terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Brasil brinda a 2022

 

Rodrigo Mineu

O Brasil no radar do mundo

Em livro recentemente republicado, desses que dão nova vida a suas antigas crônicas, Rubem Braga sugere uma reflexão diferente para a virada do ano. Pede aos leitores que pensem “nos seus próprios ridículos” e lembra que os mais envaidecidos de suas virtudes muitas vezes são pessoas azedas, infelizes e entediadas.

Tudo isso para desejar, no Ano Novo, “muitas virtudes e boas ações”, mas também “alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos”. Aos muito vaidosos de suas virtudes, ele sugere que pequem “pelo menos uma vezinha”, para relaxar.

Seria um pouco difícil repetir a recomendação nos dias de hoje. O palco fácil da Internet ajudou a alimentar certezas e a multiplicar julgamentos. A busca do eleitorado religioso e conservador jogaria no lixo a brincadeira sobre os pequenos pecados.


Mas a receita de Braga, que destilou sua fina ironia até 1990, ajuda a lembrar um Brasil mais suave e irreverente, um país que conquistou simpatia em todo o mundo – apesar das sempre lembradas desigualdades sociais – com sua aposta na descontração.

Ele teve sorte. Morreu cinco anos depois do retorno da democracia e não teve pela frente a tarefa de escrever sobre o 2022 que se aproxima. Um ano em que a violência verbal estará amplificada e a tolerância será testada com máxima intensidade.

O Brasil poderia ter bons motivos para celebrar em paz o seu bicentenário, mesmo no momento em que o mundo ainda enfrenta uma pandemia, acoplada a incertezas mundiais tanto na economia quanto na política. O país passou, porém, a ser visto com desconfiança.

Nas telas de televisão e nas páginas de jornais e revistas em todo o mundo, aquela imagem de país bonachão, de boa música e bom futebol, tem sido substituída pela de uma nação que tem a democracia ameaçada e cuida com desdém de um de seus principais ativos: a floresta tropical.

A partir dos meios de comunicação, a crítica alcançou os debates acadêmicos, desses que envolvem figuras capazes de exercer influência junto a quem toma decisões importantes em países centrais no cenário global.

Foi o caso do recém-lançado podcast “Nove questões para o mundo”. Elaborado pelo Council on Foreign Relations (CFR), uma organização independente de pesquisa e debate sediada em Washington, o programa convidou especialistas para traçar cenários dos próximos dez anos. As referências ao Brasil não são muito elogiosas.

Um dos episódios do podcast tem por título “Pode a democracia sobreviver”? A convidada especial foi a historiadora, professora e jornalista Anne Applebaum, detentora de um prêmio Pulitzer.

Em conversa com o presidente do CFR, Richard Haass, ela traça um cenário preocupante. Após a II Guerra Mundial, recorda, democracias se espalharam pelo mundo. Mas, na sua opinião, elas agora estão especialmente vulneráveis. E que países ela cita?

Além dos próprios Estados Unidos, onde partidários de Donald Trump invadiram o Capitólio após a vitória de Joe Biden, ela menciona nações como Polônia, Venezuela e Brasil. Observa que desigualdades ameaçam democracias e que muitos dos que se deixam seduzir por tentações autoritárias sentem-se de alguma forma esquecidos pelos governantes.

“Podemos ver movimentos antidemocráticos similares em várias partes do mundo”, alerta Applebaum. “Existe alguma coisa acontecendo? É bom prestar atenção”.

No último e mais importante episódio, “A ordem mundial tem um futuro”? Haass é entrevistado pelo jornalista Fareed Zakaria, da CNN, e ressalta a necessidade de se promover uma revisão da maneira como entendemos o mundo até agora.

Se até recentemente se poderia interpretar o cenário global apenas a partir de conceitos como soberania e equilíbrio de poder, pondera o professor, agora existem novos elementos na mesa, como o ciberespaço e a mudança climática.

Além disso, observa, o mundo se tornou mais descentralizado e, ao mesmo tempo, se percebe que o planeta é um só. E que não basta se pensar apenas em termos de interesses nacionais.

“Mesmo que os Estados Unidos sejam capazes de se defender de possíveis ameaças de países como Rússia e China, a temperatura do mundo continuará subindo”, recorda. “Sobre a tradicional geopolítica agora se acrescentam novas camadas de temas globais”.

Uma vez que as preocupações globais sobre temas como o aquecimento do planeta tendem a crescer, prossegue o presidente do conselho, a própria questão da soberania estará na ordem do dia. E que país ele cita como exemplo?

“Vejam o caso do Brasil”, sugere Haass. “Eles têm a maior parte das florestas tropicais. Se pensamos no direito de cada país de fazer o que quiser dentro de suas fronteiras soberanas, eles podem derrubar as suas árvores”.

“Mas se pensamos neles como cuidadores”, prossegue o professor, eles não teriam necessariamente o direito de fazer isso. “Se acham que podem, por que não impomos sanções e boicotamos produtos brasileiros?”

Democracia e meio ambiente. Estão aí dois temas que não se limitam mais aos cercadinhos dos chamados assuntos internos de cada país. Até há poucos anos, eram dois motivos de orgulho nacional. Agora deixam o país na condição de vilão.

Os que gostam de expor seu patriotismo como virtude, mas insinuam golpes de Estado e esvaziam órgãos de controle ambiental, podem não perceber. Mas, como na crônica de Braga, esquecem dos próprios ridículos.

Em 2022, mais do que nunca, o Brasil estará no radar do mundo. E não pelos melhores motivos.

Podemos evitar que a politização destrua nossas vidas?

2022 será violento. Bolsonaro fará o que for preciso para se manter no poder. E se os números nas pesquisas não melhorarem, ficará cada vez mais desesperado.

De uma forma ou de outra, todos seremos dragados por essa disputa, que pode separar amigos, parentes, colegas de trabalho e até namorados. Cresce o número de pessoas que não vão para a cama com alguém sem antes saber direitinho em quem a pessoa votou em 2018 e como pretende votar em 22.

O filósofo político Robert Talisse vem acompanhando esse fenômeno e vê razões para nos preocuparmos. É o que ele argumenta em "Overdoing Democracy" (Oxford University Press, 2019, ainda sem tradução), lançado pouco antes da pandemia, mas cujos pontos centrais se tornaram mais fortes desde então.


A orientação política penetrou em basicamente todos os aspectos da vida nos EUA —do canal de notícias consumido e o tipo de música que se ouve à vizinhança em que se mora.

Essa politização dá início a um processo de autosseleção, em que nossas relações ficam cada vez mais restritas apenas a quem vota como nós. Num país bipartidário como os EUA, e com cultura mais ideológica que a nossa, esse processo já está mais avançado, mas caminhamos na mesma direção.

Somos animais gregários que formam coalizões e buscam o poder. A solução tradicional para garantir ordem social era a supressão do dissenso.

A sociedade democrática liberal é uma conquista recente da humanidade, e que jamais será natural. Ela aceita a dinâmica de formação de coalizões, mas sujeita-a a regras.

Projetos políticos (assim como concepções religiosas) diferentes existindo lado a lado e em paz, respeitando regras de comum acordo sobre o que pode ou não ser feito para garantir a vitória, dependem de um equilíbrio muito tênue. Se o meu lado é o certo, com base no quê devo respeitar o outro?

"Tudo é política" é um slogan que pega bem nos meios mais esclarecidos aqui no Brasil. É também, contudo, um veneno que está nos matando aos poucos, tornando a política cada vez mais polarizada e, por isso, menos eficaz.

A pertença à tribo correta, vista como o valor mais importante, toma precedência sobre o encontro de soluções de compromisso que de fato funcionem para resolver problemas da população. Num mundo em que eu sequer convivo com esse outro, ele se torna cada vez mais um monstro da minha imaginação. E como ele não respeita regra nenhuma, eu também me permito não respeitá-las.

Talisse é menos convincente em prescrever soluções. Uma coisa é clara: recomendações individuais podem ajudar cada um de nós a não enlouquecer, mas não dão conta do problema.

É sempre positivo lembrar que a vida tem muito mais do que política, e sacrificar todo o resto —​relacionamentos, interesses, cultura— em nome dela é um jeito seguro de perder tudo que realmente importa. E, no fim das contas, a própria democracia, sacrificada ao fanatismo.

No entanto, por mais que cada indivíduo possa resistir neste ou naquele ponto, o processo geral é implacável.

Cada esfera da vida pode ser utilizada para favorecer este ou aquele lado da disputa, cada escolha de consumo pessoal pode refletir um certo conjunto de símbolos que apontam para um ou outro lado.

Você até pode se desligar um pouco de tudo, mas será que vale a pena, considerando os riscos que se apresentam em 2022? Cada vez mais ressentidos, rumamos para o vórtice. Um feliz Ano-Novo!

Receita Federal no plano de demolição

O clima na Receita Federal era, na véspera do Natal, de “indignação coletiva”, na definição de uma fonte. “Essa é a maior crise da história”, completou. Mas o que acontece lá não é fato isolado. O governo Bolsonaro tem feito um ataque sistemático ao Estado usando um arsenal conhecido. Corta cabeças de lideranças com alguma autonomia, aparelha e, depois, seca recursos. Assim ele fez com Ibama, ICMbio, IPHAN, Funai, Fundação Palmares, Ministério da Educação, Ministério da Saúde.

Na Receita, o governo cortou dinheiro da manutenção da máquina para ter recursos para aumentar salários da Polícia Federal. Ela mesma, a PF, enfrentou um vistoso caso de intervenção do presidente para retirar sua autonomia e colocá-la a serviço da sua família, como o próprio presidente confessou com palavras chulas naquela famosa reunião ministerial.


Na Receita, centenas de auditores entregaram seus cargos de direção, o que deixa setores e unidades do órgão acéfalos. Além disso, 44 integrantes do CARF, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, pediram exoneração. A Receita permanece ainda sem corregedor. E isso é importante para entender a crise. O antigo secretário José Tostes Neto escolheu um candidato para a corregedoria, que foi aprovado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, mas foi vetado pela Casa Civil. Já é humilhante ter que enviar à Casa Civil o nome de alguém do segundo escalão do Ministério. Subserviente como é, Paulo Guedes aceitou. Pior. Demitiu o secretário com uma frase esclarecedora: “O presidente quer o seu cargo”.

Nunca se explicou a demissão de José Tostes. O Ministério fez circular a informação de que ele seria adido na OCDE. Era mentira. O cargo é exclusivo de pessoal da ativa, Tostes é aposentado.

Tostes não é conhecido do público, tem horror a entrevistas, e afundou-se no silêncio. Mas um detalhe dessa demissão é curioso: o governo tem comemorado o aumento da arrecadação em 2021. Mesmo assim demitiu o secretário? Durante seu período no cargo, Tostes Neto teve três reuniões com o senador Flávio Bolsonaro ou seus advogados. Numa delas, o ex-secretário chegou até a ir à casa do senador. Tostes Neto admitiu que foi lá para “discutir a situação fiscal de pessoas físicas e jurídicas relacionadas ao senador Flávio Bolsonaro”. Um espanto essa entrega a domicílio qualquer que seja. Mas o governo queria mais do que isso. E Tostes Neto teria negado.

O senador Flávio Bolsonaro mandou carta para mim, através da assessoria, negando que tenha qualquer ingerência na Receita e garante que nunca interferiu. Segundo ele, dizer que houve interferência — como eu disse e sustento — é “desrespeitoso com a maioria dos servidores da Receita”. Ora, ora, quem desrespeita a Receita não é uma jornalista e sim o cotidiano desse governo que tem como objetivo capturar os órgãos de Estado para que eles funcionem em torno dos objetivos escusos da família do presidente e dos seus amigos.

Bolsonaro é criminoso confesso em muitos casos de obstrução do trabalho dos servidores. Fez isso no IPHAN e, como ele mesmo informou, para atender ao interesse empresarial de um amigo dele, Luciano Hang. Isso é crime. Beneficiar interesses privados, usando um órgão público cuja existência ele admitiu desconhecer. Recado ao presidente: O “PH” da sigla IPHAN significa patrimônio histórico, Bolsonaro, mas certamente isso escapa ao seu entendimento raso e tosco do que seja o Estado brasileiro. Seu trabalho tem sido de demolição do Estado.

No caso da Receita, há o projeto de um bônus já aprovado e depois barrado. Mas a gota d’água foi a decisão do ministro Paulo Guedes de indicar verbas da Receita, que permitem o funcionamento do órgão, para os cortes que garantirão os quase R$ 2 bi que vão elevar o salário da Polícia Federal. Isso foi atear fogo à gasolina. O ministro fez isso e saiu de férias.

O aumento na PF é a forma de comprar lealdade dos agentes e delegados depois de o órgão ter sofrido a mais violenta intervenção. O presidente mesmo admitiu que faria isso, em meio a palavrões com os quais informou aos seus ministros que queria proteger a família e os amigos. Os órgãos ambientais, de proteção dos indígenas e de defesa da igualdade racial vivem a infâmia diária desde o começo do governo. Tudo é parte do mesmo projeto de destruição e ocupação da máquina. Da terra arrasada, o Brasil precisará se reerguer.

Todos os livros do presidente

Há três ou quatro anos, na véspera de Natal, fui convidado para autografar exemplares dos meus livros numa pequena livraria independente, em Cascais, próximo de Lisboa. Não havia muitos clientes. A certa altura entrou na livraria o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa. Vinha sozinho. Sentou-se diante de mim, cumprimentou-me com um vigoroso aperto de mão, e disse-me que naquele Natal iria oferecer livros meus a toda a família. Fiquei duas horas à conversa com ele, enquanto autografava.

Antes de ser eleito pela primeira vez presidente da República, em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa era famoso como um comentador político que também recomendava livros. Ter um livro recomendado por Marcelo garantia quase sempre boas vendas. Muita gente ficava espantada com a quantidade de livros, desde romances a densos ensaios de filosofia, que Marcelo recomendava todas as semanas. O segredo, segundo revelou o próprio em diversas entrevistas, tem a ver com o fato de dormir apenas quatro horas. O presidente português dedica o resto da noite à leitura de livros e jornais.


Portugal tem sorte em ter um presidente que dorme pouco — e que gosta de ler. Aliás, os presidentes deveriam ser escolhidos pelos livros que leem. Juntamente com a declaração de rendimentos, cada candidato presidencial teria de apresentar uma lista dos seus vinte livros preferidos. Uma medida como esta evitaria muitas desilusões. Evitaria, sobretudo, alguns grandes e graves desastres, como aquele que está em curso no Brasil.

Jair Bolsonaro não conseguiria sequer escrever tal lista e seria eliminado antes mesmo de começar a corrida. Já Donald Trump, que, por comparação com Bolsonaro, é quase um intelectual, afirma ter lido pelo menos dois livros ao longo da vida — e recomendou-os inúmeras vezes: “A arte da guerra”, de Sun Tzu, e “O príncipe”, de Nicolau Maquiavel. Mais dois bons motivos para ninguém votar nele.

Na lista dos títulos preferidos de Barack Obama encontro vários de que também gosto. Destaco “Garota, mulher, outras” de Bernardine Evaristo, e “Da próxima vez, o fogo”, de James Baldwin. Contudo, há algumas escolhas um pouco inquietantes, como Paula Hawkins (“A garota no trem”) e Paulo Coelho (“As valquírias”).

Nelson Mandela gostava de biografias. Na sua lista de livros preferidos figuravam ainda grandes clássicos da literatura universal, como “Guerra e paz”, de Tolstói, e nomes importantes das letras do seu país, com destaque para Nadine Gordimer, Prêmio Nobel da Literatura em 1991.

Voltando ao Brasil, gostaria de saber mais sobre os livros preferidos dos principais candidatos. Sobre Lula sabemos bastante. Entre os romances que leu (ou releu) na prisão estão alguns dos meus favoritos, como “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez, e “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. Além disso, Lula parece prestar atenção aos novos talentos. Na cadeia, leu, por exemplo, “O sol na cabeça”, de Geovani Martins.

A lista de Lula é, no geral, muito boa. Se o meu sistema estivesse em vigor no Brasil, os restantes candidatos teriam de se esforçar bastante.

Desejo a todos festas felizes — e boas leituras!