sábado, 25 de julho de 2020

ONU propõe renda básica temporária para frear pandemia de coronavírus

Centenas de milhões de pessoas enfrentam diariamente o dilema de se confinar para não contrair o novo coronavírus, freando assim o avanço da pandemia, ou sair para trabalhar e continuar comendo. A maioria —pobres em países pobres, trabalhadores informais que vivem um dia de cada vez e não têm uma rede de apoio se sua renda sumir— opta pelo segundo. Assim, é impossível dobrar a curva de contágios, como se conseguiu nas economias avançadas confinando a população, e o SARS-CoV2 continua sua expansão incontrolável. Essa é a conclusão de um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que propõe que os Governos das nações em desenvolvimento garantam uma renda básica temporária, enquanto a pandemia durar, às pessoas em situação de pobreza ou em sério risco de cair nela. E acabar assim com o dilema entre ter covid-19 e passar fome.

Concretamente, o relatório Renda Básica Temporária: Proteção de Pessoas Pobres e Vulneráveis em Países em Desenvolvimento, publicado nesta quinta-feira, propõe que 132 países de renda baixa e média garantam um pagamento básico por um tempo limitado para quase três bilhões de pessoas, 44% da população global. “Isto não é um apelo por doações, não é uma ajuda do Fundo de Emergência da ONU para as nações mais pobres, e sim uma proposta para que os Governos desses países examinem suas opções para confrontar a pandemia”, esclarece Achim Steiner, administrador do PNUD, em uma entrevista por teleconferência.
Morador de rua toma banho e lava máscara em torneira
improvisada em São Paulo - André Lucas/Europa Press
A expansão do SARS-CoV2 se acelerou nas últimas semanas, sobretudo nos países em desenvolvimento e nas economias emergentes, onde as taxas de trabalho informal, sem subsídios de desemprego ou outras ajudas públicas, são elevadas. “Necessitamos de soluções incomuns, temos que pensar de forma diferente, porque o maior desafio que enfrentamos neste momento é que, na ausência de tratamento e de vacinas, esta pandemia continuará se propagando”, comenta Steiner. “O problema é que, ao tratar de contê-la, provocamos um impacto no sustento econômico e social das pessoas. E claramente, e de forma particular nos países em desenvolvimento, onde não há uma rede de segurança social, onde entre 70% e 80% das pessoas ganham a vida através do setor informal, um confinamento significa não ter renda. Um apoio básico temporário é uma opção legítima a considerar nas estratégias nacionais”, detalha.

“As previsões feitas há dois ou três meses sobre a pobreza e a perda de empregos e renda estão começando a se cumprir agora”, advertiu o economista George Gray Molina, chefe de política estratégica do PNUD, durante um encontro virtual com jornalistas. Segundo seus cálculos, entre 70 e 100 milhões de pessoas poderiam cair na miséria extrema (viver com menos de 1,90 dólar por dia —cerca de 10 reais) devido à crise econômica desencadeada pela covid-19. Essa previsão já é um problema real. Por isso, Gray urge que sua proposta seja ouvida e adotada o quanto antes. Não há tempo a perder. “Chegamos a mais de 14,5 milhões de casos nesta semana. Foram três meses até alcançar o primeiro milhão, depois aumentou à razão de um milhão por semana, e ultimamente, um milhão a cada quatro ou cinco dias”, alerta.

Perante a dúvida de como economias menos adiantadas poderiam se permitir uma medida como esta, os pesquisadores do PNUD calcularam seu custo e de onde poderia provir. “É factível”, afirma Steiner. “Os países têm diferentes limites de pobreza”, observa Gray. A proposta do PNUD é que se garanta que todos os cidadãos estejam acima desses limites, seja completando seus exíguos ganhos ou transferindo uma quantia fixa, que calcularam em 5,50 dólares (28,16 reais) por dia, que é a linha de pobreza mais comumente adotada.

No primeiro caso —adaptar a ajuda ao limite nacional de pobreza—, se a linha de pobreza estiver em 1,90 dólar por dia, seria preciso garantir uma renda de 3,20 dólares a cada cidadão. Se o limiar for de 3,20 dólares, cada pessoa deveria obter um mínimo de 5,50. E onde se vive na pobreza mesmo ganhando mais de 5,50 dólares por dia, como na maior parte da América Latina e Europa, então seria preciso garantir até 13 dólares por dia. Promover esta medida custaria aproximadamente 200 bilhões de dólares (pouco mais de um trilhão de reais) por mês. A opção de uma ajuda uniforme de 5,50 dólares por dia para 2,78 bilhões de pessoas representaria um investimento de 465 bilhões mensais.

Esses recursos poderiam provir, segundo Gray, de três fontes. “Não propomos impostos adicionais, porque esta é uma medida temporária, que durará seis, nove ou 12 meses, até que se encontre uma vacina ou uma cura. Mas falamos de reutilizar os recursos existentes”, explica. Um deles é a dívida que os países em desenvolvimento pagam a seus credores. O G20 já concordou com uma moratória no pagamento da dívida dos 77 países mais pobres do mundo, mas o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que essa suspensão seja estendida a todos os países em desenvolvimento, incluídos os de renda média, assim como os pequenos Estados insulares.

Se cumprida, essa suspensão da dívida estendida chegaria a 3,1 trilhões de dólares neste ano, que é o que desembolsariam os países em desenvolvimento a seus credores em 2020, calcula o PNUD. Uma quantidade que cobriria total ou parcialmente —dependendo da opção— até o final do ano a renda básica temporária que o organismo propõe. Outra fonte poderia ser, segundo o organismo, entregar às pessoas os subsídios hoje destinados aos combustíveis fósseis. E, finalmente, sugere uma espécie de sistema de autofinanciamento das ajudas. “A maioria das transferências de dinheiro aos pobres ou vulneráveis vai para o consumo e têm um efeito multiplicador muito forte em nível local. E parte do investimento será recuperada mediante impostos diretos ou indiretos que poderiam por sua vez financiar parte das próprias ajudas”, aponta Gray.

Além do financiamento da medida, há outros desafios, como o administrativo. Como encontrar e fazer os pagamentos a tantas pessoas, muitas delas não registradas e fora do sistema? “Vimos muita inovação com ferramentas digitais nos últimos meses”, diz o especialista. E há a experiência dos países que já implementaram pacotes de ajudas aos mais necessitados. A maioria é de países ricos, mas também há nações em desenvolvimento que iniciaram programas de proteção dos mais vulneráveis, como o Togo. Muitos, entretanto, terão que inventar suas próprias respostas.

“Claramente, estamos em um território desconhecido. Mas podemos tirar partido das melhores práticas de muitos países e tratar de aplicá-las em uma situação excepcional para estabelecer um conjunto extraordinário de medidas para abordar o que de outra maneira derivaria em uma situação intratável em muitos países”, adiciona Steiner. “Estamos em uma situação sem precedentes. Necessitamos respostas sem precedentes. O número de infecções e mortes continua aumentando exponencialmente. O que fizemos até agora não é suficiente.”

Proibições de fala e cultura do cancelamento ameaçam a democracia

Sejam liberais versus republicanos nos Estados Unidos, pró-Brexit versus anti-Brexit no Reino Unido: quando, apesar de todos os esforços, não é possível evitar um confronto, a coisa lembra um encontro imediato de terceiro grau. Um lado acusa o outro de disseminar fake news, ao que este responde "cancelando" seus atacantes.

"Fake news!", bradam os que alegam que uma elite de esquerda, cosmopolitas e a mídia estão reconfigurando a sociedade. Entre os que repetem esse canto de guerra, estão os seguidores do presidente americano, Donald Trump, ao afirmar que a pandemia de covid-19 não passaria de uma fraude dos democratas, não sendo, portanto, genuína, e sim "falsa".


Os assim difamados, por sua vez, traçam uma nítida linha divisória entre si e os outros. Definem-se com rigor palavras, seu significado e os contextos em que podem ser ditas, de forma que qualquer dissidente é punido com um banimento que lembra as excomunhões proferidas pela Igreja Católica na Idade Média.

Em 2015, o Nobel de Medicina inglês Tim Hunt teve um gostinho disso, depois de meter os pés pelas mãos com um comentário. Numa conferência, ele afirmou que as (mulheres) cientistas "se apaixonam por você, e quando você as critica, elas choram". Foram inúteis todas as suas desculpas por essa declaração imbecil, ele teve que devolver diversas distinções e perdeu o título de professor honorário. Bastou um lapso para Hunt e o conjunto de sua obra serem "cancelados".

Em tal clima de tensão social, não espanta que, mesmo num país como os Estados Unidos, conhecido por sua veneração extrema da livre expressão, não se tenha mais paciência para essa briga.

Um estudo de 2018 mostrou que os membros da ala republicana estavam cansados das proibições de fala que sentiam ser-lhes impostas, as percebiam como ataque à própria identidade e não estavam mais dispostos a aceitá-las. No espectro esquerdista, liberal, os consultados admitiram não dar mais conta de aprender e empregar todos os novos termos politicamente corretos com que seus colegas apareciam a cada dia.

Recentemente, intelectuais de prestígio mundial, como os autores Salman Rushdie, Margaret Atwood e J.K. Rowling, ou o linguista Noam Chomsky, assinaram uma carta aberta criticando duramente a ala liberal e seu gosto de "cancelar".

O escrito veio em reação à saída da comentarista conservadora Bari Weiss do The New York Times. Ela fora expressamente contratada após a eleição de Trump para assegurar que opiniões consideradas controversas pelo espectro liberal seguissem sendo publicadas no jornal, mas jogou a toalha depois de três anos, por ser impedida de cumprir exatamente essa função.

Uma sociedade em que proibições de fala abrangentes dominam, e o medo governa as línguas, acabará deixando de ser uma democracia. Mas, como reencontrar o caminho do debate construtivo nos EUA, Reino Unido, Alemanha e outros?

Em primeiro lugar, é preciso definir novamente o que são fatos. Desde a Antiguidade Clássica, distinguimos doxa, opinião, de episteme, conhecimento. Fatos, a base do saber, geram opiniões diversas. Uma opinião, contudo, não leva a conhecimento fundamentado.

Por outro lado, fatos empíricos, sozinhos, não resolvem problemas. Toda pesquisa de ciências sociais, por maior que seja a precisão metodológica ao realizá-la, termina com a pergunta: o que significam os dados assim compilados?

Aqui sempre houve diferentes abordagens e pontos de vista – e é preciso que haja. Para reconhecê-los, é preciso a autoavaliação saudável – nossos ancestrais chamavam isso "humildade" – de que nunca se pode saber tudo, e que por isso é também preciso escutar opiniões alheias.

Discurso é a mediação entre as diferentes interpretações possíveis dos fatos. E como fatos não são opinião, essas possibilidades têm limites. Quem se move além desses limites não está mais jogando segundo as regras do discurso. É certo que cada um tem direito à própria opinião, mas isso não implica que toda opinião assim expressa seja automaticamente verdadeira.

Quem valida a verdade de uma opinião não é quem a expressa, mas sim o poder lógico e verbal com que os fatos são apresentados, interpretados e avaliados.

Nos últimos 15 anos, despontaram, por todo o mundo democrático, protagonistas que gradualmente deslocaram os limites entre interpretação legítima e mera sensação visceral. Para que sua vitória parcial não culmine num triunfo, que ao mesmo tempo seria o fim da democracia, é preciso que, num grande esforço conjunto, os indivíduos de boa vontade, no espectro de esquerda, verde, liberal e conservador, reassumam o controle dos fatos. Uma vez que estes sejam arrancados das mãos dos populistas e demagogos, pode recomeçar uma luta justa e construtiva pelo melhor caminho para a sociedade democrática.

Alexander Görlach

Imagem do Dia

_ Por que Bolsonaro deixa cortar a floresta?
- Para ter madeira para caixões
Tasspiegel (jornal alemão) 

Devaneio militar

O setor público brasileiro cultiva a tradição perniciosa de levar mais a sério as metas de gasto do que as metas de desempenho. Estas são descumpridas sem a responsabilização de autoridades; aquelas se perenizam e só mudam para maior.

Na terça-feira, a Câmara dos Deputados aprovou o aumento da participação federal no Fundeb, o fundo da educação básica; no dia seguinte, chegou ao Congresso a documentação relativa à Política Nacional de Defesa, que, entre outras muitas considerações, propõe elevar o gasto das Forças Armadas a 2% do Produto Interno Bruto.

Na argumentação do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, o dispêndio atual “não é condizente à estatura do país”. O patamar mencionado corresponde à meta da Otan, a aliança militar ocidental —só cumprida, diga-se, por 7 dos 30 membros do grupo.

Nunca faltam exemplos para justificar a necessidade de mais verbas. As Forças reclamam das más condições de seus equipamentos —como outros setores apontam as deficiências nacionais em ensino, saúde, segurança, cultura. Menos confortável é mostrar o que se realiza com o dinheiro hoje disponível.


O Ministério da Defesa desembolsou R$ 109,9 bilhões em 2019, sem considerar despesas financeiras. O montante, que faz do orçamento da pasta o terceiro maior da Esplanada, equivale a 1,5% do PIB.

Praticamente três quartos dos recursos, R$ 80,5 bilhões, foram destinados ao pagamento de pessoal —e, desse valor, nada menos que R$ 47,7 bilhões se consumiram com inativos e pensionistas.

Sobrerrepresentados no governo Jair Bolsonaro, os militares conseguiram uma reforma mais amena de seu regime previdenciário, o mais generoso do serviço público.

No ano passado, cada segurado militar custou ao Tesouro Nacional, em média, R$ 121,2 mil acima das receitas de contribuições. Com os servidores civis, o gasto per capita foi de 71,6 mil; com os beneficiários da iniciativa privada, R$ 6.900.

Em troca de alguma redução em seus privilégios de aposentadoria, as Forças Armadas obtiveram vantagens salariais que, só neste ano, contam com R$ 4,7 bilhões previstos na lei orçamentária.

Elevar as despesas com defesa ao nível pleiteado pela corporação, superior ao verificado em países como a Alemanha e a França, significaria desembolso adicional de R$ 35 bilhões anuais, mais do que se aplica no Bolsa Família.

No Brasil de descalabro orçamentário agravado pela pandemia, gastos federais contidos a duras penas por um teto constitucional, carências sociais urgentes e infraestrutura precária, trata-se de péssima opção de política pública.

Blá blá blá

Pascal Campion
Palavras, palavras, palavras… Eu já não aguento mais!

Gonzaguinha, ainda bem que você não está aqui para ver o que andam fazendo com as palavras. Elas agora servem para disfarçar mentiras, negar evidências, espalhar boatos, propagandear remédios ineficazes, ameaçar quem permite ser considerado inferior. O poder que elas têm continua em vigor, pois, basta divulgar algumas poucas, para o mundo inteiro comentar, repassar, julgar, mesmo quando vindas de fontes duvidosas ou anônimas.

Mas as palavras dos líderes já não lideram multidões, a palavra empenhada é mero acordo temporário nem sempre cumprido, a palavra da lei é modificada conforme a necessidade dos interessados. Tudo ficou líquido, etéreo. Dia após dia, pisamos em areia movediça, sem certezas absolutas, sem futuro garantido.

Desabafamos o horror dessa pandemia moral criando charges, jingles, piadas, caricaturas, paródias que espalhamos pelas redes sociais, em busca de eco. Pouco repercutem também as palavras de especialistas sobre nossas Saúde, Educação, Economia, nossos Direitos e Deveres.

Entre os oprimidos, vivem os que acreditam nas versões oficiais sem qualquer questionamento e os que protestam, sempre sujeitos à repressão, por mais que as palavras governamentais preguem a democracia. Entre os poderosos, ainda sobrevive a prepotência, geralmente sinônimo de crueldade.

Algumas palavras têm feito alguma diferença, quando apresentadas na mídia. Escândalos já não contam com o silêncio das vítimas, maus tratos são denunciados, títulos ganham o verdadeiro valor, quando usados para desmandos, quadrilhas são desmascaradas. Os resultados de tudo isso ainda é modesto, mas começa a incomodar quem se julgava intocável.

Não bastasse tal realidade, temos ainda a Covid-19, o desmatamento e os gafanhotos para enfrentar. Mas o brasileiro resiste, acostumado que é a superar tragédias. Ainda consegue rir da própria desgraça, sobreviver ao isolamento que deprime nossa natureza comunitária e manter acesa a débil lamparina da esperança. O que confirma os versos de Gonzaguinha:

Com tempo ruim, todo mundo também dá bom dia…

Madô Martins

Também se mata a esperança



A esperança é um instinto que só o raciocínio humano pode matar
Graham Greene, "O poder e a glória"

'Será que estamos chegando ao limite biológico da nossa capacidade política?”'

Nada em demasia, diziam os gregos, porque tudo tem limites e natureza também, mas nos esquecemos disso. Não se deve navegar sem leme, mas na globalização nos esquecemos disso. Ela foi conduzida apenas pela força do mercado e da tecnologia, e não havia consciência política nesse processo. O velho liberalismo mudou, tornou-se “liberismo” e abandonou seu humanismo. Hoje, se eu pudesse acreditar em Deus, diria que a pandemia é uma advertência aos sapiens.

A destruição de valor augura pobreza. Diante do perigo, as pessoas se refugiaram no Estado. Falam de nacionalizar, reindustrializar, de soberania sanitária e farmacêutica. Surgirão nacionalismos chauvinistas e salários em baixa. Os escalões baixos das classes médias em perigo questionarão os Governos e serão o grito das ruas. Os autoritarismos terão sua primavera, assim como a especulação, tentarão se apropriar de valores a preço de ruína. Haverá aqueles que pedirão solidariedade econômica e financeira com os pobres do mundo e algum gesto de bilionários. Uns e outros serão como cantar para a lua.

Os bancos centrais do mundo rico inundarão seus países com dólares e euros. Se a cooperação não conseguir mitigar a concorrência haverá dramáticas tensões geopolíticas entre o Oriente e o Ocidente. Pergunto: será que nós, humanos, estamos chegando ao limite biológico da nossa capacidade política? Seremos capazes de nos redirecionar como espécie e não como classe ou país? A política olhará longe para se harmonizar com a ciência? Aprenderemos a lição do desastre ao ver como a natureza revive? A medicina, o ensino, o trabalho digital e a robótica se firmarão e entraremos em uma nova era? Haverá fortes batalhões de médicos capazes de ir lutar pela vida em qualquer lugar ou continuaremos gastando três milhões de dólares por minuto em orçamentos militares? Tudo depende de nós mesmos.

José ‘Pepe’ Mujica é ex-presidente do Uruguai

A tragédia dentro da tragédia

Se a Nação padece dos severos efeitos da pandemia além do que seria naturalmente esperado, é porque o governo do presidente Jair Bolsonaro foi incompetente para lidar com a crise ou pautou suas decisões por critérios antirrepublicanos. Não há outra conclusão a que se possa chegar após a leitura de um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a gestão da emergência sanitária pelo governo federal.


O foco inicial da fiscalização do TCU eram as compras feitas pelo Poder Executivo durante o estado de calamidade pública. No entanto, “dificuldades e preocupações” concernentes à gestão da crise como um todo levaram o ministro Benjamin Zymler, relator do processo na Corte de Contas, a expandir o escopo de análise com o objetivo de “sugerir” ao Ministério da Saúde (MS) alguns “apontamentos para correção de rumos”, a começar pela atuação do Comitê de Operações de Emergência em Saúde Pública (COE). Para o ministro Zymler, uma das principais unidades da estrutura de governança do MS para o enfrentamento da pandemia, se não a principal, “parece não estar exercendo o papel de articulação e coordenação (que lhe cabe) na prática”. O ministro foi elegante na crítica.

O TCU também destacou o “enfraquecimento da função de comunicação” do governo com a sociedade pelo fim das coletivas de imprensa diárias, o que configura uma violação do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus. Sem o norte dado pelo poder central, tanto a sociedade como os governos locais ficam mais suscetíveis à inconsistência de informações sobre políticas públicas, o que, em se tratando de uma crise de saúde, é muito grave.

Mais grave, porém, é a falta de critérios técnicos claros para o repasse dos bilionários recursos da União aos entes federativos, o que sugere que motivações políticas do presidente Bolsonaro podem ter preponderado na hora de definir para onde iria o dinheiro. Os casos do Pará e do Rio de Janeiro são os mais alarmantes.

Os dois Estados estão entre os três com a maior taxa de mortalidade por covid-19 do País (31,4 e 28,1 mortos por 10 mil habitantes, respectivamente), mas estão entre os três que menos receberam recursos da União para enfrentar a pandemia. O que explica uma aberração dessas? As desavenças de Jair Bolsonaro com os governadores Helder Barbalho (MDB) e Wilson Witzel (PSC)? Será este o espírito que anima o presidente da República? É conhecido seu desdém pela gravidade da pandemia e sua diferença de visão, por assim dizer, em relação às ações de muitos governadores. Daí a ignorar a mortandade nos dois Estados e deixá-los com magros recursos vai uma enorme distância.

Até o dia 25 de junho, menos de um terço dos R$ 39 bilhões que foram alocados ao MS para enfrentamento da pandemia – ou seja, R$ 11,4 bilhões – tinha sido utilizado pelo governo. Números que traduzem um inaceitável descaso.

A má gestão pode ser mais perniciosa do que a escassez de recursos públicos. A boa administração de parcos recursos é capaz de produzir melhores resultados do que a incúria em cenário de abundância. Em situações de crise, como agora, o quadro é particularmente mais grave. No curso de uma emergência sanitária, malversação ou demora na alocação desses recursos em ações de socorro à população podem significar vida ou morte para milhões de pessoas. Diante disso, não surpreende que cada vez menos gente se mostre escandalizada pelo uso da palavra “genocídio” pelo ministro Gilmar Mendes, do STF.

Desafortunadamente, o País é presidido por alguém inepto como Jair Bolsonaro no momento em que enfrenta a mais mortal crise sanitária em mais de um século. Uma tragédia dentro da tragédia. Nunca se saberá ao certo qual seria a história da pandemia de covid-19 no Brasil caso o presidente fosse outro, alguém minimamente cioso de suas responsabilidades, empático e capaz de inspirar e liderar seus concidadãos nesta hora grave. À Nação só resta refletir, amadurecer e evoluir no processo de escolha de seus líderes. É este o curso natural da democracia.