericana, na zona oeste da cidade de São Paulo, numa das esquinas de maior trânsito do local acima citado, uma daquelas empresas que investem no “brincar de Amsterdã” instalou suas bicicletas para riquinhos usarem, fechando uma faixa inteira da rua.

Em vez de simplesmente proibir as pessoas de pararem o caro ali, como paravam, e assim, desafogar o acesso complicado à praça Panamericana nos horários de pico, a gestão pública investiu no “brincar de Amsterdã”. Qual seria a causa de ato tão regredido em nome das modinhas de comportamento?

Uma hipótese possível é o puro e simples retardo mental social como fenômeno crescente nas sociedades ocidentais. Talvez como forma decorrente do consumismo e do individualismo. Se sou poderoso como consumidor, serei como cidadão que só quer o mundo aos seus pés. Consumir a condição infantojuvenil como parte dos direitos civis. Um parque temático de retardados descolados.

Luiz Felipe Pondé

Pensamento do Dia


Bolsonaro perde o nexo no escândalo do laranjal

Na política, quem escolhe o momento exato economiza muito tempo. No escândalo do laranjal, Jair Bolsonaro dormiu no ponto. Sob o pretexto de que era necessário aguardar o avanço das investigações, concedeu sobrevida a Marcelo Álvaro Antônio, um ministro cuja reputação estava jurada de morte. O inquérito avançou. E o tempo de que o presidente dispunha para afastar o titular do Turismo já não existe. Só existe o passar do tempo.

A Polícia Federal cercou, por assim dizer, o representante do PSL na Esplanada. Indiciou Mateus Von Rondon, atual assessor especial do ministro; Roberto Silva Soares, ex-coordenador de sua campanha a deputado federal em 2018; e Haissander Souza de Paula, ex-funcionário do seu gabinete na Câmara. Acusou-os de três crimes: falsidade ideológica eleitoral, emprego ilícito do fundo eleitoral e associação criminosa. Encrencaram-se também quatro candidatas-laranja do PSL mineiro.

Restou a Marcelo Álvaro Antônio, mandachuva do PSL de Minas Gerais na ocasião em que verbas públicas irrigaram postulações cítricas, lançar mão de uma desculpa do tipo "eu não sabia". Quanto a Bolsonaro, não há justificativa possível para a demora em afastar o auxiliar. Poderia até ter optado por um afastamento temporário. Mas optou pela única saída inaceitável para um presidente da República: a hesitação.

Segundo o porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros, Bolsonaro não cogita demitir o ministro do Turismo —ao menos por enquanto. Na véspera, ao assumir no Twitter o papel de tradutor das manifestações deste domingo, Bolsonaro resumira a "mensagem" do asfalto para "todas as autoridades". Listou três itens. Eis o segundo: "Combatam a corrupção".

Ao manter o Marcelo Álvaro Antônio no comando do Ministério do Turismo, Bolsonaro perde o nexo. O presidente parece atormentado pela síndrome do que está por vir. No Rio de Janeiro, algumas prestações de contas eleitorais do PSL também exalam um aroma cítrico. Ali, quem preside a legenda é o senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um.

Morte pela boca

Por bem ou por mal, o homem morre pela boca na rede social 
Raul Drewnick 

Brasil retoma a lentidão do século 19

No decênio que se encerrou em 2018, a renda por habitante no Brasil ficou estagnada. “Cresceu” algo como 0,3% ao ano.

Não se trata de um daqueles resultados estatísticos que, por envolver um período de intensa variação da atividade, falseia o que ocorre de fato.

Esse tem sido o ritmo de evolução desde que a economia parou de mergulhar, em 2017. Neste ano de 2019, a melhor perspectiva é crescimento zero do indicador.

Nunca, até onde há registros mais confiáveis, a renda do brasileiro cresceu tão pouco quanto nas quase quatro décadas que nos separam de 1980. A média anual não chega a 1%.

Certamente o pouco desvendado Brasil do século 19 conheceu uma catástrofe maior. Foram 100 anos de estagnação. Não se tratou da paralisia de um país de poderio econômico mediano, como o de hoje. Foi o congelamento prolongado de um nanico.

O notável esforço do projeto Maddison, da Universidade de Groningen (Holanda), de esboçar o que for possível da longa trajetória econômica dos povos, mostra que o Brasil inicia o século 19 com uma renda per capita equivalente a 30% da dos Estados Unidos.

Dez décadas depois essa relação teria caído para menos de 10%. Dez por cento, se tanto, é também tudo o que a renda do brasileiro teria crescido, acumuladamente, durante o Oitocentos. Enquanto isso, a produção norte-americana por cabeça triplicou.

O século 20 se inicia, e a história muda. Embora os EUA tenham sustentado um ritmo vigoroso de prosperidade, a do Brasil corre ainda mais, 50% mais depressa de 1901 a 1980. O PIB per capita brasileiro se decuplica no período.

Então bateu a depressão brasileira, uma interminável noite de volta à paradeira do século 19. Mas o que era um anão adormecido com menos de 20 milhões de almas se tornou um gigante sonolento com 210 milhões, sujeito a pesadelos terríveis.

A missão da imprensa

Quarta-feira passada David Alcolumbre comemorou como “um feito histórico para a democracia do Brasil” a aprovação do orçamento impositivo. Como sempre deu-se o último passo antes de dar-se o primeiro. Colheu-se o fruto antes de plantar a árvore.

Multiplicar por 5594 (26 governadores e 5568 prefeitos) os focos de dispersão do dinheiro público sem instalar antes uma democracia verdadeiramente representativa como sonha fazer o ministro Paulo Guedes, já seria uma temeridade. Dar aos 513 deputados federais e aos milhares de estaduais e municipais carta branca para decidir como gastar nosso dinheiro sem meter-lhes antes na boca o bridão do voto distrital, da retomada de mandato (recall) e do referendo é nada menos que suicídio.

Deputados e vereadores são eleitos às cegas por esses nossos “partidos” em metástese e sua lei eleitoral de enganar trouxa. Uma vez depositado o voto na urna não nos devem mais nada. O dinheiro para a reeleição é tomado e não contribuído. E podem voltar aos plenários sem um único voto se houver um palhaço popular o bastante para arrastá-los. Fica o contribuinte refém de legisladores que podem sacar da sua conta sem ter sequer de mostrar a cara e contra os quais ele não pode nada. E o pior é que como o slogan do “Menos Brasília, mais Brasil” já estava no ar não dá nem pra reclamar.


Como parece complicado argumentar contra mais um princípio elementar da democracia – a desconcentração do dinheiro dos impostos – fica o dito pelo não dito. Mas o caso é que é mais um que vai ser transformado no seu avesso. Esse tipo de tapeação é recorrente nessa nossa “democracia” que parece mas não é. Metade das denuncias de corrupção eleitoral apoiaram-se nesse tipo de manipulação. Primeiro “esqueceu-se” a diferença fundamental entre a sistematização da venda dolosa de votos e a aceitação de dinheiro de “caixa 2”. E então passou-se a dar como criminosas operações de financiamento de campanha que só mais além vieram a ser postas fora da lei. Com todos enfiados no mesmo saco tornou-se impossível tirar o país do impasse por dentro da política e o tão esperado combate efetivo à corrupção virou essa briga de bandidos no escuro que procura tornar indistinguível o joio do trigo e arrasta para a vala comum o que resta da política, do judiciário e da imprensa sadias.

E taí o Brasil parado e estrebuchando…

Tudo neste país está emaranhado na subversão sistemática da ordem cronológica e das relações de causa e efeito. Vivemos num turbilhão de ações e reações desencadeadas para conter a manifestação dos efeitos dos nosso problemas, nunca para eliminar suas causas, que ninguém mais sabe onde começa, de que vai resultando um frankenstein institucional em marcha acelerada para o desastre.

Na arte da construção de instituições – um trabalho refinado ao longo de milênios de sangue, suor e lágrimas – a ordem dos fatores não só altera mas quase sempre inverte o resultado. Todas as corcundas e escolioses, todos os membros retorcidos ou atrofiados das nossas instituições decorrem do aleijão original da planta dos pés de todas elas: a desigualdade petrificada na constituição, a distorção matemática da representação do País Real no País Oficial, a absoluta independência entre representantes e representados uma vez encerrada a eleição.

É por isso que, de como (não) defender a própria vida ao que fazer com a previdência, da sexualidade do seu filho ao regime de trabalho que melhor convém a cada um, do orçamento público à definição do próprio regime político, tudo pode ser e é discutido à revelia dos destinatários das leis e das providências que as “excelências” houverem por bem barganhar entre elas.

A ausência absoluta do eleitor nesses debates é o espaço vital da corrupção.

O papel dos políticos nas democracias é ajustar os contornos das figuras a serem desenhadas pelo povo, não o contrário. O da imprensa é balizar e ditar o ritmo dessa operação a quatro mãos. Se ela pode constranger as autoridades a crer que a providência mais urgente e profícua que podem tomar por esta nação em guerra é criminalizar a heresia de descrer da nova “verdade anunciada” de que aquilo com que cada ser humano nasce entre as pernas não existe, imagine-se o que não poderia fazer se assumisse as tarefas de trazer o debate político sempre para as causas essenciais dos nossos problemas e de pôr debaixo dos narizes dos nossos representantes os consagrados remédios usados por quem já se curou ha quase 200 anos das mesmas doenças de que o povo brasileiro continua condenado a padecer.

É uma só humanidade que habita este mundo que começa na Venezuela e termina na China. Quando, na virada do século 19 para o 20, os Estados Unidos estiveram tão doentes de corrupção quanto o Brasil está hoje e seu povo sentia-se tão impotente quanto o nosso, jornalistas foram em caravana à Suíça estudar as ferramentas de democracia direta com que aquele país se tinha livrado da mesma praga 30 ou 40 anos antes e voltaram para casa com a seguinte receita: “O povo suíço reconhece na iniciativa (de propor leis e de dar e tirar mandatos) e no referendo o seu escudo e a sua espada. Com o escudo do referendo afasta todas as leis que não deseja; com a espada da iniciativa abre caminho para transformar as suas próprias idéias em leis”. Foi esse “feito histórico” para as suas respectivas democracias que fez de ambos os dois povos mais livres e ricos da história da humanidade.

A fórmula do remédio que pode curar a democracia brasileira não tem tradução em português. A missão da imprensa porventura interessada em livrar-se de ser confundida com os políticos pela opinião pública e acabar tendo o mesmo destino deles, é ir buscar onde estiverem todas as soluções que só aos grupos em disputa pelo poder interessa esconder, da-las a conhecer a este país doente e, assim, fazer o Brasil reconciliar-se com o Brasil.