Às vezes, acho que estou preso numa Matrix bolsonarista. Matrix é o nome de um filme muito discutido no mundo. O personagem Neo (Keanu Reeves) descobre que vive num mundo de sonhos. Seu corpo físico está dentro de um casulo, ao lado de outros casulos nos quais as pessoas sonham sua existência. Elas foram colocadas nesses casulos por senhores robôs, para que tenham vidas de sonhos e se sintam em paz.
O governo Bolsonaro transcorreu, em sua maior parte, durante a pandemia, que limita nossos movimentos, reduz contatos físicos e, com seus ataques intermitentes, impede o planejamento do trabalho.
Em vez de sonhos, quase todos os dias Bolsonaro nos oferece algo muito errado para que possamos exercitar nosso bom senso. Ele posta pornografia e pergunta o que é golden shower, ele imita pessoas morrendo de falta de ar, combate vacinas, insulta jovens repórteres, aparece emporcalhado de farinha e anuncia que arrotou — enfim, é um repertório inesgotável para que possamos ter algo a condenar, expressando um pouco de sensatez, antes que caia a noite e descansemos para a indignação do dia seguinte.
Tudo isso se passa num contexto em que nossas vidas são atropeladas por um turbilhão de notícias, um tsunami de embates virtuais, um incessante toque do celular, anunciando que algo de novo chegou.
No passado, era mais fácil. Lembro-me de que acordava bem cedo, lia todos os jornais para fazer a pauta do JB. Saia para almoçar no Degrau, onde sempre estava o cronista Carlinhos de Oliveira, e, de vez em quando, Tom Jobim falava longamente de passarinhos.
Tinha lido todas as notícias do dia, no entanto, a tarde parecia leve. Às vezes, surgia uma ou outra coisa nova, mas a vida não se prendia ao fluxo de notícias on-line.
Agora, às vezes acordo com o pensamento acelerado. E pela manhã, algumas palavras soltas surgem na consciência como um fio de cabelo na boina. É como se ideias e palavras trepidassem incessantemente numa máquina de lavar, e algumas são respingadas para fora do cilindro.
Outro dia, comprei um estabilizador de câmeras de vídeo. Custei a aprender a balancear a câmera em três eixos diferentes. Começava a ver as instruções e me distraía com alguma outra coisa no YouTube. Percebi que estava com um ligeiro déficit de atenção.
Nada de muito grave, mas é algo que ameaça meus planos. Pretendo focar na questão planetária, desejo ler alguns autores do século XX que levaram anos para escrever seus livros.
Alguns grandes atletas costumam interromper suas temporadas para cuidar da saúde mental.
Não é o caso de muitos de nós. Temos de consertar o pneu com a bicicleta em movimento.
É preciso desacelerar. Um grande avanço seria tirar o Bozo da sala, é indiscutível. No entanto, os mecanismos que nos levam a viver apenas em sonhos são muito poderosos e transcendem aos males de um governo vulgar e doentio.
Todas as semanas, aparece no telefone a média de horas em que estivemos on-line. Seis, sete horas, quase sempre o espaço de uma jornada de trabalho.
O problema não é só a duração, mas o permanente salto de um tema para outro, a dispersão.
Quando eu era menino, passava em Juiz de Fora uma série de filmes de Tom Mix. Era um por semana. Hoje, ligo a TV, e há mais de 500 opções de filmes e documentários.
Não tenho a fórmula da chamada pílula vermelha, que liberta os prisioneiros da Matrix. Arrisco-me apenas a dizer que, se a vida de sonhos provoca um déficit de atenção, o caminho da liberdade é excluir o supérfluo e buscar a atenção plena.
Não me perguntem como e quando isto é alcançado. É quase o mesmo que perguntar por quem os sinos dobram.
Assim como aquele grande movimento do slow food no fim do século, aconselhando as pessoas a comer devagar, em algum momento, seremos chamados a desacelerar. Talvez tenha chegado esse momento.
Há um filme sobre uma peça de teatro que pretende contar a Revolução Francesa.
Na primeira cena, o rei e a rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. A plateia reclama, dizendo que a revolução deve ser contada de outro modo.
Outra encenação, com outros argumentos, digamos assim, “lineares”, e novamente a plateia protesta.
Vem, então, uma nova encenação. Passa-se na casa de caça de um palácio.
Aparece uma bacia com água quente, uma camponesa prestes a dar à luz e a parteira pronta para o ato.
Na sequência, entra o aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida, olha de soslaio para a grávida e… lava suas botas sujas na bacia destinada ao parto.
Desdém, deboche e desprezo.
“Pronto”, alguém grita da plateia, “é assim que se conta a origem da Revolução; assim se resgata a capacidade de indignação”.
Quando o mal se banaliza, perde-se a capacidade de indignação, diz-se. A morte do congolês Moïse Kabogambe é difícil de ser contada. Difícil até de se falar. A sangria do cotidiano nos banalizou.
Há vários modos de falar de um assunto. Assim como há vários modos de contar a revolução francesa.
Uma delas é mostrar algo que provoca a indignação. A lavagem das botas sujas na água do parto aponta para o ponto de estofo. Aquilo que nos sobressalta.
São muitas as botas lavadas nas águas do parto. Essa foi mais uma. Até quando?
“Pronto”, alguém grita da sociedade. Que não seja uma indignação no varejo e uma alienação no atacado. Sim, porque talvez estejamos nessa situação por causa do olhar meramente varejista.
Falta o atacado.
Quando se ouve um homem falar no seu amor pelo seu país, pode-se estar certo de que ele espera ser pago por isso
H. L. Mencken
Antonioni já era um grande mito do cinema, quando o conheci em Roma. Depois de alguns encontros casuais acabei convidado a ir à sua casa, jogar conversa fora. Lá, achei que conheceria Monica Vitti, já pelo fim de um casamento que produzira, além de felicidade conjugal, um dos mais extraordinários ciclos do cinema moderno europeu: “Aventura”, “A noite” e “O eclipse”. Depois, Antonioni apareceu pelo Brasil no início dos anos 2000 com uma nova e jovem mulher, e jantou uma noite em minha casa, quando lhe apresentei a Caetano Veloso e mostramos suas canções a ele.
Em Roma, eu havia me perturbado com a ausência de Monica Vitti na conversa. Como não tinha intimidade para perguntar por ela, esperei fingindo desinteresse. Finalmente, ela foi buscar alguma coisa na sala, acho que um cinzeiro. A cabeça sempre baixa, Monica Vitti entrou e saiu do cômodo sem olhar e muito menos falar com ninguém.
Nunca mais a vi e Antonioni acabou morrendo em 2007, aos 94 anos de idade. Ele ainda defendeu, num Festival de Veneza, o filme mal compreendido de Glauber Rocha, “A idade da Terra”, de 1980. Separada de Michelangelo, Monica Vitti se casara com Roberto Russo, também cineasta, na companhia de quem viveu o resto de sua vida, morrendo essa semana vitima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) agravado pelo Mal de Alzheimer. Ou vice versa, não sei.
Claro que Bolsonaro não vai manifestar nenhum sentimento pela passagem da grande atriz. Assim como não havia se manifestado por ocasião do desaparecimento de tantos brasileiros inesquecíveis desde Aldir Blanc, nessa maldição do vírus que nos consome e do insensível negacionismo genocida do poder público. O Brasil, de quem sempre se enalteceu a cordialidade, que foi sempre o país dos que sabem rir de tudo, talvez esteja usando o horror desses tempos para revelar a fragilidade da versão. A pressão da pandemia nega a confirmação de valores “humanistas”, a favor de um arranjo mal equilibrado entre “bem” e “mal”, considerando as circunstâncias como razão primeira de nosso comportamento.
Para nós, que sempre tivemos prazer em divulgar o caráter carnavalesco do país, são dolorosas a perseguição e a censura social a sambas e marchinhas que reproduzem nossa cultura de uma época. Sempre curtimos essas canções, deixando o comportamento social do passado no passado, como lembrança do que o mundo já foi. Shakespeare, Dostoiévski, Proust, essa gente já cometeu esses mesmos enganos, sem que fôssemos obrigados a cancelar peças, romances, poemas. Hoje, eu não deixaria de cantar nunca que “o teu cabelo não nega”, “qual é o pente que te penteia”, “branco é branco, preto é preto, mas a mulata é a tal”, esses elogios enviesados, tão avançados em comparação ao resto do mundo.
O que não podemos admitir é o que três maloqueiros acabam de fazer com o filho de refugiados congoleses, num quiosque na Barra da Tijuca. Não há o que possa justificar punição como essa, mesmo que Moïse estivesse em busca de uma cerveja ou qualquer outro produto a que ele não tinha direito, como declaram os acusados. Cada paulada das que vimos na televisão bateu em nossas costas, cabeças e corpos, admitindo que há tempos não somos mais o país do carnaval e da cordialidade.
Está certo, nem tudo é culpa de Bolsonaro. Mas foi seu governo de violência, bagunça agressiva e restrições que preparou esse pesadelo. Nas eleições desse ano, vamos afastá-lo de onde se encontra. Mas levaremos muito tempo para recolocar o Brasil no rumo que lhe cabe, carnavalesco e cordial. A grande tarefa dos democratas brasileiros será a de fazer superar esse mau sonho e se preparar para refazer o que eles destruíram — refazer o Brasil para que possamos mudá-lo, em direção ao espírito dos costumes e do comportamento com que nossas canções sempre sonharam.
Comecemos pelos conceitos. Segundo Max Weber, partidos políticos são associações que visam determinado fim, seja a realização de um plano objetivo com intuitos materiais ou ideais, seja um projeto pessoal, “destinado a obter benefícios, poder e, consequentemente, glória para os chefes e sequazes”, ou então tudo isso junto. Os “partidos de notáveis” surgem na Europa e nos Estados Unidos na primeira metade do século XIX, inicialmente na Inglaterra, que tem o parlamento mais antigo, com o Reform Act de 1832; e os “partidos de organização de massa”, do final do século XIX, com os partidos socialistas da Alemanha (1875), Itália (1892), Inglaterra (1900) e França (1905). Após a Segunda Guerra Mundial, com a ampliação da democracia representativa e os novos meios de comunicação de massa, ambos os modelos passam a ter características de partidos eleitorais de massa, mais preocupados em ampliar sua influência do que representar as ideias e/ou os setores dos quais se originaram.
Com o surgimento da internet e a formação de redes sociais, na chamada sociedade pós-moderna, tudo isso foi posto em xeque, provocando uma reação das instituições da democracia representativa e dos próprios partidos. A eleição de Barack Obama, nos Estados Unidos, de certa forma, foi um marco dessa capacidade de assimilação dos partidos. Outro, no sentido contrário, a fragmentação partidária na Europa. Entretanto, não existe democracia representativa sem partidos políticos. Mesmo os movimentos antissistema que surgiram com a crise da democracia representativa acabam convergindo para o sistema partidário, em razão das disputas eleitorais.
Aqui no Brasil, no Império, os partidos foram grandes protagonistas da construção do Estado moderno e da integridade territorial; entretanto, são responsáveis também pela forte herança escravocrata e a formação de oligarquias na República Velha. Mesmo depois da Revolução de 1930, muita coisa mudou na política para continuar como antes. A partir da Constituição de 1988, as oligarquias encontraram um novo caminho de sobrevivência na proliferação de partidos, decorrente da existência do fundo partidário com recursos públicos. Entretanto, o modelo de financiamento das campanhas eleitorais continuava sendo o secular “caixa dois”, com origem no superfaturamento de obras e serviços, no desvio de recursos públicos e na distribuição de propina em larga escala, que desvirtuaram as “doações eleitorais”.
A casa caiu com o escândalo da Petrobras e a Operação Lava-Jato. A jornalista Malu Gaspar, no livro A organização, a Odebrecht e o esquema de corrução que chocou o mundo (Companhia das Letras), desnuda o grau de sofisticação e amplitude da corrupção na nossa política. Na sociedade, a reação a isso se deu a partir das manifestações populares de 2013, com a emergência de movimentos cívicos e narrativas antissistema, que resultaram no impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, e na eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, um tsunami eleitoral, que gerou o desgoverno atual e um Congresso piorado.
Com a captura da Mesa da Câmara e, depois, do Orçamento da União pelo Centrão, PP, PL e Republicanos, principalmente, passaram a ser o eixo de sustentação do governo Bolsonaro no Congresso. Para se perpetuar os atuais mandatos, surgiram as bilionárias “emendas de relator”, também chamadas de “orçamento secreto” (no ano passado, foram R$ 16,9 bilhões; neste ano, serão R$ 16,2 bilhões em emendas), fora as emendas individuais (R$ 10,5 bilhões) e de bancada (R$ 5,7 bilhões). E, também, aumentaram o fundo eleitoral para R$ 4,9 bilhões, distribuídos de acordo com representação na Câmara. A redução drástica do número de candidatos e a possibilidade de fusões e formação de federações partidárias facilitam a concentração desses recursos nos atuais mandatários, desequilibrando a disputa eleitoral e obstruindo a renovação política dentro e entre os partidos. Até as pré-candidaturas à Presidência são desestimuladas e esvaziadas para concentrar recursos.
Controladores das legendas e bancadas federais promovem uma espécie de corrida do ouro, num jogo de cartas marcadas. O ex-deputado Miro Teixeira, estudioso do sistema eleitoral, está horrorizado com o volume de recursos utilizados no “mercado” de formação de nominatas. “Nunca houve tanta promessa de dinheiro para os candidatos”. Surge uma “partidocracia”, formada por chefes políticos e parlamentares que querem monopolizar o poder político e a participação na vida política organizada da sociedade. É uma contradição com a existência das redes sociais e a capacidade de organização da sociedade de forma autônoma e virtual. Para isso, seria preciso também monitorar, controlar, manipular e centralizar a relação dos partidos nessas redes. Em síntese, a “partidocracia” promove o aggiornamento das oligarquias tradicionais. Os exemplos estão em quase todos os nossos partidos, basta procurá-los em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.