quinta-feira, 7 de novembro de 2024
Na nova eleição de Trump, o triunfo da perversidade
“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” Nunca pensei que um dia diria isso, mas a Dilma tinha razão. Nessa eleição, não houve ganhadores ou perdedores: todos perderam. Mesmo que Kamala Harris tivesse saído vitoriosa (o que teria sido, antes de tudo, um alívio imenso), a realidade é que seria impossível ignorar a quantidade de eleitores americanos – "estadunidenses" – que considerou normal votar em Donald Trump. Ou, dito de outra forma, que achou, e ainda acha, Donald Trump normal.
(Aliás: chamar “americano” de “estadunidense” é o tipo de preciosismo que ajuda a eleger trumps. É desnecessário, é ridículo e, sobretudo, como todo jargão identitário, é divisivo, uma sinalização de virtude cultural acintosa. Ninguém jamais se confundiu, ninguém jamais pensou num mexicano, num canadense ou num sul-americano ao ouvir “americano”. Todo mundo sabe que americano é americano – “O americano tranquilo”, “Um americano em Paris”, “Pastoral americana”. Me avisem quando começarem a cantar “Tu vuò fà lo statunitense”.)
Essas eleições não foram sobre esquerda ou direita, dois rótulos gastos e cada vez mais irrelevantes; foram sobre duas formas de se estar no mundo, sobre os limites do que se entende por sociedade, civilização, decência.
O problema de Donald Trump não é ser de direita – é todo o resto. O problema dos seus eleitores não é serem de direita – é aceitarem que para o seu candidato não existem regras no jogo, e que um homem despreparado, rancoroso e desprovido de empatia pode ser líder, não apesar das suas falhas, mas justamente por elas.
Estão comemorando, sem se dar conta da derrota geral, universal mesmo, que representa essa vitória.
Foi fácil entender quem elegeu Trump pela primeira vez. Já em 1959, aqui no Brasil, Cacareco, rinoceronte carioca emprestada ao zoológico paulista, teve mais de 100 mil votos para a Assembleia, superando qualquer outro candidato. É lógico que os eleitores que escreveram “Cacareco” nas cédulas não achavam que ela podia fazer um bom trabalho; apenas tinham certeza de que ninguém na disputa os representava, e deram sua opinião sincera sobre o establishment.
Em 2016 Trump era um Cacareco, um voto de protesto que podia ser justificado pela alienação do eleitorado e pela escolha de Hillary Clinton pelo Partido Democrata.
A reeleição de Trump agora, em 2024, é mais difícil de entender. Ele conduziu uma política isolacionista que diminuiu os Estados Unidos no cenário internacional, fez uma administração catastrófica da pandemia, incitou a invasão do Capitólio. Sabemos o que pensa. Seu caráter é conhecido – ele é visceralmente mau, e não faz esforço algum para disfarçar a falta de compromisso com qualquer virtude.
Uma coisa é um voto de protesto numa figura pública duvidosa, outra é o voto num homem tão reconhecidamente perverso. Achar graça de Trump ainda podia ser compreensível em 2016; não em 2024. A sua reeleição esvazia o argumento do Cacareco, e desfaz a narrativa reconfortante que, da primeira vez, ele foi eleito quase que por acaso.
Não, o eleitor não é inocente.
(Aliás: chamar “americano” de “estadunidense” é o tipo de preciosismo que ajuda a eleger trumps. É desnecessário, é ridículo e, sobretudo, como todo jargão identitário, é divisivo, uma sinalização de virtude cultural acintosa. Ninguém jamais se confundiu, ninguém jamais pensou num mexicano, num canadense ou num sul-americano ao ouvir “americano”. Todo mundo sabe que americano é americano – “O americano tranquilo”, “Um americano em Paris”, “Pastoral americana”. Me avisem quando começarem a cantar “Tu vuò fà lo statunitense”.)
Essas eleições não foram sobre esquerda ou direita, dois rótulos gastos e cada vez mais irrelevantes; foram sobre duas formas de se estar no mundo, sobre os limites do que se entende por sociedade, civilização, decência.
O problema de Donald Trump não é ser de direita – é todo o resto. O problema dos seus eleitores não é serem de direita – é aceitarem que para o seu candidato não existem regras no jogo, e que um homem despreparado, rancoroso e desprovido de empatia pode ser líder, não apesar das suas falhas, mas justamente por elas.
Estão comemorando, sem se dar conta da derrota geral, universal mesmo, que representa essa vitória.
Foi fácil entender quem elegeu Trump pela primeira vez. Já em 1959, aqui no Brasil, Cacareco, rinoceronte carioca emprestada ao zoológico paulista, teve mais de 100 mil votos para a Assembleia, superando qualquer outro candidato. É lógico que os eleitores que escreveram “Cacareco” nas cédulas não achavam que ela podia fazer um bom trabalho; apenas tinham certeza de que ninguém na disputa os representava, e deram sua opinião sincera sobre o establishment.
Em 2016 Trump era um Cacareco, um voto de protesto que podia ser justificado pela alienação do eleitorado e pela escolha de Hillary Clinton pelo Partido Democrata.
A reeleição de Trump agora, em 2024, é mais difícil de entender. Ele conduziu uma política isolacionista que diminuiu os Estados Unidos no cenário internacional, fez uma administração catastrófica da pandemia, incitou a invasão do Capitólio. Sabemos o que pensa. Seu caráter é conhecido – ele é visceralmente mau, e não faz esforço algum para disfarçar a falta de compromisso com qualquer virtude.
Uma coisa é um voto de protesto numa figura pública duvidosa, outra é o voto num homem tão reconhecidamente perverso. Achar graça de Trump ainda podia ser compreensível em 2016; não em 2024. A sua reeleição esvazia o argumento do Cacareco, e desfaz a narrativa reconfortante que, da primeira vez, ele foi eleito quase que por acaso.
Não, o eleitor não é inocente.
A maioria aterrorizante
Este país queria Donald Trump e sua promessa de liderança e força. Os Estados Unidos queriam o radicalismo, a brutalidade e a clareza que Trump exala. Trump não é um acidente de percurso na história, o país tomou uma decisão consciente. O poder dele se baseia na vontade de uma maioria aterrorizante.
Süddeutsche Zeitung, maior jornal diário na Alemanha
Vitorioso de novo, Trump não é um acidente da história
Em 16 de junho de 2015, Donald Trump, milionário da construção civil e celebridade da mídia com seu programa "O Aprendiz", anunciou das escadas rolantes de sua dourada Trump Tower que iria se candidatar à Presidência dos EUA. Muita gente achou que não passava de mais um de seus lances para valorizar sua imagem e aumentar sua fama.
Nos primeiros meses, houve até um debate no meio jornalístico sobre se a imprensa deveria cobrir sua campanha na seção de política ou de entretenimento.
Depois de sua vitória em 2016 e nos anos seguintes, muitos passaram a considerá-lo um acidente da história, um tropeço passageiro na sólida caminhada da democracia americana prestes a celebrar 250 anos em 2026.
Agora, com sua recondução para um novo mandato, parece claro que essa interpretação é equivocada e ingênua. Trump representa vigorosamente o pensamento e as convicções de uma porcentagem significativa da população do país: de 25 a 33% dos cidadãos com direito a voto e cerca da metade dos que efetivamente exercem esse direito.
Mais ainda: ele não é um raio em céu azul. Trump é apenas o mais recente e bizarro caso de uma linhagem de populistas e demagogos de extrema direita que tiveram o apoio de dezenas de milhões de americanos ao longo da história. Ele não é causa, mas sim consequência das ações e crenças dessas pessoas.
Por exemplo, em 20 de fevereiro de 1939, no mesmo Madison Square Garden em Nova York onde Trump fez seu último grande comício de campanha deste ano, a organização America First juntou 20 mil pessoas para ouvirem discursos antissemitas e pró-germânicos em que os oradores falavam de um pódio com a imagem atrás de si de George Washington cercado de suásticas.
Nos anos 1940, os programas de rádio do padre Charles Coughlin, que também pregava o antissemitismo, tinham audiência estimada em 30 milhões de pessoas, quando a população do país era de 130 milhões.
Na época, o principal porta-voz do movimento America First era o aviador Charles Lindbergh, um dos maiores ídolos nacionais na primeira metade do século passado, que havia sido condecorado pelo regime de Adolf Hitler e chegou a ser seriamente considerado para ser candidato à Presidência do país pelo Partido Republicano.
Em 1968, o governador racista do Alabama, George Wallace, e seu colega de chapa por um partido independente, general Curtis LeMay (que defendia o uso de bombas nucleares contra o Vietnã até reduzir aquele país à Idade da Pedra), conseguiram 14% dos votos populares e 46 dos 538 votos do Colégio Eleitoral.
Os exemplos recentes ou mais antigos se multiplicam: as leis de apartheid que permaneceram vigentes em estados do sul do país até os anos 1960; a Ku Klux Klan, movimento que sobrevive até hoje, responsável por incontáveis atos de terrorismo e de assassinatos e linchamentos de negros, judeus e católicos; a perseguição a comunistas liderada por Joe McCarthy nos anos 1950.
Trump e seus apoiadores são continuadores dessa tradição americana, que é minoritária na sociedade, mas não é desprezível nem numericamente nem do ponto de vista de influência e poder político.
Vários estudiosos importantes, como Steven Levitsky (de Harvard), estudam a atual distopia americana e alertam para a possibilidade da ruptura da democracia nos EUA no bojo da onda de ressentimento de pessoas brancas radicais que empoderam Trump e o veem como o líder capaz de resolver os seus problemas.
Esse movimento autoritário, extremista e discriminatório subsiste há séculos e não acabará enquanto suas causas mais profundas não forem entendidas e as instituições não se equiparem para combatê-las e as superarem.
Nos primeiros meses, houve até um debate no meio jornalístico sobre se a imprensa deveria cobrir sua campanha na seção de política ou de entretenimento.
Depois de sua vitória em 2016 e nos anos seguintes, muitos passaram a considerá-lo um acidente da história, um tropeço passageiro na sólida caminhada da democracia americana prestes a celebrar 250 anos em 2026.
Agora, com sua recondução para um novo mandato, parece claro que essa interpretação é equivocada e ingênua. Trump representa vigorosamente o pensamento e as convicções de uma porcentagem significativa da população do país: de 25 a 33% dos cidadãos com direito a voto e cerca da metade dos que efetivamente exercem esse direito.
Mais ainda: ele não é um raio em céu azul. Trump é apenas o mais recente e bizarro caso de uma linhagem de populistas e demagogos de extrema direita que tiveram o apoio de dezenas de milhões de americanos ao longo da história. Ele não é causa, mas sim consequência das ações e crenças dessas pessoas.
Por exemplo, em 20 de fevereiro de 1939, no mesmo Madison Square Garden em Nova York onde Trump fez seu último grande comício de campanha deste ano, a organização America First juntou 20 mil pessoas para ouvirem discursos antissemitas e pró-germânicos em que os oradores falavam de um pódio com a imagem atrás de si de George Washington cercado de suásticas.
Nos anos 1940, os programas de rádio do padre Charles Coughlin, que também pregava o antissemitismo, tinham audiência estimada em 30 milhões de pessoas, quando a população do país era de 130 milhões.
Na época, o principal porta-voz do movimento America First era o aviador Charles Lindbergh, um dos maiores ídolos nacionais na primeira metade do século passado, que havia sido condecorado pelo regime de Adolf Hitler e chegou a ser seriamente considerado para ser candidato à Presidência do país pelo Partido Republicano.
Em 1968, o governador racista do Alabama, George Wallace, e seu colega de chapa por um partido independente, general Curtis LeMay (que defendia o uso de bombas nucleares contra o Vietnã até reduzir aquele país à Idade da Pedra), conseguiram 14% dos votos populares e 46 dos 538 votos do Colégio Eleitoral.
Os exemplos recentes ou mais antigos se multiplicam: as leis de apartheid que permaneceram vigentes em estados do sul do país até os anos 1960; a Ku Klux Klan, movimento que sobrevive até hoje, responsável por incontáveis atos de terrorismo e de assassinatos e linchamentos de negros, judeus e católicos; a perseguição a comunistas liderada por Joe McCarthy nos anos 1950.
Trump e seus apoiadores são continuadores dessa tradição americana, que é minoritária na sociedade, mas não é desprezível nem numericamente nem do ponto de vista de influência e poder político.
Vários estudiosos importantes, como Steven Levitsky (de Harvard), estudam a atual distopia americana e alertam para a possibilidade da ruptura da democracia nos EUA no bojo da onda de ressentimento de pessoas brancas radicais que empoderam Trump e o veem como o líder capaz de resolver os seus problemas.
Esse movimento autoritário, extremista e discriminatório subsiste há séculos e não acabará enquanto suas causas mais profundas não forem entendidas e as instituições não se equiparem para combatê-las e as superarem.
Bolsonaro, chega de enganação. Vai procurar o que fazer!
“O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, disse Juracy Magalhães, embaixador do Brasil em Washington, nomeado pelo general Humberto Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura militar de 64. A frase ainda ressoa.
O Brasil, à época da guerra fria, quando o mundo estava dividido em dois blocos – um sob o comando dos Estados Unidos, o outro sob o comando da União Soviética –, era mais uma ditadura militar a instalar-se na América Latina, a mais importante delas.
Os militares haviam dado o golpe a pretexto de salvar o país do comunismo. E parte dos políticos que aderiu ao golpe acreditou que a democracia seria restabelecida a tempo de realizar uma nova eleição presidencial dali a um ano. Ela aconteceu 25 anos depois.
Se dependesse de Bolsonaro, filhote da ditadura, a democracia não teria sido restabelecida tão cedo. E para seu gosto, teria torturado e matado muito mais gente do que torturou e matou. Quem o disse foi ele mesmo em discursos e entrevistas disponíveis no Youtube.
Agora, com a volta de Trump à Casa Branca, o que Bolsonaro passou a dizer? Não pegaria bem para ele simplesmente plagiar Magalhães. De resto, a frase de Magalhães pode escapar ao seu conhecimento. Raso como um pires e autocentrado, ele então diz:
– O Trump agora tem maioria no Senado. […] Nós partiremos para uma revolução em 2026. Podemos ter, sim, uma bancada enorme de senadores e deputados, agregando outros partidos do nosso lado. Tem tudo para acontecer.
Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o Zero Três, ousa ir mais adiante do pai. E a respeito de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do inquérito sobre o fracassado golpe do 8 de janeiro, afirma sem pestanejar:
– Vai ser colocado uma espécie de freio [nele]. Você acha que o Alexandre de Moraes vai comprar briga com o ministro Elon Musk?!
Dono do X, Musk deverá ocupar um cargo importante no novo governo de Trump. Moraes tirou o X do ar no Brasil porque Musk descumpriu ordens da justiça brasileira. Eduardo imagina que a inelegibilidade do seu pai será revertida em breve.
Doravante, não só Musk se daria ao trabalho de pressionar Moraes em favor de Bolsonaro: Trump também o faria. O que Moraes e seus colegas acham disso? Eles acham graça. Têm mais o que fazer do que dar trela à família Bolsonaro.
Trump é um fenômeno político, goste dele ou não. Bolsonaro não passa de uma caricatura grosseira de Trump. Por quatro anos, Trump manteve-se à tona e está de volta. Bolsonaro foi o único presidente brasileiro que não se reelegeu e que poderá ser preso.
O que possa ser bom para os Estados Unidos deixou de ser necessariamente bom para o Brasil.
O Brasil, à época da guerra fria, quando o mundo estava dividido em dois blocos – um sob o comando dos Estados Unidos, o outro sob o comando da União Soviética –, era mais uma ditadura militar a instalar-se na América Latina, a mais importante delas.
Os militares haviam dado o golpe a pretexto de salvar o país do comunismo. E parte dos políticos que aderiu ao golpe acreditou que a democracia seria restabelecida a tempo de realizar uma nova eleição presidencial dali a um ano. Ela aconteceu 25 anos depois.
Se dependesse de Bolsonaro, filhote da ditadura, a democracia não teria sido restabelecida tão cedo. E para seu gosto, teria torturado e matado muito mais gente do que torturou e matou. Quem o disse foi ele mesmo em discursos e entrevistas disponíveis no Youtube.
Agora, com a volta de Trump à Casa Branca, o que Bolsonaro passou a dizer? Não pegaria bem para ele simplesmente plagiar Magalhães. De resto, a frase de Magalhães pode escapar ao seu conhecimento. Raso como um pires e autocentrado, ele então diz:
– O Trump agora tem maioria no Senado. […] Nós partiremos para uma revolução em 2026. Podemos ter, sim, uma bancada enorme de senadores e deputados, agregando outros partidos do nosso lado. Tem tudo para acontecer.
Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o Zero Três, ousa ir mais adiante do pai. E a respeito de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do inquérito sobre o fracassado golpe do 8 de janeiro, afirma sem pestanejar:
– Vai ser colocado uma espécie de freio [nele]. Você acha que o Alexandre de Moraes vai comprar briga com o ministro Elon Musk?!
Dono do X, Musk deverá ocupar um cargo importante no novo governo de Trump. Moraes tirou o X do ar no Brasil porque Musk descumpriu ordens da justiça brasileira. Eduardo imagina que a inelegibilidade do seu pai será revertida em breve.
Doravante, não só Musk se daria ao trabalho de pressionar Moraes em favor de Bolsonaro: Trump também o faria. O que Moraes e seus colegas acham disso? Eles acham graça. Têm mais o que fazer do que dar trela à família Bolsonaro.
Trump é um fenômeno político, goste dele ou não. Bolsonaro não passa de uma caricatura grosseira de Trump. Por quatro anos, Trump manteve-se à tona e está de volta. Bolsonaro foi o único presidente brasileiro que não se reelegeu e que poderá ser preso.
O que possa ser bom para os Estados Unidos deixou de ser necessariamente bom para o Brasil.
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