sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Autocombustão dos Bolsonaro atrapalha Guedes

Houve um tempo em que se sabia o nome das principais lideranças políticas. Quando os políticos começaram a ir para a cadeia, foi necessário aprender a composição do Supremo Tribunal Federal, tendo o cuidado de distinguir as togas que prendem daquelas que abrem as celas. Agora, exige-se do brasileiro que aprenda os nomes dos filhos do presidente da República. Há o Carlos das brigas nas redes sociais; o Flávio da rachadinha e das conexões milicianas de Fabrício Queiroz; e o Eduardo, que não conseguiu virar embaixador e continua expondo ao país seu nanismo intelectual —agora materializado na defesa da volta do AI-5.


Jair Bolsonaro tomou posse em 1º de janeiro. A partir do dia 2, deveria oferecer paz, probidade e empregos. Com o auxílio dos filhos, entrega atritos, suspeições e um tipo de déficit muito mais grave do que a ruína fiscal —um déficit localizado entre as orelhas dos membros da dinastia Bolsonaro. Só a falta de miolos explica a defesa que Eduardo Bolsonaro fez da adoção do AI-5 como remédio contra uma hipotética radicalização de esquerda, capaz de levar às ruas do Brasil uma revolta semelhante à que eletrifica a democracia chilena.

O presidente desautorizou o filho. Mas todos sabem que ele pensa a mesma coisa. O AI-5 não será reeditado porque a democracia brasileira pode eleger os Bolsonaro, mas não os autoriza a brincar de ditadores.

A plataforma reformista do ministro Paulo Guedes enfrenta muitas dificuldades. Mas nenhuma se equipara ao processo de autocombustão da família Bolsonaro. É como se o presidente e seus filhos se dedicassem à implantação de um projeto secreto de extermínio da oposição por meio da autossabotagem. Aos pouquinhos vai ficando claro para o país que o clã Bolsonaro não é conservador. A primeira-família é apenas arcaica. Bolsonaro e os filhos não desejam levar o país para a direita. Eles ambicionam a marcha à ré.

Pensamento do Dia


É repulsivo ouvir um deputado falar de um repugnante AI-5

O deputado Eduardo Bolsonaro escancarou uma limitação política e intelectual ao expor a repulsiva visão do que é democracia para quem carrega seu sobrenome. Ao sugerir um novo AI-5, o ato institucional que fechou o Congresso em 1968 no Brasil e que abriu as portas do inferno no país, o deputado mostrou o quão arrogante e mimado é para ocupar um cargo de deputado. Em sua tresloucada entrevista para a jornalista Leda Nagle, mostrou não só que o Brasil corre perigo com ele em qualquer cargo, como também que a sua irresponsabilidade em lançar suspeitas calcadas na ignorância é infinita. Sugeriu, por exemplo, que o BNDES dos tempos do PT financiou, indiretamente, os protestos de outubro no Chile, através de manifestantes radicais, no estilo blackblocs. “Para fazer isso tudo você precisa de dinheiro. De onde vem esse dinheiro? Nós desconfiamos que esse dinheiro vem muito por conta do BNDES, que no tempo de Dilma e Lula, faziam obras superfaturadas no porto de Mariel, em Cuba, ou contrato de Mais Médicos que rendia mais de 1 bilhão reais para a ditadura cubana. Por que não achar que esses dinheiro vai se voltar para cá para se fazer essas revoluções?”.

Mais ainda, sugere que a esquerda pode chegar ao ponto de sequestrar aeronaves, e autoridades, como nos anos 60, para culminar na sua brilhante ideia de que isso vai suscitar um AI-5. “Alguma resposta vai ter de ser dada”. Deputado, filho do presidente da República, entrelinhas, revela que precisaria recorrer a um ato autoritário porque seu pai não teria competência para lidar com uma possível insatisfação social.


Na entrevista, Eduardo, se mostra chocado porque seu pai é cobrado pelo que qualquer presidente da República seria: os problemas urgentes para a sociedade, como os incêndios que tomaram a Amazônia ou o derramamento de óleo nas praias do Nordeste. O mundo para ele, porém, vive nas enquetes de redes sociais, que oferecem a profundidade de um espelho d’água. Sua cegueira e deslumbramento com o cargo de filho de um presidente não o fazem admitir o gene da auto-sabotagem que herdou do seu pai. Ambos já implodiram boa parte do capital político que lhes foi favorável nas eleições de 2018.

O jornalista José Roberto de Toledo, da revista Piauí, publicou uma análise, a partir de dados de uma pesquisa do instituto Ibope, que mostra um eleitorado arredio ao PSL, maior que ao PT. A rejeição é de 50% ao partido que acolhe hoje o presidente Bolsonaro contra 43% da legenda de Lula. Ainda que tente se descolar do partido depois das desavenças com o presidente Luciano Bivar, Bolsonaro não pode negar seu poder de Midas ao revés. Queima pontes e aliados com a mesma velocidade que subiu na preferência do eleitorado, quando surfava no antipetismo. “A impressão é que fazer aliança com Bolsonaro, em regra, é um mau negócio”, analisa Toledo.

O deputado Eduardo parece seguir a mesma linha. Acredita que melhor é investir na gestão do medo para conquistar e manter a confiança de um eleitorado, sem entender que é exatamente ao contrário. Parece que não entendeu que os heróis da Internet nascem com a mesma velocidade que morrem porque, apesar de expressarem uma imagem holográfica portentosa, são confrontados com os desafios da realidade. E as pessoas buscam pessoas humanas, que tenham empatia com suas dores e ansiedades. A frase do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi direto ao ponto. “Manifestações como a do senhor Eduardo Bolsonaro são repugnantes, do ponto de vista democrático, e têm de ser repelidas como toda a indignação possível pelas instituições brasileiras”. Maia, filho de um exilado político, torturado durante a ditadura que a família Bolsonaro exalta.

É repulsivo ouvir de um deputado que comanda a Comissão de Relações Exteriores tamanho disparate sobre as manifestações do Chile, querendo tergiversar o que está colocando o presidente Sebastián Piñera contra as cordas. Reduz os problemas do país a blackblocs supostamente financiados pela esquerda, fingindo que o modelo econômico do Chile – tomado como exemplo por ele em mais de uma ocasião – não colapsou. É chamar dois terços dos chilenos de ignorantes manipuláveis.

A fala do deputado vem, ainda, num momento emblemático. Justamente na semana em que se descobre que sua família já estava a par de que o nome do presidente seria envolvido, ainda que indiretamente, na investigação sobre a execução de Marielle Franco. Seja por má fé de seus adversários ou dos que conduzem a investigação, a família Bolsonaro sabia que uma bomba estava prestes a estourar sobre ele. E a reação às pressões do cargo é a de incendiar a própria democracia. Próprio dos pobres de espírito, dos covardes que se justificam com frases como “fui mal interpretado”, ou dos que compensam sua inconsistência com arroubos autoritários. Eduardo Bolsonaro deveria encarar este como um dos pontos mais baixos do seu mandato. Mas é impossível esperar o amadurecimento de quem se alimenta de memórias brutais que envergonham o Brasil. Ao contrário, flerta com a reedição de tempos de barbárie, para se sentir relevante. Nada mais revelador.

Qual a 'culpa' ?



O porteiro é aquele que menos tem culpa nesse novo crime
Jair Bolsonaro

Brasil, uma grande aldeia isolada do mundo

O Brasil é um país fechado. Aqui vive gente de todas as partes do mundo, mas os brasileiros não estão abertos para o mundo.

Por um lado, isso tem a ver com as dimensões continentais deste país, que forçosamente dirigem o olhar para dentro. Por outro lado, a culpa é de décadas de protecionismo econômico. Durante um certo tempo, isso fazia sentido: assim como os "tigres asiáticos", o Brasil queria proteger sua economia da concorrência dos Estados Unidos e da Europa.

A ideia era que se desenvolvessem empresas brasileiras fortes, as chamadas campeãs nacionais. Mas quando isso acabou acontecendo, as barreiras comerciais, na forma de taxas de importação altas e uma burocracia kafkiana, não foram suspensas, mas mantidas.

O resultado dessa proteção do Estado é que se criaram quase monopólios no país, como o conglomerado Ambev, que inundou o país com uma bebida feita de água, milho e química, a qual teve permissão de chamar de "cerveja", sem discussões – e sem o perigo de outra empresa colocar em risco o seu domínio.

É óbvio que monopólios são ruins. Em primeiro lugar, para o consumidor, pois permitem a uma única companhia ditar a oferta e os preços. Em segundo, para a economia nacional, pois firmas protegidas de concorrência não estão expostas a pressões inovadoras, e não investem seus lucros na melhoria dos seus produtos.


Isso resulta em maus produtos brasileiros, que não correspondem mais ao padrão tecnológico internacional. Qualquer um que já tenha estado numa loja de ferragens brasileira pode confirmar: não se acha sequer uma tomada decente. A única alternativa hoje são artigos importados, os quais, no entanto, são absurdamente caros.

Isso também fez com que a maioria das casas e apartamentos tenha aparências semelhantes. Por exemplo: as trêmulas, rangedoras e emperradas janelas de correr de alumínio. Muitos brasileiros aprenderam a se contentar com pouco, pois não têm ideia de tudo o que seria possível.

Para essa constatação, não é preciso comparar o Brasil com a Europa. Basta uma olhada em países como Colômbia ou México. Quem voa do Rio de Janeiro para Bogotá ou a Cidade do México, logo tem a sensação de ter viajado de um país do passado para a atualidade. Não tem só a ver com a oferta mais variada de mercadorias, mas também com o maior profissionalismo.
No Brasil, a população se acomoda em letargia, resignação e uma restauração conservadora
Já se nota isso na diferença entre aeroportos. O Terminal 2 do Galeão é uma catástrofe de planejamento, com uma arquitetura que força passageiros e tripulações a caminharem vários quilômetros por corredores vazios.

Isso tudo nem seria tão grave, se o protecionismo econômico do Brasil não tivesse também resultado numa rejeição mental contra muito do que é novo. Pode-se observar isso especialmente bem no Rio. Em geral, os cariocas consideram sua cidade insuperável: de fato, é difícil encontrar uma metrópole tão provinciana.

Um exemplo ao acaso? Numa área urbana de 12 milhões de habitantes, o metrô para de funcionar à meia-noite. A oferta gastronômica é comparativamente pobre. E nos supermercados do Rio, continuam se promovendo orgias de sacolas plásticas – as quais atualmente já são proibidas até em diversos países africanos. No Quênia, sua produção e venda é punida com 19 mil dólares de multa e quatro anos de prisão. No Rio, assim como no resto do Brasil, sacolas plásticas ainda são vistos como um direito humano.

A falta de visão exterior igualmente marca a política brasileira. Em Bogotá, acaba de ser eleita prefeita uma mulher abertamente lésbica; em numerosos países, políticos homossexuais não são mais nenhuma raridade. Mas no Brasil eles têm que temer pela própria vida. Aqui se elege antes um evangélico incapaz do que um gay competente.

Aliás, o país com mais mulheres no Parlamento é Ruanda, onde elas são 64%. O Brasil, por sua vez, figura nessa estatística no nível da República Islâmica do Irã; nenhum outro país da América Latina tem uma percentagem tão pequena de deputadas.

Portanto aqui falta declaradamente uma percepção de common sense. É como uma pessoa que viveu sozinha a vida toda, e não percebe quão excêntrica se tornou. Ela se considera normal e todos os outros, esquisitos. Isso fica óbvio especialmente no atual pessoal do governo.

Ministros como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Damares Alves têm óbvias deficiências cognitivas. Eles vivem em mundos paralelos e paranoicos. Em sociedades saudáveis jamais teriam chegado a posições de poder. Mas o Brasil é como uma comunidade de aldeões isolada, que escolheu como seus líderes justamente os habitantes mais agressivos, inescrupulosos e loucos.

Um indicador de quanto o Brasil está separado do próprio continente é o fato de, no momento, outros países da região parecerem estar avançando. No Equador e no Chile, milhões se levantaram contra as injustiças sociais. Os argentinos se cansaram dos experimentos neoliberais de Mauricio Macri. E a Bolívia se revolta contra o caudilhismo de esquerda de Evo Morales, o que atesta a favor do processo de amadurecimento da democracia local.

No Brasil, em vez disso, a população se acomoda em letargia, resignação e uma restauração conservadora. Um fim do protecionismo comercial e intelectual faria bem ao país.
Philipp Lichterbeck

Política na selva

A alusão a animais na propaganda política é recurso antigo dos demagogos. A imagem de ratos roendo a bandeira nacional, utilizada pelo PT em 2002, vem sendo retomada há décadas como uma maneira de desumanizar os adversários.

A publicação do presidente Jair Bolsonaro (PSL), numa rede social, de alegoria baseada no cerco de um grupo de hienas a um leão tem, no entanto, as suas peculiaridades.

Alegoria constitui, aliás, palavra sutil demais para qualificar o vídeo, que deixa muito claro, por meio de trucagens toscas, quem são as tais hienas: o Supremo Tribunal Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil, veículos da imprensa (incluída esta Folha), o PT e até o PSL, que o mandatário luta para controlar com a mão pesada do Executivo.

Tampouco resta dúvida sobre a identidade do felino rodeado pelos bichos carniceiros: presidente Bolsonaro, estampa a legenda.


No reino da Arábia Saudita, que o chefe de Estado brasileiro visitava quando o vídeo foi divulgado, o regime especializou-se não só em rugir para seus críticos. Ele os mata e trucida, como foi feito com o jornalista Jamal Khashoggi em pleno consulado saudita de Istambul (Turquia), em outubro de 2018.

Com a fantasia de rei leão, Bolsonaro talvez vislumbre a latitude dos monarcas absolutos. O traje combina com os elogios velados e explícitos que veio fazendo a aspectos tenebrosos da ditadura militar (1964-1985), seja ao longo de sua extensa carreira de deputado periférico, seja mais recentemente, como candidato e presidente.

Não combina, entretanto, com as instituições da República brasileira sob a guarda da Carta de 1988.

Onde a fábula bolsonarista vê hienas, há na verdade organizações civis e estatais incumbidas de evitar o abuso no exercício do poder de Estado. Onde vê o leão, há o chefe eleito do Executivo, submetido não a seus desejos de supremacia, mas ao império universal das leis, como qualquer outro cidadão.

O choque com essa realidade levou Jair Bolsonaro a retirar o vídeo do ar e a pedir desculpas pela postagem. É um modus operandi que, de tanto repetir-se, afasta qualquer ilusão de que o presidente esteja de fato arrependido ou que tenha se convencido das vantagens do Estado democrático de Direito —se é que foi capaz de compreendê-lo.

A mensagem do leão ameaçado vem juntar-se a outra, do início de setembro, quando Bolsonaro disse que, se levantasse “a sua borduna”, todos viriam atrás dele. São rabiscos de conclamação a forças extraconstitucionais que felizmente não vicejam no Brasil de hoje.

O primeiro presidente deste ciclo democrático a apostar no “Não me deixem só” acabou isolado e defenestrado. Que Bolsonaro consiga absorver ao menos essa lição.