sexta-feira, 10 de março de 2023

A muamba de Bolsonaro

O caso das joias presenteadas a Bolsonaro pela Arábia Saudita, trazidas na moita para o Brasil, está recheado de estrelas —nas fardas que seus protagonistas usam ou usavam até havia pouco.

O regalo milionário foi entregue ao então ministro das Minas e Energia de Bolsonaro, Bento Albuquerque, ex-almirante de esquadra. Almirante de esquadra é o segundo posto mais alto da Marinha, com quatro estrelas e uma poderosa âncora na insígnia. As joias viajaram de Riad a Guarulhos na mochila do guarda-marinha Marcos André Soeiro. Guarda-marinha é um aluno da Escola Naval prestes a se tornar segundo tenente.

Apreendida a muamba pela Receita Federal, apressou-se liberá-la o contra-almirante José Roberto Bueno Junior. Um contra-almirante tem duas estrelas e, idem, uma âncora na insígnia, mas isso não comoveu a Receita. Entrou em ação o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro. Um tenente-coronel está a dois passos do generalato, e Cid ainda tem o privilégio de usar Glostora no cabelo e farda com gravata-borboleta. Pois voltou de mãos abanando. Outro encarregado de peitar a Receita foi Jairo Moreira da Silva, primeiro-sargento da Marinha. Debalde.

Dois elementos da própria Receita instruídos por Bolsonaro para resolver o problema também se frustraram. Mas ganharam cargos fictícios nas embaixadas de Paris e Dubai, em atos assinados pelo ex-general e vice-presidente Hamilton Mourão na ausência de Bolsonaro, que fugira para a Flórida a dois dias do fim do mandato. Dia este em que um jato da FAB, com gasolina paga por você, foi de Brasília a Guarulhos com o fim exclusivo de desbloquear a batota —igualmente em vão. E Michelle Bolsonaro, cujos colo, orelhas, pescoço e braços ostentariam as joias, vem sendo municiada sobre o que dizer pelo ex-general Braga Netto.

Está certo. Pelo artigo 142, as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria.

As Forças Armadas e a política brasileira

1. Já contei neste espaço que servi no CPOR de Porto Alegre. Foi em 1992, ano do impeachment de Collor, da conferência internacional do clima no Rio de Janeiro e da demarcação das terras Yanomami. No pelotão havia um jornalzinho, eu era um dos editores, e nessas páginas lidas 30 anos depois encontro excertos do pensamento militar médio da época: nós fazíamos entrevistas em que o personagem da edição dava respostas breves, seguras o bastante para não causar problemas com a cúpula do quartel.

Assim, dá para dizer que oficiais da ativa de então - no caso, tenentes e majores que entrevistamos - se sentiam à vontade para falar publicamente de democracia (“é muito boa se funcionar”), ecologia (“importante, mas estão espetacularizando demais”), Amazônia (“eu queria ter o padrinho que os índios têm”). Diante da pergunta “qual o maior problema do Brasil e qual a solução?”, um deles retomou o tema mais sensível nos discursos que passamos o ano ouvindo tristemente, entre faxinas, guardas e sessões de Ordem Unida: “Salário dos militares. Aumento”.

O preâmbulo pessoal não é por acaso. O CPOR é uma espécie de versão resumida das Agulhas Negras, a academia que forma o oficialato brasileiro. No debate sobre a presença fardada excessiva em governos recentes, é na própria mentalidade da caserna - sua autoimagem, seu papel político autoimposto - que está parte dos argumentos. Como lembra o ótimo “Poder camuflado”, do jornalista Fabio Victor (Companhia das Letras, 446 págs.), as Forças Armadas se veem como tutoras da sociedade brasileira desde a fundação da República: às vezes na linha de frente, às vezes nos bastidores, nunca como o que a tradição francesa de tropas profissionais chama de “o grande mudo”.


2. Muita coisa mudou de 1992 para cá. Óbvio que um tenente ou major daquele tempo não representa um general de hoje, com sua experiência de comando em eventos historicamente decisivos - da missão no Haiti (iniciada no governo Lula) à intervenção na segurança do Rio (governo Temer), da relação com ministros da defesa civis (a partir de FHC) aos embates com a Comissão da Verdade (instituída por Dilma e centrada em crimes da ditadura 1964-1985). Mas não surpreende que no geral, e somando o registro do jornalzinho com as minhas lembranças, os militares sigam ligados a temas e juízos que atravessaram décadas: afinal, não houve reforma curricular nas escolas de Exército, Marinha e Aeronáutica, organizações que vivem num mundo à parte, com seus sistemas autônomos de educação, saúde, previdência, justiça.

Nesse contexto, o problema dos salários não é só um detalhe corporativista. Em 1992, o parlamentar que expressava a insatisfação da tropa a respeito era Jair Bolsonaro. Persona non grata no Exército do qual havia sido expulso, proibido de entrar em quartéis para evitar o contato dos soldados com suas ideias extremistas (o que fazia sentido numa realidade analógica), na prática ele personificava a autoestima elevada de uma casta - a mesma que até hoje considera justos institutos como a pensão vitalícia para filhas de oficiais (as do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, por exemplo, ganhavam R$ 15,3 mil por mês cada em 2021).

Um dos pontos altos de “Poder camuflado” é a genealogia dessa relação, cujas arestas foram se aparando com o tempo. Contaram aí episódios particulares, como as pazes feitas entre Bolsonaro e o general que tutelou a transição democrática dos anos 1980, Leônidas Pires Gonçalves, mas algo essencial nunca mudou: a par da forma, os pronunciamentos do então deputado do baixo clero vocalizaram anseios profundos de seus ex-colegas de farda. Questões orçamentárias tiveram peso em momentos de crise com as instituições civis, algo recorrente desde o governo Sarney, e o discurso extremista é só uma forma menos articulada, menos eufemística, de expressar o golpismo que em horas decisivas muitos oficiais superiores brasileiros não hesitaram em considerar.

3. A ascensão bolsonarista é uma história de mão dupla em relação aos militares: quem dobrou quem, e a partir de quando? O anticomunismo histórico da corporação, que durante a Guerra Fria alimentou a ditadura e na democracia virou antipetismo (com toques de udenismo antipolítica), é bastante compatível com o discurso conservador de costumes (igualmente udenista) radicalizado pelo ex-capitão na era das redes sociais. As justificativas a respeito dadas pelos entrevistados de Fabio Victor às vezes soam razoáveis, fundadas num cansaço com os escândalos de corrupção dos governos petistas, mas não resistem aos tantos fatos que as desmentem: entre eles os escândalos do governo Bolsonaro, apoiado pela imensa maioria da caserna até o fim.

Algo parecido ocorre com falas aparentemente legalistas, na boca dos mesmos oficiais que agiram contra a democracia antes e depois de 2018 - o Eduardo Villas Bôas do célebre tuíte contra o STF, o Sérgio Etchegoyen que chamou Lula de covarde na esteira do golpe frustrado do 8/1. Comentando a atuação de Celso Amorim como ministro da Defesa (governo Dilma), o mesmo Etchegoyen explica o que vê como incompatibilidade entre um chefe com origem no Itamaraty e seus então subordinados de farda: “São carreiras com linguagens completamente diferentes (...). É como o general Augusto Heleno uma vez disse: ‘Botaram um presidente do Flamengo para cuidar da torcida do Vasco.’”

Involuntariamente, a comparação acaba sintetizando a tragédia que vivemos hoje. Porque a linguagem da diplomacia é a que reproduz os fundamentos da política: o entendimento sobre a necessidade da negociação, a leitura conjuntural (interna, externa) feita a partir de debates abertos com a sociedade (sem constrangimentos hierárquicos, sem confundir adversários com inimigos). A ausência de autocrítica em relação ao que aconteceu nos anos 1960/70, um dos combustíveis da radicalização fardada na época da Comissão da Verdade, não deixa de ser decorrência desse abismo cultural: Exército, Marinha e Aeronáutica só teriam a ganhar com o próprio arejamento, em vez de seguir presos a dogmas superados pela historiografia séria, a crimes cometidos por uma geração que em bom número já morreu.

Na pequena escala do CPOR, era comum fazermos piada com a pretensão militar de querer ditar os rumos do país, já que nosso dia a dia numa de suas instituições de ensino superior era um contínuo de obtusidade, de mandonismo baseado em regras cujas justificativas eram elas mesmas. Nunca esse modo de pensar e agir foi tão escancarado como no período Bolsonaro. O resultado, que foi do catastrófico ao patético em casos como o de Eduardo Pazuello à frente da Saúde durante a pandemia, está aí para nos lembrar do que não foi feito - e quem sabe ainda possa sê-lo - para a democracia enfim calar a grande tagarelice.

De quem é a culpa pelos Bolsonaros terem chegado aonde chegaram

Teria sido tão simples liberar o estojo de joias mandado pelo governo Saudita para a ex-primeira-dama Michelle. O agente da alfândega em Guarulhos ensinou: basta comunicar às autoridades da Receita Federal em Brasília e à Presidência da República.

Tratando-se de um presente oficial de um governo para o outro, nem multa seria cobrada. Mas por que não foi assim? Porque as joias seriam incorporadas ao patrimônio do Estado. Michelle poderia usá-las, mas não ficar com elas para sempre.


Esse não era o plano de Bolsonaro quando soube que o estojo fora apreendido por não ter sido declarado. Queria apossar-se dele por seu valor – R$ 16, 5 milhões. Muito dinheiro. Nem à mulher ele informou a respeito. Bem, é o que Michelle diz. Difícil acreditar.

Um segundo estojo com joias para Bolsonaro, no valor de R$ 400 mil, entrou ilegalmente no país. Estava na bagagem de outro acompanhante do almirante Bento Albuquerque, então ministro das Minas e Energia, que se prestou ao papel de mula.

O estojo de Bolsonaro escapou à vigilância da Alfândega. E Albuquerque, embora tenha tido oportunidade, nada contou ao agente da Receita que cumpria a lei. Também não teria contado sobre as joias de Michelle se elas não tivessem sido descobertas.

É uma dedução lógica. O que só reforça a convicção dos que acham que o Brasil foi governado nos últimos quatros anos por uma gente sem escrúpulos, sem princípios, interessada em tirar vantagem em tudo, nojenta. Uma gentalha. Do ex-presidente para baixo.

Todos. O almirante que terceirizou o contrabando para se poupar; seus acompanhantes que se dispuseram a transportar as joias nas malas; o secretário da Receita Federal que se empenhou em liberá-las; assim como um tenente-coronel e um sargento da Marinha.

Espantoso? Não. Antes do seu marido abandonar o país e refugiar-se nos Estados Unidos, Michelle ordenou a um jardineiro que recolhesse as moedas jogadas pelos turistas no lago do Palácio da Alvorada. Uma vez que o episódio se tornou público…

Vieram então com a história de que as moedas – no valor total de R$ 2.213,55 – foram entregues a uma instituição de caridade. Providenciou-se até recibo. Essa gente ser como é, é problema dela. Essa gente ter chegado aonde chegou, é problema nosso.