segunda-feira, 22 de julho de 2019

O Brasil lava mais branco

Estou em Cananeia, que foi, ao lado de São Vicente, ali pelos anos 30 do século XVI, uma das primeiras cidades do Brasil. Seu fundador chamava-se Cosme Fernandes, mas era conhecido como Bacharel da Cananeia. Era um degredado, juntou-se com uma índia, tornou-se poderoso, não respeitava a Coroa. Um fora da lei.

Esperando a balsa em Itapitangui, soube que o ministro Toffoli proibiu investigações com dados do Coaf, sem autorização judicial. Pensei: um frêmito de alegria deve estar animando os fora da lei do Brasil. Sobretudo os que fazem lavagem de dinheiro.

Como pedir uma autorização judicial sem os dados do Coaf que a fundamentam? Lembrei-me de um poema de Vinicius: “Filhos, melhor não tê-los/ Mas se não os temos, como sabê-los?”

A propósito, a última semana foi dominada pelos filhos do Capitão. A decisão de Toffoli partiu de um pedido de Flávio Bolsonaro para deter as investigações, que, aliás, se estendem a vários deputados do Rio de Janeiro.

Isso significa, em primeiro lugar, que o caso Queiroz volta para a gaveta; o esqueleto volta para o armário. Mas revela também uma contradição no discurso de Bolsonaro.

Ele se coloca ao lado da Lavo-Jato nas investigações contra o PT, mas, no momento em que elas rondam sua família, o estado de direito precisa ser salvo. Nesse caso, surge uma convergência entre os Bolsonaro e um ministro historicamente ligado ao PT porque os objetivos são comuns.


Essa imagem de esqueleto no armário para mim é importante porque tem uma influência decisiva nos grupos partidários. Ela enfraquece as afinidades políticas e fortalece o sentido de cumplicidade. Partilham-se menos as ideias, mais os segredos.

Espantoso escrever sobre a família do presidente como se ainda estivéssemos numa monarquia. Foi esse também o impacto que me trouxe a notícia de que Eduardo Bolsonaro seria indicado para embaixador nos Estados Unidos.

Alguns entusiastas do progresso afirmam sempre que estamos muitos melhores do que nos tempos remotos da humanidade. É indiscutível. Nesse viés otimista poderia, por exemplo, consolar-me com os romanos que comentavam Calígula e seu cavalo Incitatus, nomeado senador.

Mas se o viés for saudosista, ficaria melancólico ao lembrar que o primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos foi Joaquim Nabuco, uma das figuras mais importantes de nossa história política.

O pressuposto da indicação agora é a proximidade com Trump. Acontece que uma tarefa dessas implica uma relação também com instituições, forças políticas, grupos empresariais.

Dificilmente numa república seria indicado o filho de um presidente para tal cargo. A tendência republicana é buscar um nome experiente e capaz, dada a importância da tarefa.

Nos Estados Unidos, há uma prática mais comum de indicar embaixadores sem tradição diplomática. De um modo geral, são empresários apontados pelo próprio presidente.

Trump tem utilizado muito esse recurso, que não surgiu com ele. Mas os embaixadores que apontou têm provocado polêmicas em várias partes do mundo: Alemanha, Holanda, Israel, com uma atuação política agressiva e algumas gafes.

Talvez seja inspirado em Trump e também na atuação da filha do presidente americano Ivanka que Bolsonaro pensa em dar esse passo. Ivanka acompanha o pai, sob críticas na imprensa, em alguns encontros internacionais.

Não conheço bastante o Senado de hoje para cravar uma previsão. Sei apenas que será algo difícil manter essa escolha, e ela dará margem a um grande psicodrama político.

A quantidade de memes e piadas mostra que o tema caiu no universo do humor. Dispensa grandes considerações teóricas, pois grande parte das pessoas compreende o que se passa e o expressa de uma forma muito mais criativa.

A tarefa dos senadores será considerar se esta é uma boa escolha e funcionar como um contrapeso ao poder do presidente.

Aqui no extremo meridional paulista, na histórica Cananeia, busco o consolo no passado. Estamos melhor que Roma Antiga nas nomeações e chegamos ao estágio da Suíça. Mas a Suíça do tempo em que era famosa por lavar mais branco.

Pensamento do Dia


Humilhar para governar

Que a maior autoridade da principal potência mundial seja capaz de dizer a quatro congressistas – o chamado esquadrão – um “voltem aos lugares de onde vieram” reflete, mais uma vez, a ruptura dos mais elementares limites típica da era Trump. Mas a falta de liberalismo do presidente não é o principal problema; a questão é como suas bases o seguem, que o apoiavam nessa semana aos gritos de “mande-a embora!”. As declarações de Trump são racistas e machistas, evidentemente, mas captam e amplificam com habilidade a ressonância emocional de parte da população. Nada do que o coroou como Troll Supremo dos EUA se entenderia, diz Martha Nussbaum, sem essa paixão que carcome os sistemas democráticos: a inveja.


Essa sensação de estagnação que destroça o sonho americano da mobilidade social leva muitas pessoas a culpar por seu fracasso aqueles pelos quais se sentem postergados: os imigrantes que roubam seus trabalhos e as mulheres que sobem no status social. Mas o repúdio também se dirige às elites políticas e econômicas, incluindo a imprensa, acusados também pelo populismo de esquerda de conspirar para manter o status quo. Esquecemos que incitar deliberadamente o desprezo, como acontece, evidentemente, com os insultos ao novo prefeito de Madri, significa renunciar à legítima crítica racional para apostar no desejo gratuito de machucar e humilhar.

A política da inveja aproveita a inevitável insegurança de condições de vida desvalorizadas e um estado de ansiedade diante de um sentimento de ultraje, um lugar onde ser branco e homem é o único privilégio que resta. É indiferente que seja falso, pois o nacionalismo identitário facilita esse barco salva-vidas. E ainda que seu caldo de cultura talvez esteja mais nos que ocuparam e geriram o poder nos últimos 30 anos, o magnata encontrou a liderança perfeita: só precisa jogar sal na ferida.

Existem líderes que, diante das inseguranças existenciais e econômicas, apelam à fraternidade para combater o medo, apresentando programas de proteção social que o desgastam. Outros, entretanto, se ufanam em potencializar o componente revanchista da ira, renunciando a um discurso que cultiva a virtude da população e entendendo as relações sociais como um jogo de soma zero: para corrigir nosso orgulho devemos humilhar os outros. Porque ninguém nasce homofóbico, classista e racista. O ódio, da mesma forma que a fraternidade, se cultiva, mas depende – tanto lá como cá – da altura política dos que escolhemos para nos representar, geralmente tão tristemente narcisistas como nosso próprio reflexo.

Os impulsos do presidente

A esta altura, está mais do que evidente que Jair Bolsonaro não sabe agir com a impessoalidade que há de caracterizar o exercício da Presidência da República.

A esta altura, está mais do que evidente que o presidente Jair Bolsonaro não sabe agir com a impessoalidade que há de caracterizar o exercício da Presidência da República. Em apenas 200 dias de governo, houve exemplos em excesso do peso que os afetos e as hostilidades particulares do presidente têm sobre decisões de Estado, que, a rigor, não deveriam ser pautadas pela emoção.

Em defesa do presidente, diga-se que não transparece deliberada má fé na mixórdia que ele faz entre os assuntos de Estado e o limitado universo de suas paixões. Bolsonaro opera sob o que o historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou de “ética de fundo emotivo”. Os eventuais reparos feitos a seus atos e decisões como chefe de Estado e de governo são tomados pelo presidente como ofensa pessoal, como mera incapacidade do outro de perceber os bons eflúvios de suas nobres intenções.

Desde que anunciou sua intenção de indicar um filho para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos – o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) –, não houve um só dia em que o presidente não tenha defendido, de alguma forma, o nome do “03” para um dos postos mais críticos de nossa diplomacia. Tivesse o olhar de um estadista, seria mais fácil para o presidente compreender o quão estapafúrdia é a escolha, por qualquer ângulo que se a analise. Porém, Jair Bolsonaro não vê sua escolha com olhos de estadista, mas com olhos de pai. E é como pai que reage às críticas.

Primeiro, a fim de justificar o injustificável, não se sensibilizou com os argumentos contrários à indicação e viu nas próprias críticas a razão para manter firme sua posição. “Se (Eduardo Bolsonaro) está sendo criticado, é sinal de que é a pessoa adequada (para ser o embaixador brasileiro em Washington)”, disse o presidente na tribuna da Câmara dos Deputados na segunda-feira passada.

Na quinta-feira, abrindo mão do pudor, Jair Bolsonaro voltou a defender o filho em termos ainda mais claros. “Pretendo beneficiar filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou, mas não tem nada a ver com filé mignon essa história (da embaixada nos Estados Unidos). É aprofundar relacionamento com a maior potência do mundo”, disse. Noves fora o pitoresco da declaração, saliente-se que ela revela duplamente o peso dos afetos nas decisões de Jair Bolsonaro. Em especial no que concerne às relações entre países, que devem ser pautadas por interesses, e não por supostas relações de amizade, como a que Bolsonaro supõe haver entre sua família e a do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Dos mais relevantes temas para o País, como a indicação de um embaixador, às troças com autoridades, tudo parece ser tratado pelo presidente da República fora da dimensão da impessoalidade do cargo. Não se quer dizer com isso que o comportamento de Bolsonaro deva ser marcado pela frieza e pela sisudez. Roga-se apenas que ao tratar de assuntos de Estado o presidente faça um esforço para contrabalançar suas emoções com o interesse nacional. Ora coincidem, ora não. De Jair Bolsonaro, dado o cargo que ocupa, é esperado discernimento.

Nada parece escapar do crivo afetivo do presidente. Jair Bolsonaro é capaz de atacar ao mesmo tempo tanto prosaicas mudanças no funcionamento de aplicativos como o Instagram como o conteúdo dos filmes produzidos com recursos da Ancine. No primeiro caso, é tema do qual o presidente nem sequer deveria se ocupar. No segundo, sim, mas por razões de outra natureza, objetiva. Afinal, trata-se do emprego de recursos públicos, e não de seu gosto por esta ou aquela produção.

A preponderância dos afetos sobre a razão obnubila a visão que o presidente deve ter do papel das instituições.

Há cerca de três meses, Jair Bolsonaro afirmou que “não nasceu para ser presidente”. Se não nasceu para o cargo, é verdade que optou por exercê-lo. E foi vitorioso no intento. É justo que os brasileiros, então, esperem que a investidura na Presidência sirva de aprendizado diário, caso Jair Bolsonaro tenha a humildade de tomar as críticas pelo que elas são – críticas objetivas, e não ofensas à sua honra, à sua dignidade.

Língua de Bolsonaro tornou-se líder da oposição

A língua de Jair Bolsonaro ganhou vida própria. Aventura-se no ramo da magia. Ela fala dez vezes antes que o presidente consiga pensar. A cada nova frase retira um gambá da cartola. Os truques causam danos insondáveis. De raro em raro, o presidente consegue farejar o mau cheiro. Às vezes, manda a assessoria corrigir as maluquices. Mas o Planalto está sempre um passo atrás da língua, que se sente à vontade para produzir crises em série.

"Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira", disse ela, a língua, envergonhando o presidente e o país numa mesa em que os garçons do Planalto serviam a jornalistas estrangeiros guloseimas num café da manhã. Um desjejum custeado pelos brasileiros dos quais o fisco arranca tudo a força, e depois chama de contribuintes.

"A questão do Inpe, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos, e nós vamos chamar aqui o presidente do Inpe para conversar sobre isso, e ponto final nessa questão", declarou a língua. O ponto é de partida, não final, pois há um ponto fraco na tese: os dados do Inpe informam que o desmatamento na Amazônia disparou na primeira metade de julho. Superou toda a taxa registrada no mesmo mês no ano passado. Servindo-se dos lábios de Bolsonaro, a língua propagou uma versão mentirosa sobre a realidade ambiental do país.

"A cultura vem para Brasília e vai ter um filtro sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine", declarou a ilusionista, convertendo o céu da boca presidencial na antessala da censura, um inferno do qual o país se imaginava livre. "Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode dinheiro público ser usado para fins pornográfico. Olha, dinheiro público para fazer filme de Bruna Surfistinha, não."



A língua evolui da censura ao preconceito com hedionda naturalidade. "Desses governadores de Paraíba, o pior é o do Maranhão", ela balbuciou nos ouvidos de Onyx Lorenzoni, num lapso captado pelas câmeras da empresa oficial de comunicação. Comum no Rio de Janeiro, onde todo nordestino é um "paraíba", a metonímia veio acompanhada de um complemento que revela pendores antirrepublicanos em relação a Flávio Dino, o governador comunista do Maranhão: "Tem que ter nada pra esse cara". Em verdade, sonegam-se recursos federais não para "esse cara", mas para os "paraíbas" do Maranhão.

Num evento evangélico, organizado em Brasília pela igreja Sara Nossa Terra, a língua soou em timbre pouco cristão. Perguntou-se ao presidente se a equipe econômica estuda acabar com a multa rescisória a que os trabalhadores têm direito quando são demitidos sem justa causa. E ela: "Está sendo estudado, desconheço qualquer trabalho nesse sentido."

A declaração contraditória foi seguida de outra mais assertiva: "Essa multa de 40% foi quando [Francisco] Dornelles era ministro [da Fazenda] do Fernando Henrique Cardoso. Aumentou a multa para evitar demissão, ok? O que acontece depois disso? O pessoal não emprega mais por causa da multa."

O que desemprega é a estagnação econômica, não a multa. O gambá da mentira fede mais quando salta da cartola acompanhado de desinformação. A alíquota de 40% sobre o saldo do FGTS foi imposta pela Constituição de 1988. O que Dornelles criou, sob FHC, foi um adicional de 10%. Que não foi para o bolso do trabalhador, mas para uma reserva de caixa destinada a cobrir expurgos produzidos por planos econômicos.

A língua dá de ombros para os fatos, engata uma segunda marcha e segue em frente: "O pessoal não emprega mais por causa da multa. É quase impossível ser patrão no Brasil. Um dia o país vai ter de decidir se quer menos direitos e mais empregos ou todos os direitos e desemprego." A assessoria da Presidência apressou-se em desmentir a língua do presidente, negando a existência de estudos sobre a a extinção da multa.

Como morder a própria língua é um exercício dolorido, Bolsonaro tenta contornar o constrangimento atacando a imprensa. "Não adianta a imprensa me pintar como seu inimigo. Nenhum presidente recebeu tanto jornalista no Palácio do Planalto quanto eu, mesmo que só tenham usado dessa boa vontade para distorcer minhas palavras, mudar e agir de má-fé ao invés de reproduzir a realidade dos fatos", ele afirmou neste sábado.

Suprema ironia: na véspera, a língua difundira aleivosias sobre a repórter Miriam Leitão. Dissera que ela participou da luta armada contra a ditadura. Mentira. Negara que ela tivesse sido torturada num quartel do Exército. Os suplícios impostos à repórter, grávida na ocasião, estão registrados em processos disponíveis para consulta. Bolsonaro dá de ombros.

O capitão declara-se a favor da liberdade de imprensa, "mesmo consciente do papel político-ideológico atual de sua maior parte, contrário aos interesses dos brasileiros, que contamina a informação e gera desinformação." Bolsonaro afirma que os repórteres "morrem de saudades do PT". Para preservar a língua, iguala-se a Lula, que inclui a "mídia golpista" na "conspiração" ilusória que o levou à prisão.

Já estava entendido que, no Brasil atual, as coisas não são certas ou erradas. Sob Bolsonaro, as coisas são absorvidas ou pegam mal. Nos últimos dias, entretanto, a língua do presidente parece ter fugido completamente do controle do dono. Bateu todos os recordes da falta de recato. Esqueceu de maneirar.

As mentiras sobre a fome e o desmatamento não pegaram bem. O flerte com a censura pegou mal. Tratar nordestinos como sub-brasileiros e discriminar governadores de oposição pegou muito mal. Pendurar desinformação nas manchetes sobre a legislação trabalhista pegou ainda pior. Caluniar uma repórter respeitável potencializou o surto de barbaridades.

Alçado ao trono como resultado da onda antipetista que varreu o país na sucessão de 2018, Bolsonaro já deveria ter notado que vive um momento inédito da história brasileira. Nesse instante especial, a empulhação é o caminho mais longo entre um projeto de governo e a sua realização. O capitão teria de trazer a língua na coleira. Mas ela, além de falar demais, cala demais.

A língua grita contra perversões alheias, mas silencia diante da cruzada de Flávio Bolsonaro para brecar o inquérito que o investiga por peculato, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa. Na festa de aniversário dos 200 dias de governo, a língua se absteve de anunciar medidas econômicas capazes de atenuar o drama do desemprego, mas reiterou seu plano de cavar para o filho Eduardo Bolsonaro um emprego de embaixador em Washington.

Difícil prever quais serão os próximos lances da guerra que Bolsonaro trava contra a lógica e o bom senso. Por enquanto, a única certeza disponível é a seguinte: a língua do presidente tornou-se líder da oposição.

Imagem do Dia


Suicídio de uma nação

A estratégia de um governo em que a ignorância se orgulha de si mesma é a desqualificação de quem ele identifica como inimigos. Os mais perigosos são os fatos e os números. Toma como alvo as instituições produtoras de ciência como a Fiocruz e o IBGE. Recheado de quadros incompetentes, ele ataca centros de excelência.

O exemplo mais recente é o insulto ao Itamaraty, o episódio do preenchimento do posto mais importante da carreira diplomática, a embaixada nos Estados Unidos.

A destruição do Itamaraty não se limita à desmoralização do posto de embaixador com a proposta tão absurda quanto irresponsável de nomear o filho do presidente para a embaixada em Washington. Seria apenas um vexame internacional, uma falta a mais de decoro, não fossem os riscos de alinhamento irrefletido e incondicional com políticas insensatas do presidente Trump do tipo invadir a Venezuela ou atacar o Irã.

Essa nomeação é mais um episódio desta alucinada política externa, que começou com o desmonte da agenda ambiental da qual o Brasil já foi líder global e hoje não é sequer um interlocutor confiável.

Negar a gravidade da questão ambiental é mais uma façanha da ignorância que se pavoneia. Assinar o Acordo entre Mercosul e União Europeia é uma abertura para o mundo que não rima com atraso. Não por acaso, o governo foi forçado a desistir da ameaça de deixar o Acordo de Paris.

Diante do evidente agravamento da mudança climática, o mundo se mobiliza, o que explica o forte avanço dos Verdes nas eleições europeias. Alemanha e Noruega nos apoiam na preservação da Amazônia. Foram desqualificadas.

No Conselho de Direitos Humanos da ONU voltamos à Idade Média. O Brasil se juntou à Arábia Saudita, Bahrein e Paquistão em várias votações sobre direitos das mulheres em matéria de saúde e sexualidade. Nesse ritmo, chegaremos em breve à Idade da Pedra.

Nosso lugar não é na contramão do mundo contemporâneo. A política externa envergonha o Brasil. 

Atacar a ciência e desmoralizar a competência é o suicídio de uma nação.
Rosiska Darcy de Oliveira

Ordem do dia

Não chegaremos ao livro, sem o leite e o pão,
nem chegaremos ao pão sem à terra e sem o teto,
nem chegaremos à terra sem liberdade e justiça,
nem chegaremos à liberdade, sem coragem e honestidade,
oh! a indispensável coragem para essa luta.


Lutemos pois, - todos nós, - brancos, pretos e amarelos,
que choramos e comemos, que crescemos e estudamos,
que sofremos e construímos, como homens sem cor,
todos nós que precisamos do mesmo leite branco
e do mesmo livro, e da mesma terra, e da mesma liberdade
para Viver. Viver. Ou ao menos morrer, mas lutando.

J. G. de Araújo Jorge

A velha e a nova esquerda

O caso dos 19 deputados dissidentes do PDT e do PSB, com destaques para os jovens Tabata Amaral, pelo PDT de São Paulo, e Felipe Rigoni, do PSB do Espírito Santo, tem causado na imprensa.

O governo envia uma proposta de reforma da Previdência. A esquerda tem diversos reparos. A esquerda tem outra proposta. Governo, esquerda e, principalmente, o centrão negociam. Diversos pontos criticados pela esquerda são retirados por intervenção do centrão.

A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não. A nova esquerda faz o acordo e diz sim.


Em 1985, o PT expulsou os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes por votarem no Colégio Eleitoral na chapa Tancredo Neves e José Sarney contra Maluf, candidato dos militares.

Em 1994, o PT foi contra o Plano Real. Segundo Guido Mantega, em artigo nesta Folha em 16 de agosto de 1994, “essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa”.

Nossa hiperinflação foi fruto do desequilíbrio fiscal dos estados após a redemocratização. Somente superamos a hiperinflação com a renegociação da dívida dos estados com a União, lei 9.496 de 1997, e com a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O PT votou contra ambos.

O PT também votou contra o Fundef, instituído pela emenda constitucional nº 14, de setembro de 1996. O Fundef aumentou muito a eficiência do gasto com educação e permitiu a universalização do ensino fundamental.

Qual é a justificativa para um partido que se preocupa com a melhora da vida dos mais vulneráveis ser contra medidas que eliminam a inflação e melhoram a eficiência do gasto em educação, para ficar em apenas dois exemplos?

Há duas velhas esquerdas. A primeira aposta no quanto pior, melhor. Simplesmente porque apenas deseja a melhora do país se estiver no governo. Caso contrário, é melhor que o país se afunde ainda mais.

O segundo tipo de velha esquerda é a esquerda autoritária. É aquela esquerda que diz que fez a crítica do socialismo real, mas é mentira.

São autoritários. Têm alma autoritária. Acreditam que o sofrimento produzido pelo capitalismo justifica a violência. É essa esquerda que não consegue se desapegar de Cuba ou da Venezuela. Vergonhosamente se silencia diante do relatório contundente da ONU produzido por Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile.

Recentemente, o site de esquerda The Intercept Brasil publicou texto de Amanda Audi (bit.ly/2YRHAER) sobre Tabata. Era para ser um texto crítico à jovem deputada e aos movimentos cívicos que têm contribuído com a preparação de uma nova geração de políticos.

Tabata é contra a agenda de maior presença privada no ensino público, certamente é favorável à maior progressividade dos impostos e, após os inúmeros ajustes feitos, foi favorável à reforma da Previdência. Pelo bem do país.

A maior crítica do texto de Audi ao grupo do qual Tabata participa é que eles se preocupam “que a escola prepare os alunos para servir ao capitalismo”.

Para essa esquerda pobre, tacanha e mesquinha, um pobre que, em razão de uma boa educação, progride e tem elevada renda no setor privado serve ao capitalismo. Esse pensamento é intrinsecamente autoritário.

Temos a nova esquerda. E temos a velha esquerda. Esta ou é oportunista, jogando no quanto pior, melhor, para garantir seu emprego no aparelho do Estado, ou é a velha esquerda que não foi civilizada pela queda do muro.

Que venha a nova esquerda. A velha certamente morrerá de morte morrida.
Samuel Pessôa

Julho cheio de tensões

Há muita eletricidade no ar. Curtos circuitos em geral ocorrem por falha de manutenção. Julho tem sido um mês de sístoles.

Expliquemos. Sístole e diástole são dois estágios do ciclo cardíaco nas pessoas. Sístole é o da contração, em que o sangue é bombeado para os vasos sanguíneos. Diástole é a fase de relaxamento e faz com que o sangue entre no coração.

O general Golbery do Couto e Silva, em 1980, usou dois conceitos para explicar o término dos anos de chumbo. Pregava que os militares, após a contração, fariam a transição para a democracia pela diástole, de forma organizada.

Pois bem, o Brasil atravessa julho sob muita sístole. As tensões envolvem os três Poderes, órgãos como Ministério Público, Receita Federal, Coaf, OAB e outros.


E se acentuam entre o Executivo e a esfera política na reforma da Previdência, em virtude do “certo desprezo” de Bolsonaro ao presidencialismo de coalizão. Rejeita ouvir o confessionário dos políticos. (E aí se parece com a ex-presidente Dilma). E mais, despreza o esforço do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao mobilizar a Câmara a votar assuntos de interesse do Executivo. Maia responde com veemência. A equipe econômica reclama da desidratação do projeto da Previdência pela Câmara, mas esquece que o próprio Bolsonaro defendeu privilégios para o pessoal da segurança.

As falas presidenciais são fios desencapados de curtos-circuitos. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Ou: “A economia vai às mil maravilhas”.

A indicação do filho para chefiar a embaixada do Brasil nos EUA é outro. Se passar no Senado, será por articulação da “velha política”, que ele execra.

A pauta do Executivo recebe sinais contrários da sociedade, como a das armas. Outros projetos do governo são considerados inconstitucionais.

Na frente externa, países reclamam da política ambiental do governo e do desmatamento. Bolsonaro responde: ninguém cuida tão bem de seu meio ambiente como nós.

Há tensão entre o STF e o Ministério Público por causa de decisão do ministro Dias Toffoli de condicionar todas as investigações à autorização judicial. Essas investigações partem principalmente do Coaf e da Receita, que apuram movimentações suspeitas. Para o MP, é duro golpe na Lava Jato.

Há tensão entre o Executivo, o Legislativo e o MP por causa da Lava Jato. Políticos querem minar a operação e o Executivo tenta manter o prestígio do ministro Sérgio Moro.

Na reforma tributária, as tensões começam com os projetos em pauta: um do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, outro do relator e deputado Baleia Rossi, o terceiro de Marcos Cintra, chefe da Receita, defendido por Paulo Guedes, e um quarto do movimento Brasil 200. A sociedade não quer de novo a CPMF; Bolsonaro diz que ela não volta.

Há tensão entre Executivo e conselhos federais profissionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil. O governo quer acabar com a obrigatoriedade de inscrição dos profissionais em conselhos de classe.

Há conflito até para animar a economia, como no caso da liberação do FGTS. Não houve consulta à Caixa ou à construção civil, que usa os recursos para a moradia.

E assim, sob sístoles, o corpo nacional vive seu mês de julho.