domingo, 25 de abril de 2021

Brasil roubou o Oscar

 


Planeta Terra

Em semana tão memorável para nosso planetinha, alvo, finalmente, de uma Cúpula do Clima com tonalidade de emergência global, vale relembrar quanto devemos à bióloga marinha e escritora americana Rachel Carson. Pioneira de uma escrita belíssima sobre a ciência e o mundo natural, Carson catalisou o movimento ambiental dos anos 1960 com a publicação do seu clássico “Primavera silenciosa”. O livro desarrumou para melhor as até então inexistentes políticas ambientais nos Estados Unidos e despertou a consciência ambiental moderna — começando pela cadeia de danos a todas as espécies causada por agrotóxicos. A obra serviu de referência para, entre outras medidas, a criação da Agência Federal de Proteção do Meio Ambiente (EPA, na sigla em inglês), a aprovação das leis de Ar Puro (1963), Áreas Selvagens (1964), Água Limpa (1972) e Espécies em Extinção (1973). Coisa grande, portanto. E, contra a maré dos preconceitos culturais do Pós-Guerra, então ainda prevalentes. “Por que uma mulher solteira, sem filhos, e comunista, está tão preocupada com a genética?”, indagava Ezra Taft Benson, que servira ao governo de Dwight Eisenhower por oito anos como secretário da Agricultura.


“O controle da natureza é um conceito concebido na arrogância, nascido na Era Neandertal da biologia e da filosofia, quando se supunha que a natureza existe para conveniência do ser humano”, escreveu a cientista do século 20. Na Cúpula on-line de 2021, as mesmas palavras foram repetidas em roupagens variadas e idiomas diversos. Apenas com um denominador comum novo — a urgência do tema. “É quase tarde demais, devemos começar já”, resumiu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Para a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, sempre na dianteira do progresso de seu povo, o elenco de medidas obrigatórias e imediatas passa pela precificação do carbono, pelo fim dos subsídios a combustíveis fósseis, pelo financiamento da conversão rumo a uma economia limpa. Até o FMI se manifestou a favor da instituição de um preço mínimo internacional para o carbono, aplicável aos maiores predadores do ar que respiramos.

Como se sabe, a chanceler alemã Angela Merkel, PhD em Química Quântica, é pouco afeita a arroubos retóricos e ainda menos ao uso de adjetivos superlativos. Já por isso, prestou-se atenção dupla quando ela definiu como “trabalho hercúleo” o combate urgente ao aquecimento global. Nesta luta contra o tempo, é possível que estejamos em situação apenas ligeiramente melhor que os 53 tripulantes do submarino indonésio KRI Nanggala-402, desaparecido nas profundezas do Mar de Bali, sem contato com o mundo desde a quarta-feira. Como não foi resgatado até ontem, sua reserva de oxigênio se esgotou.

Estima-se que nosso planetinha já existe há uns 4,5 bilhões de anos e deverá existir por mais outros 7,5 bilhões até ser absorvido pelo Sol. Não é ele que corre perigo com a mutação climática, e sim a biosfera, aquilo que chamamos de “mundo” — a camada de organismos cósmicos que envolve o globo e engloba todas as formas de vida, a partir de uma profundidade de 9,5 km abaixo do nível do mar até uma altura 8 km acima da superfície terrestre. A revista impressa “Lapham’s Quarterly” dedicou sua edição de outono de 2019 ao tema, com preâmbulo de Lewis H. Lapham, fundador, editor e alma da publicação. Para ele, o aquecimento do planeta, que já atinge os sete continentes, quatro oceanos e 24 fusos horários, é produto da dinâmica capitalista movida a energia fóssil, que tem entupido o mundo com riquezas muito além da necessidade, da imaginação ou de qualquer senso de medida humanos. “Somos guiados pela crença de que o dinheiro é capaz de comprar nosso futuro. Só que a natureza não aceita cheques. Veremos mais adiante quem pagará a conta — se o capitalismo sobreviverá à mudança climática ou se um clima alterado afundará o capitalismo”, escreve ele.

Com 78 anos de idade, e com a pandemia da Covid-19 a convulsionar imensos nacos da população global, o presidente americano Joe Biden já teve tempo de sobra para pensar na posteridade. Escolheu as vésperas do seu 100º dia como líder do colosso econômico, militar e campeão em poluentes para oficializar o papel que escolheu para si: locomotiva de uma nova era ambiental. O robusto programa de investimento em infraestrutura apresentado por Biden no mês passado, que consumirá perto de US$ 2,3 trilhões, está todo voltado a uma economia de baixas emissões. Se conseguir a difícil aprovação no Senado, sinalizaria o início de uma grande revolução estrutural no país. Também as ambiciosas metas/promessas ambientais dos EUA, feitas pelo presidente ao abrir os trabalhos da Cúpula, indicam que, se concretizadas, cada milímetro da atividade econômica do país acabaria atrelado a um futuro mais limpo. “A hora é agora”, anunciou Biden ao mundo. Tomara.

Lewis Lapham, o do ensaio citado, sustenta que depositamos demasiada fé na tecnologia como salvação da raça humana. Transformamos o mercado consumidor num lobo universal que devora e destrói não por instinto neolítico ou ideologia — simplesmente por termos nos tornado máquinas e, como boas máquinas, não sabemos fazer outra coisa. Para salvar a raça humana, só mesmo o humano — nem acima nem à parte da natureza.

Esta semana a Nasa conseguiu o feito inédito de converter dióxido de carbono da atmosfera marciana em oxigênio puro. Foi pouquinho, porém extraordinário — segundo a agência, os cinco gramas de oxigênio produzidos no planeta vermelho equivalem a algo como 10 minutos de ar respirável por astronautas. Como então não conseguirmos nos salvar por aqui? Se falharmos agora, talvez só nos reste mesmo zarpar para Marte.

Soberania decente

Cento e oitenta anos antes do Biden, Macron, Merkel estarem dando opinião sobre como devemos cuidar de nossas florestas, um parlamentar inglês aprovou lei dando direito à Marinha Britânica de intervir nos mares internacionais e nacionais e até nos portos de qualquer país, para proibir tráfico de escravos. Esta lei gerou uma forte indignação entre os traficantes, os fazendeiros e classes médias urbanas que dependiam da escravidão para fazer funcionar a economia e a sociedade.

A realidade social e econômica levou a população brasileira a se manifestar em defesa de nossa soberania, nosso direito a ter escravos, usar a escravidão a deixar nossos navios transportarem as mercadorias que nossa soberania aceitasse, inclusive mercadoria humana. Vista à distância, 180 anos depois, difícil entender a soberania de manter o que hoje parece infame a nossos olhos: o maldito tráfico de escravos.


Mas, aos mesmos olhos de hoje, parece uma quebra de nossa soberania a intervenção de dirigentes estrangeiros querendo nos impor a proteção de nossas florestas, nos ensinar como cuidar delas. Nos comportamos hoje como os escravocratas, defendendo nossos direitos soberanos para destruir o que é nosso; antes os nossos navios negreiros e nossos escravos, agora nossas florestas. Há uma diferença moral entre ter um escravo e derrubar uma floresta, mas destruir florestas é um genocídio contra os povos que nela vivem. Há uma diferença no conceito de soberania no século XIX e no século XXI. O mundo ficou um condomínio de nações interligadas. A pandemia mostra isto, a globalização e o poder da técnica e da ciência também. Não é possível deixar que a soberania plena de cada nação permita ameaçar o bem estar e o futuro da humanidade: instalar uma mina nuclear na fronteira com outros países, comércio de drogas não é mais uma questão apenas nacional, sigilo bancário para proteger corruptos em paraísos fiscais. Mais do que tudo, o mundo requer regras internacionais para proteger o meio ambiente em cada país, sem o que provoca-se o desequilíbrio ecológico em todo o planeta, afetando a sustentabilidade da civilização ou até mesmo a sobrevivência da espécie humana. A Terra é hoje um condomínio de países e cada um deles precisa levar em conta os interesses do conjunto deles, da humanidade.

Da mesma forma que na época da escravidão a moral humanista deveria se sobrepor à soberania nacional, cada país precisa aceitar regras que definam os limites de seus direitos soberanos. A diferença é que no lugar de um só país impor-se aos demais, agora as interferências devem ser definidas de forma global. No lugar de em nome da soberania nos opormos a intervenção estrangeira, devemos proteger nossas florestas e participarmos da definição de regras internacionais para todos países. Aceitar a preocupação do mundo com nossas florestas e exigir que os Estados Unidos e Europa reduzam o nível de consumo que depreda o meio ambiente tanto quanto o desflorestamento. Provocar as nações do mundo a irem além da preocupação com as florestas, definirem um novo rumo para a economia, domando o monstro da produção e do consumo, em busca de um desenvolvimento harmônico entre as pessoas e delas com a natureza, graças a uma soberania decente que respeite valores morais humanistas.
Cristovam Buarque

A ligação do clã Bolsonaro com paramilitares e milicianos se estreitou com a eleição de Flávio

A ligação do clã Bolsonaro com a rede de paramilitares e milicianos que se formava na zona oeste se estreitou em 2002 com a eleição de Flávio Bolsonaro para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O deputado de apenas 22 anos, neófito no Parlamento, pretendia se vender como o representante político e ideológico dos “guerreiros fardados” que lutavam por espaço e poder nos territórios do Rio. Ao longo dos anos, coube a Fabrício Queiroz o papel de principal articulador dessa rede de apoio no mandato do deputado primogênito. Queiroz seria fundamental para ajudar a fortalecer a base de votos do clã Bolsonaro nos batalhões policiais, para onde levou Flávio, em sua primeira campanha, para pedir votos.

Queiroz era amigo de Jair Bolsonaro desde os tempos do Exército. Eles se conheceram em 1984, no oitavo grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, na Vila Militar no Rio. Flávio, então, tinha três anos e chamava Queiroz de tio. Na mesma artilharia, em 1987, Queiroz conheceu o futuro vice-presidente Hamilton Mourão, trabalhando como motorista do jipe do oficial. Na época, Bolsonaro sugeriu ao soldado que prestasse concurso para a polícia. O ingresso de Queiroz na corporação ocorreu naquele mesmo 1987, e a relação de lealdade e confiança entre os dois se manteria desde então.

Quando Flávio se elegeu deputado estadual, Jair Bolsonaro, o chefe do clã, estava em uma encruzilhada. Na época, final de 2002, Jair era uma figura com perspectivas eleitorais duvidosas. Folclórico no Congresso Nacional, com apelo restrito à parcela ultraconservadora do eleitorado, parecia destinado a perder força, a exemplo de diversos parlamentares populistas, defensores de uma polícia truculenta. Faltava a ele jogo de cintura para se aproximar dos partidos e dos colegas. Ostentava ainda um temperamento paranoico, o que parecia um empecilho aos acordos que definiam os poderes na Nova República. Na eleição de 2002, Jair obteve menos votos do que em suas duas eleições anteriores, apesar do sobrenome ainda ser popular. O futuro presidente do Brasil parecia satisfeito em seguir no Parlamento, diante da situação política adversa. Mas precisaria suar. A direita, sem espaço no período da redemocratização, também estava fragilizada naquele ano. Depois de três derrotas consecutivas, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva finalmente venceu as eleições e iniciou seu primeiro mandato como presidente.

A eleição do filho mais velho de Jair Bolsonaro, o zero um, abriu espaço para a família no debate estadual da segurança pública. Flávio era o segundo rebento a ganhar uma eleição se valendo do nome da família. Dois anos antes, Carlos Bolsonaro, o zero dois, tinha sido o mais jovem vereador eleito da história do Brasil, com dezessete anos. Segurança pública, entretanto, não era um tema para debater no âmbito municipal. Na Assembleia Legislativa, Flávio poderia brilhar defendendo a bandeira populista do pai da guerra contra o crime. Com isso também poderia se destacar entre os mandachuvas da política fluminense, como os deputados Paulo Melo, Jorge Picciani e Domingos Brazão, pouco conhecidos fora do Rio, mas capazes de grande articulação no submundo político. Naquele ano, o futuro governador Sérgio Cabral Filho deixaria a Assembleia depois de três mandatos consecutivos, para concorrer ao Senado, de onde sairia para assumir o Governo do Rio em 2007.


'Os Bolsonaro sempre foram os representantes ideológicos dos grupos milicianos'

Flávio se movimentava com tranquilidade na zona de conforto da família Bolsonaro, entremeando sua pauta antidireitos humanos com projetos de lei em defesa da polícia e com homenagens a seus integrantes. Por sugestão do pai, Flávio entregou inúmeras medalhas a policiais, mesmo àqueles flagrados em ações suspeitas. Durante seus quatro mandatos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), Flávio Bolsonaro aprovou 495 moções e concedeu 32 medalhas a policiais militares, policiais civis, bombeiros, guardas municipais e membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. As homenagens, que naqueles anos não passavam de agrado à sua base eleitoral, acabaram deixando um rastro das afinidades da família Bolsonaro com os milicianos mais perigosos do Rio. A insistência em condecorar os maiores vilões da corporação deixou cristalizada a ideologia de guerra que Jair Bolsonaro sempre sustentou.




As primeiras homenagens ocorreram ainda no primeiro ano do mandato de Flávio Bolsonaro, no dia 27 de outubro de 2003. O sargento Fabrício Queiroz estava entre os laureados e recebeu uma moção de louvor e congratulações concedida pelo Parlamento. A estrela principal, contudo, foi Adriano Magalhães da Nóbrega, o tenente que carregava na bagagem a marca da caveira do Bope e a parceria com Queiroz nas vielas da Cidade de Deus. Na homenagem, havia ainda sete integrantes do Grupo de Ações Táticas do 16º Batalhão de Olaria, onde Adriano passara a trabalhar poucos meses antes. [Posteriormente Adriano foi acusado de chefiar o grupo criminoso conhecido como Escritório do Crime, que teria envolvimento com a morte de Marielle Franco. Ele foi morto pela polícia baiana em fevereiro de 2020].

O texto da homenagem era o mesmo para todos: “Com vários anos de atividade este policial militar desenvolve sua função com dedicação, brilhantismo e galhardia. Presta serviços à Sociedade desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades. No decorrer de sua carreira, atuou direta e indiretamente em ações promotoras de segurança e tranquilidade para a Sociedade, recebendo vários elogios curriculares consignados em seus assentamentos funcionais. Imbuído de espírito comunitário, o que sempre pautou sua vida profissional, atua no cumprimento do seu dever de policial militar no atendimento ao cidadão”. O fato de alguns homenageados serem suspeitos de extorsão não preocupava. Afinal, a prática era tolerada pela corporação. Os verdadeiros inimigos, no entender desse núcleo, eram os bandidos e os defensores de direitos humanos e dos controles estabelecidos pela legislação, que não entendiam os riscos envolvidos na guerra contra o crime.

Algumas homenagens pareciam concebidas apenas para provocar polêmica. Eram oportunidades para um deputado sem brilho se afirmar como herdeiro das ideias folclóricas do pai. Em março de 2004, o homenageado foi o capitão Ronald Paulo Alves Pereira, que atuava no 22º Batalhão, por seus “importantes serviços prestados ao estado do Rio de Janeiro quando da operação policial realizada no Conjunto Esperança no dia 22 de janeiro de 2004 às 0h30 que resultou em confronto armado com marginais da Lei, onde três destes vieram a falecer, sendo um deles o meliante Macumba, líder do tráfico no Conjunto Esperança, Complexo da Maré, logrado êxito em apreender dois fuzis m16 a2, uma granada marca fmk de fabricação argentina, dois aparelhos de telefonia celular, um rádio transmissor da marca icom, 58 projéteis intactos de 5.56 mm e três projeteis de 7.62 mm”.

Três meses antes, o capitão Ronald havia sido acusado de participar da chacina de quatro jovens —entre eles um garoto de treze anos— na casa de espetáculos Via Show, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Os jovens foram abordados no estacionamento pelo chefe da segurança de uma boate, formada por policiais que faziam bico. Geraldo, uma das vítimas, era soldado do Exército. Foi acusado de tentar roubar um carro pelo chefe da segurança, que acionou os policiais militares. Os PMs espancaram os garotos e os levaram para uma fazenda distante, onde foram torturados e depois assassinados com tiros de fuzil. Os corpos foram encontrados três dias depois num cemitério clandestino. Além de Ronald, oito policiais foram acusados pelo crime. Quatro acabaram condenados, sendo três deles soldados. Ronald, o único oficial envolvido na chacina, desmembrou o processo e continuou trabalhando normalmente como policial. Com o incentivo de políticos como o deputado Flávio Bolsonaro.

No caso de Adriano e de seus colegas do Grupo de Ações Táticas do 16º Batalhão, a homenagem ocorreu um mês antes de uma situação suspeita e escandalosa, que estouraria em seguida. Depois da homenagem de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, Adriano e os policiais laureados foram presos, acusados de sequestro, tortura e extorsão de três jovens em Parada de Lucas, comunidade da zona norte da cidade. Segundo testemunhos, os policiais aplicavam a velha prática da mineração [tentativa de cobrar dinheiro de pessoas ligadas ao tráfico] e do arrego. Contudo, um homicídio em especial desafiou a Secretaria de Segurança, comandada na época por Anthony Garotinho, que assumira o posto na gestão de sua esposa e sucessora no governo do Rio, Rosinha Garotinho.

A vítima de Adriano e sua tropa foi o guardador de carros Leandro dos Santos Silva, de 24 anos, morto com três tiros. Antes de ser assassinado, Leandro esteve na Inspetoria de Polícia, órgão criado por Garotinho com a finalidade de apurar desvios de policiais, para fazer uma denúncia. Contou que, na semana anterior, tinha sido espancado por policiais do 16º Batalhão e foi obrigado a pagar mil reais a eles. De acordo com o depoimento de Leandro, os policiais usaram sacos plásticos para asfixiá-lo e exigiram outros mil reais para deixá-lo em paz. Leandro foi levado à delegacia para confirmar as denúncias e depois encaminhado ao Instituto Médico Legal para o exame de corpo de delito. O subsecretário de Segurança, Marcelo Itagiba, e o inspetor combinaram com Leandro um flagrante, para prenderem o grupo no ato do pagamento do arrego. Não deu tempo. Ele foi assassinado às 6h30 na porta de casa.

A estupidez triunfante

Entre a classe política é fácil encontrar canalhas. Já os canalhas explícitos são relativamente raros. Canalha explícito é aquele cara de uma incompetência tão aperfeiçoada que nem sequer consegue disfarçar a maldade. Entre estes, se destaca uma sub-classe: o canalha explícito absoluto. O canalha explícito absoluto não só não consegue mentir, como acredita genuinamente que as suas ideias horríveis são ótimas. Assim, ao invés de as tentar esconder, esforça-se por divulgá-las. Basta lembrar Donald Trump encorajando os americanos a ingerirem lixívia, ou Jair Bolsonaro promovendo o livre comércio de armas de fogo.

Por estranho que pareça, ideias horríveis sempre encontram quem se identifique com elas. Em qualquer país do mundo, pelo menos dez por cento da população está disposta a defender projetos e ações indefensáveis. Quaisquer que sejam: pena de morte, segregação racial, pedofilia, canibalismo, Romero Britto ou até mesmo o bacalhau com natas.

Os canalhas explícitos absolutos conseguem por vezes alcançar o poder porque as pessoas normais não acreditam que eles acreditem no que afirmam acreditar: “Quando fulano defende o canibalismo não está a defender o canibalismo”, explicam, para justificar porque decidiram votar em fulano. “Fulano está apenas a afrontar o politicamente correto. Só diz isso para irritar os veganos. Votei nele porque adoro irritar os veganos.”

Desastrosa ingenuidade. Acontece que, ao elogiar o canibalismo, fulano estava mesmo defendendo o direito de pessoas comerem outras pessoas. Assim, mal alcança o poder, a primeira coisa que fulano faz é legalizar o canibalismo. A seguir, dentro da mais estrita legalidade, almoça os inimigos entre duas cervejas. Mais tarde, ao jantar, de terno e gravata, degusta educadamente as queridas pessoas normais.

As queridas pessoas normais estão fartas dos políticos de sempre. Querem sinceridade. Exigem dos políticos que digam a verdade. É como esperar que, num restaurante, questionando o proprietário sobre a qualidade do peixe, este nos alerte, muito sério, para as condições precárias em que o prato foi confeccionado, concluindo: “Eu jamais comeria aqui”. Imaginemos agora que o proprietário do restaurante seja um canalha explícito absoluto. Nesse caso, exaltará alegremente os defeitos do peixe. Ainda assim, haverá quem escolha o restaurante, fascinado com a rude franqueza do proprietário.

Canalhas explícitos absolutos sempre existiram. Não há nada de inédito na estupidez triunfante. A única novidade é que hoje, graças à internet e às redes sociais, é muito mais fácil propagar ideias idiotas. Vídeos bobos, por exemplo, são o quindim das redes sociais. A gente sabe que aquilo nos faz mal, mas fica difícil resistir. E, depois da primeira trinca, não há como não ir até ao fim. Sei do que falo: outro dia perdi uma hora assistindo a vídeos de gatos pulando de susto diante de pepinos. Eu e minha filha de três anos.

Não sei se a Humanidade está ficando menos inteligente, como asseguram diversos estudos, ou se temos essa sensação apenas porque a estupidez agora é televisionada.

E lá vou eu ver os vídeos dos gatos.