sábado, 21 de setembro de 2019

Aquecimento global trará mais migrações, doenças e fenômenos extremos

Nsiru Saidu só voou uma vez na sua vida, de onde vive refugiado no Chad até a capital desse país, Ndjamena. “Nunca fui à América nem a outro país.” Não tem carro, e sua humilde vida gera praticamente zero emissão de carbono. Mesmo assim ele sofre os estragos da crise climática com toda dureza. Instalado com sua mulher e 10 dos 11 filhos no campo de Dar es Salam, junto ao lago Chad, este agricultor e pescador de 41 anos procedente da Nigéria, de onde fugiu em 2016 da violência do grupo terrorista Boko Haram, diz que seu principal problema agora é outro: “Já não tínhamos segurança alimentar, e a mudança climática a piorou”.

Do seu refúgio no Chad, Saidu fala devagar no outro lado do telefone para transmitir sua mensagem: “Sei que algum dia minha casa esteve a alguns metros do lago, mas agora está a quase 30 quilômetros. Tenho certeza de que isto aconteceu por causa da mudança climática. Agora as pessoas se instalam nas ilhas que surgiram por causa do desaparecimento da água. Antes essas ilhas não existiam.” Esse é o relato do paulatino desaparecimento do lago Chad, que em 1963 se estendia por 26.000 quilômetros quadrados (quase o tamanho de Alagoas) e hoje não chega a 1.500, dividido em duas partes estanques. Uma redução de mais de 90%. Na prática, para este pescador significa “menos peixes, e minúsculos”. Antes, segundo contaram a Saidu, havia muitos que pesavam vários quilos.

Na década de sessenta existiam 135 espécies no lago, e 200.000 toneladas de peixe eram capturadas por ano. A área ao redor era propícia para o pastoreio e a agricultura. Entretanto, as frequentes secas provocaram, além do desaparecimento da lâmina de água e da sua biodiversidade, a perda de área de pastoreio para o gado e a degradação das terras para o cultivo. “Agora faz muito calor. Antes havia mais árvores, mas desapareceram. Cada vez mais isto se parece com um deserto”, resume Saidu.

Essa tormenta humanitária perfeita coloca 3,6 milhões de moradores ribeirinhos do lago Chad em situação de insegurança alimentar, o que significa que se levantam diariamente sem saber se comerão antes de voltarem a se deitar. É o caso de Saidu, que recebe comida do Programa Mundial de Alimentos da ONU. “Mas não é suficiente para uma família, por isso temos que continuar pescando. Não temos outra opção”, diz.


“Quem mais sofre com a mudança climática é quem menos a provocou”, salienta Norman Martín Casas, assessor de programas nacionais da Oxfam Intermón. Para esta organização, trata-se de uma crise de desigualdade. “Nos países onde trabalhamos, as pessoas já são vulneráveis e sofrem com maior virulência os impactos do clima. E enfrentam isso com escassez de recursos para se adaptar”. A magnitude do problema é tal que levou a ONU a uma mudança de estratégia: já não é hora de contar ao mundo o quanto se progrediu nas últimas de décadas, e sim de alertar sobre os perigos que se abatem sobre a humanidade e o meio ambiente se o aquecimento global não for freado. Haverá mais migrações, as mulheres e crianças estarão sob maior risco de adoecer e morrer, diversas espécies sucumbirão aos fenômenos extremos, os lagos secarão, as florestas queimarão… mais do que agora.

Em Moçambique, a população conhece bem as consequências da fatal soma de ser pobre e estar no centro da tempestade. Literalmente. Esta ex-colônia portuguesa no sudeste da África é um dos países menos desenvolvidos do mundo, ocupando a 180º posição entre as 189 nações incluídas no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em março de 2019, os moçambicanos sofreram a passagem do catastrófico ciclone Idai, ao qual se seguiu, duas semanas depois, o Kenneth. Mais de 1.000 pessoas morreram nesses episódios, considerados entre os piores já ocorridos no Hemisfério Sul. Dois milhões de outras pessoas foram vítimas sobreviventes. Reparar os danos causados pelas chuvas torrenciais custará mais de dois bilhões de dólares (8,3 bilhões de reais) a esta paupérrima região —Maláui e Zimbábue também foram afetados—, segundo cálculos do Banco Mundial.

Meia década antes, no mesmo Moçambique, a mudança climática se manifestava com outra cara: a seca. O fenômeno El Niño, especialmente cruel em suas últimas aparições, deixou 1,5 milhão de pessoas com necessidades de assistência humanitária no país em 2015 e 2016. Em Massaca, uma aldeia no sul, vivia na época Maria Jose Goven, uma senhora na faixa dos 50 anos. Quando a conhecemos, tinha oito netos sob seus cuidados, pois alguns de seus filhos haviam migrado, e uma filha havia morrido de AIDS. As crianças se reviravam adormecidas ao seu redor, quase sem energia para se manterem em pé. “Não temos o que comer. Não chove e não tenho colheita. Não sei o que fazer, não temos aonde ir e não vejo saída”, lamentava-se a avó.

As mulheres e as crianças são especialmente vulneráveis ao açoite das adversidades climáticas. “Em grande parte do mundo, a população feminina é sistematicamente discriminada e não tem igual acesso que os homens a recursos como terra, água, sementes, fertilizantes ou créditos para a produção”, diz Martín Casas. “São as primeiras que veem seu consumo alimentar reduzido quando ocorrem eventos extremos.” Quanto às crianças, o Unicef (agência da ONU para a infância) estima que na próxima década a mudança climática afete 175 milhões delas por ano. “Estão física, fisiológica e epidemiologicamente mais expostas ao impacto”, observa Nicholas Rees, especialista do Unicef nesse assunto. São menos capazes de suportar secas, inundações e condições extremas. Além disso, seus corpos e sistemas imunológicos estão em processo de crescimento e desenvolvimento. Uma alimentação deficiente por falta de colheitas ou ter que deixar a escola porque uma tormenta a destruiu são fatores que, durante esta etapa crucial da vida, “podem afetar sua saúde e bem-estar a longo prazo”.

Este mal está difundido na Guatemala, onde 46,5% dos menores de cinco anos sofrem de desnutrição. “Assim, metade da infância está condenada a não alcançar todo seu potencial”, denuncia a ONG Oxfam Intermón. Esse país, no chamado Corredor Seco centro-americano, é vítima de uma crise alimentar exacerbada pela mudança climática. A prolongação da temporada seca em 2018 danificou 70% da primeira safra (geralmente colhida em agosto), enquanto as chuvas torrenciais danificaram 50% da segunda (em março), segundo a FAO e o PMA. Ao todo, 2,2 milhões de pessoas sofreram prejuízos.

Na região de Puno, no altiplano peruano, a 4.200 metros de altura, os habitantes de Ajoyani detectaram que seu problema com a mudança climática é muito diferente. E desconhecido. O frio cada ano mais extremo mata suas alpacas e congela o pasto. Este camelídeo apreciado por sua lã começou a não ser capaz de suportar as temperaturas de até -20 graus. Para as famílias desta localidade, onde 48% vivem em situação de pobreza, a perda de vários animais significa menos renda e pior alimentação. Aqui, 25,6% dos menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica, muito acima da taxa do país (14,4%). E a anemia entre bebês de 6 a 36 meses sobe a 76%, 20 pontos a mais que a média nacional.

As crianças não são apenas mais vulneráveis à falta de comida, mas também a “doenças mortais como a malária e a dengue, ou infecções que causam diarreias”, cuja incidência aumenta quando ocorrem desastres naturais, explica o especialista do Unicef. “Não vamos alcançar nosso objetivo de acabar com as mortes infantis em nível mundial a menos que abordemos tanto as causas como os impactos da mudança climática”, conclui Rees.

A ONU já advertiu em seu último relatório de progresso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável —a agenda internacional para obter um mundo mais justo, pacífico e um planeta ainda habitável até 2030— que não será possível reduzir a mortalidade infantil nem atingir nenhum outro dos 17 objetivos devido à crise climática e à desigualdade. A pobreza extrema não será erradicada. Ao ritmo atual de queda, até essa data 6% da população do planeta ainda viverá com menos de 1,90 dólar por dia. Tampouco a fome acabará. De fato, milhões de pessoas mais sofrem insegurança alimentar hoje do que em 2015.

Os prognósticos do Banco Mundial não são mais animadores: 100 milhões de pessoas poderiam cair em situação de pobreza até 2030 só por causa dos impactos climáticos. E até 2050, em três regiões—África Subsaariana, Sul da Ásia e América Latina— que representam 55% da população do mundo em desenvolvimento a mudança climática poderia obrigar mais de 143 milhões de pessoas a se deslocarem dentro de seus países.

Só em 2017 houve 18,8 milhões de novos deslocamentos internos devido a desastres naturais, segundo o Centro para o Monitoramento do Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês). São sete milhões a mais do que os deslocados por conflitos armados no mesmo ano, embora nem todos tenham uma relação direta com a mudança climática. “É impossível estabelecer uma correlação entre os efeitos da mudança climática e o deslocamento forçado. Há múltiplos fatores que levam uma pessoa à decisão de abandonar seu lar”, ressalva Sylvain Ponserre, do IDMC. “Pouquíssimos migrantes citam a mudança climática como causa de seu deslocamento”, observa Sergio de Otto, responsável pela campanha sobre o tema na ONG Ecodes. Por isso, diz, é praticamente impossível pôr cifras a este drama. Salvo uma exceção, ligada a um efeito do aquecimento global que inequivocamente causa deslocamentos. Trata-se da elevação do nível do mar, que obriga comunidades litorâneas a abandonarem seus lares. É o que ocorre em Kiribati, um Estado composto por 33 ilhas no meio do Pacífico.

Já em 1989, um relatório da ONU advertia que Kiribati se tornaria o primeiro país a desaparecer engolido pelas águas. Foi 18 anos mais tarde quando Anote Tong, seu presidente entre 2003 e 2016, decidiu levar esse problema “muito a sério”. O alerta tinha estado lá durante décadas, admitiu ele em uma palestra Ted no final de 2015, mas só em 2007 o IPCC (painel de especialistas que assessora a ONU nesta questão) publicou seu quarto relatório, em que concluía “categoricamente” que a mudança climática era real e provocada pelo ser humano. “E previa cenários muito graves para países como o meu.” As partes mais altas das ilhas Kiribati ficam apenas dois metros acima do nível do mar, e as mais baixas a apenas alguns centímetros, por isso qualquer elevação das águas significa a perda de uma grande quantidade de terra. “Temos comunidades deslocadas. Já tiveram que emigrar”, contava Tong. Durante seu mandato, ele elaborou um plano de transferência ordenada da população das suas ilhas para Fiji.Kiribati.Vista aérea do arquipélago do Pacífico em risco de desaparecimento pela ascensão do nível do mar.J. GRATZER (GETTY)

A dificuldade de estabelecer outras correlações entre deslocamentos e mudança climática não quer dizer que elas não existam. É extensa a literatura mostrando como a vida de milhões de pessoas piora. A experiência dos profissionais humanitários e voluntários corrobora isso. “O Unicef há 70 anos trabalha sobre o terreno, e estamos vendo o impacto. Os fenômenos adversos são cada vez mais frequentes e severos”, diz Rees.

Em Bangladesh, todos os anos há inundações. “Mas neste ano a situação é pior”, contou Monoara Khatun, uma jovem de 23 anos, aos pesquisadores do Banco Mundial. Por isso, sua família decidiu se mudar do seu povoado para a capital, Dacca. Mas a decisão de partir do campo para a cidade nem sempre é a mais segura. Tampouco as grandes urbes estão preparadas para a mudança climática, e tampouco para acolher todos os que fogem dela e acabam em moradias precárias de bairros informais, alerta Ponserre, do IDMC.Bangladesh.

A maioria de migrações nas quais o clima é parte da equação ocorre no chamado sul global. “Enquanto isso, o norte é o causador de 80% das emissões de gases do efeito estufa”, denúncia De Otto. E são as nações em vias de desenvolvimento que pagarão pelo progresso das ricas, pois assumirão entre 75% e 80% do custo da mudança climática, calcula o Banco Mundial. “É importante a preparação para estes fenômenos, por isso são necessários mais recursos para os países pobres que não os têm”, alerta Rosa Otero, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) na Espanha.

“A mudança climática já está aqui, e o IPCC diz que ela avança mais rapidamente do que acreditávamos. É preciso incitar os políticos a levá-la a sério. Também em nossos países há mais incêndios, ondas de calor e furacões que antes não havia”, adverte De Otto. E como disse Achim Steiner, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: “Mesmo com todo o dinheiro do mundo, os ricos não vão poder comprar um futuro diferente”.

Enquanto isso, há quem possa fugir do desastre. Como a capital da Indonésia, que será transferida de Jacarta —que está afundando e sufocando na poluição— para a ilha de Bornéu. A nova cidade a ser construída alojará a 1,5 milhão de habitantes. Pouco se sabe sobre o que acontecerá com os outros 8,5 milhões de moradores da atual capital. Nem todos terão a oportunidade de escapar. Como não a têm os moradores do lago Chad, os agricultores moçambicanos nem as crianças guatemaltecas cujo futuro ficou truncado pela fome. Com a mudança climática, perdem os de sempre.

Pensamento do Dia


As crianças tomam conta do mundo

A luta contra o aquecimento global é hoje liderada por garotas de vários países do mundo. Estudantes secundaristas, a maioria. Mulheres muito jovens, carregando um novo espírito do tempo no mundo sem tempo, em que só há 12 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius e o futuro logo ali seja uma vida muito ruim para todos, impossível para os mais pobres e os mais frágeis. Jovens mulheres com muito pânico porque os pais e avós ferraram o planeta em que vão viver e se comportam como gente mimada e egoísta que faz apenas o que quer sem se preocupar com as consequências nem mesmo para seus próprios filhos e netos. Uma parcela da espécie humana chegou a um nível de individualismo que nem mesmo protege a prole naquilo que é fundamental – e o presente se torna absoluto. De repente os mais jovens perceberam que a sobrevivência está comprovadamente ameaçada e os governantes estão brincando no Twitter.

Esse movimento de crianças e adolescentes é movido pela compreensão dos muito jovens de que os adultos não são adultos. É o que eles têm dito. “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás”, afirmou a sueca Greta Thunberg em dezembro, durante a Cúpula do Clima, realizada na Polônia.

Ela tinha apenas 15 anos, em agosto de 2018, quando decidiu fazer um boicote às aulas todas as sextas-feiras e se postar diante do parlamento, em Estocolmo, para dar o seguinte recado: “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”. Desde então, Greta, uma menina de rosto redondo em que as tranças escoltam as bochechas, tornou-se uma referência internacional na luta contra o aquecimento global e tem inspirado movimentos de estudantes em vários países. Em 15 de março, planejam realizar uma greve global pelo clima.

A novíssima geração de humanos teve a extrema má sorte de nascer num momento histórico em que os pais não conseguem lidar com a questão do tempo. Os adultos atuais cresceram bombardeados pelo imperativo do consumo que prometia prazer imediato, reiniciado a cada ato de compra, num looping infinito. O tempo passou a ser um presente estendido. Tudo o que existe é o agora do qual é preciso arrancar o máximo. É este o mundo em que cidadãos foram convertidos em consumidores. É este o funcionamento dos adultos atuais num momento histórico em que o aquecimento global, comprovadamente causado por ação humana, se não for barrado, mudará a face do planeta.


Os muito jovens perceberam que a época em que as crianças fazem só o que querem por conta de pais com problemas para educar e dar limites começa a dar lugar a época em que as crianças percebem que os pais fazem só o que eles querem porque são incapazes de aceitar que seja necessário ter limites. Mesmo limites bem pequenos, como, por exemplo, reduzir o consumo de carne a apenas uma vez por semana, já que a pecuária é uma das principais causas do aquecimento global. Ou deixar o carro em casa e usar transporte público ou bicicletas. Ou reciclar as roupas. Há quem tenha preguiça até mesmo de se responsabilizar pelo lixo que produz.Quando os mais respeitados cientistas do clima alertam que há pouco mais de uma década para evitar que a Terra se torne um planeta hostil para a nossa espécie, que é preciso mudar os padrões de consumo já e, principalmente, pressionar os líderes para tomar as medidas mais do que urgentes, a reação parece ser a de seguir mantendo o presente ativo, incapazes de enfrentar uma ideia de futuro que não seja determinada por renovações do ato de consumo no pacto capitalista do presente contínuo.
“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, diz Greta Thunberg

“Todos acreditam que podemos resolver a crise (climática) sem esforço nem sacrifício”, escreveu Greta Thunberg em um de seus artigos. Hoje com 16 anos, ela demonstra a lucidez que falta na maior parte dos líderes mundiais. Este é um ponto importante do movimento dos estudantes pelo clima. Apesar de apontar a dificuldade dos adultos para mudar a vida cotidiana, assim como suas escolhas e a relação fundamental com o tempo, as crianças e adolescentes sabem que esta transformação não pode ser reduzida apenas a decisão de cada indivíduo. Os estudantes têm concentrado sua pressão sobre as autoridades públicas de cada país. São essas as lideranças que têm poder para barrar as grandes corporações, taxar os poluidores, determinar políticas capazes de interromper a escalada de destruição.

Não faltam estudos mostrando o que é preciso ser feito para evitar que o aquecimento global ultrapasse o 1,5 graus Celsius, condenando centenas de milhões de pessoas à fome e à miséria e varrendo do planeta maravilhas vivas como os corais. O que falta é fazer o que precisa ser feito, assim como cumprir os acordos já existentes. Se os avanços em escala global já eram difíceis antes, a recente ascensão de líderes de extrema direita em países estratégicos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, tornaram a situação desesperadora.

Esta também é uma característica da novíssima geração que está indo às ruas pelo clima. São crianças e adolescentes – e não são ingênuos. Em janeiro, no Fórum de Davos, na Suíça, Greta também não mediu palavras ao falar à plateia composta pela elite econômica global: “Algumas pessoas, algumas empresas, alguns tomadores de decisão em particular, sabem exatamente que valores inestimáveis têm sacrificado para continuar a ganhar quantias inimagináveis de dinheiro. E eu acho que muitos de vocês aqui hoje pertencem a esse grupo de pessoas”.

O que as crianças e adolescentes deste movimento crescente dizem é que, se quiserem ter onde viver, vão precisam tomar conta do mundo. Para contar. Já que os adultos que destroem o planeta não as contam.

Nunca houve nada parecido na história. Em nenhuma história. Os filhotes tentam salvar o mundo que os espécimes adultos destroem sistematicamente. Para além dos efeitos concretos sobre o futuro da humanidade, serão necessários muitos anos de estudos para compreender os efeitos desta inversão sobre a forma de compreender o mundo e seu lugar no mundo daqueles que serão adultos amanhã. Mas, para isso, é preciso antes ter amanhã.

O Brasil é o país mais biodiverso do planeta. Tem no seu território a maior porção da maior floresta tropical do mundo. Deveria estar na vanguarda do combate ao aquecimento global e à perda avassaladora de biodiversidade. Deveria ocupar seu lugar estratégico e se colocar na vanguarda de todos os movimentos pelo clima. Deveria. Mas não está.

E não está porque, depois de governos inconsequentes e estúpidos diante da crise climática, à esquerda e a à direita, o país tem hoje um governo de extrema-direita que, além de ser inconsequente e estúpido, também contém uma parcela de alucinados. O governo militarizado de Jair Bolsonaro pode conduzir o Brasil para o abismo. E, dada a importância da floresta amazônica, arrastar o planeta com ele.

É preciso ser muito claro neste momento e afirmar com todas as vogais e consoantes disponíveis que uma parcela do governo Bolsonaro é composta por gente que usa o poder de forma perigosa. Gente que brinca de guerra. Gente que brinca de arma. Gente com delírios de grandeza e desejo de destruição. Gente que tem tanto medo dos próprios demônios que enxerga o diabo em toda parte, de preferência no outro. Gente que enaltece torturadores, chama ditadores de estadistas e dá medalhas a milicianos.

Essa realidade fez com que o governo cada vez mais militarizado de Bolsonaro – já são oito os militares no primeiro escalão, sem contar o vice e o porta-voz, e dezenas contando os demais escalões, e crescendo... – criasse uma nova anomalia no Brasil. Depois de passar por uma ditadura de 21 anos, em que os generais permitiram e/ou ordenaram a tortura, o sequestro e o assassinato de civis, muitos ainda hoje desaparecidos, a cada vez que é anunciado um novo general no governo, mais gente sente alívio. A situação no Brasil chegou a um ponto – e com apenas dois meses de governo Bolsonaro – que qualquer pessoa com aparência de adulto e aura de autoridade gera alívio mesmo que apenas alguns meses atrás gerasse pânico naqueles que sempre defenderam a democracia.

Dias atrás uma amiga de esquerda, com histórico familiar de repressão na ditadura, me contava, assustada consigo mesma, que se acalmava a cada vez que o general Hamilton Mourão abria a boca. Não é a tal Síndrome de Estocolmo, mas o fato de que a certeza de estar na mão de perversos, de adultos infantilizados, de um pai que deixa os filhos brincarem de governarem o país porque também brinca de governar o país tornou a realidade muito apavorante. Como os generais em geral falam frases com sentido, além de sujeito, verbo e predicado, e mesmo que seja um sentido do qual se discorde, até pessoas críticas têm se agarrado a esses fiapos de sanidade para conseguirem dormir à noite.

Não se pode esquecer, porém, uma possibilidade e um fato. É possível que os generais também não estejam dormindo à noite, pensando em como manter a imagem das Forças Armadas a salvo num governo em que Bolsonaro parece ser menos controlável do que acreditavam, e agora que já se tornou tarde demais para dissociar a imagem das Forças Armadas da aventura arriscadíssima que é um governo Bolsonaro.

E é um fato que a política desastrosa para a Amazônia ganhou um corpo e um rosto justamente no projeto e na propaganda da ditadura militar, nos anos 70, quando a floresta teve grandes porções destruídas e povos indígenas dizimados para abrir estradas, construir hidrelétricas e implantar grandes plantas de mineração. Esse mesmo imaginário do “deserto verde” ou “da terra sem homens para homens sem terra”, dois dos slogans da ditadura que permanecem até hoje, nos quais os povos da floresta são considerados não humanos, é ainda o que norteia os discursos do governo Bolsonaro, intimamente conectado com o agronegócio predatório que pretende avançar ainda mais sobre a Amazônia.

O modo de operação pouco familiarizado com a democracia dos militares se revelou, mais uma vez, na preocupação com o encontro que o Papa Francisco vai realizar no Vaticano, em outubro, para debater a Amazônia com 250 bispos. Como revelou a jornalista Tânia Monteiro, no jornal O Estado de S. Paulo, os militares do governo militarizado de Bolsonaro temem que o “clero progressista” da Igreja Católica possa se tornar uma referência de oposição, ocupando o vácuo deixado pela incapacidade de articulação da esquerda pós-PT.

Os militares decidiram agir para impedir que críticas ao governo Bolsonaro ganhem fórum internacional no sínodo que vai debater durante 23 dias a crise climática causada por desmatamento e as ameaças aos povos da floresta. Uma das ações será tentar convencer o governo italiano a interceder junto à Santa Sé para evitar ataques diretos à política ambiental e social do governo brasileiro durante o Sínodo sobre Amazônia.

Entre os temas do encontro global, um assunto causa particular preocupação num governo que pretende tornar comercializáveis as terras públicas de usufruto exclusivo dos indígenas: “ O grito dos índios é semelhante ao grito do povo de Deus no Egito”. Segundo o Estadão, o general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional e supostamente o adulto com mais influência sobre o garoto Bolsonaro, saiu-se com essa: “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”. E ainda essa: “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”.

Como é fácil perceber, ainda que os generais no governo militarizado de Bolsonaro demonstrem capacidade cognitiva, o que é um alívio no quadro de indigência intelectual do ministério, claramente estão desconectados dos desafios da crise climática. Também eles demonstram acreditar viver num mundo que já não existe. Parecem tão preocupados em apagar sua intervenção criminosa no passado recente que se tornaram incapazes de enxergar o futuro logo adiante.

A Amazônia é assunto do planeta porque, sempre que o Brasil destrói a floresta, reduz as possibilidade de controlar o aquecimento global. Tanto é assunto do mundo que o Brasil recebe bilhões de reais da Noruega e da Alemanha para manter a floresta em pé. Não fosse esse dinheiro, nem mesmo atividades básicas de fiscalização do Ibama teriam sido executadas no ano passado.

Em nota, o Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo general Augusto Heleno, fez uma afirmação digna do famoso slogan da ditadura para a Amazônia – “Integrar para não Entregar”: “Parte dos temas do referido evento (Sínodo da Amazônia) tratam de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional. Por isso, reiteramos o entendimento do GSI de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia Brasileira”. O planeta realmente espera que o Brasil cuide da Amazônia, e espera há bastante tempo. Os povos da floresta, que são quem melhor a cuidam, em geral contra os interesses dos diferentes governos no poder e apesar dos sucessivos massacres, também esperam que o Brasil decida cuidar da Amazônia.

Se o ministério militarizado de Bolsonaro quiser acionar a manipuladora “ameaça à soberania nacional”, os tais “gringos que estão invadindo a Amazônia”, que peça antes ao presidente para suspender a presença das corporações transnacionais na Amazônia, assim como os projetos destruidores. Pode começar com a gigantesca exploração de ouro da mineradora canadense Belo Sun, na Volta Grande do Xingu, uma catástrofe anunciada que teve como consultor o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, hoje mais uma vez à frente da Fundação Nacional do Índio (Funai), num evidente conflito de interesses que, como de hábito, foi ignorado. Os povos da floresta agradecerão. Os brasileiros urbanos conscientes também.

Enquanto no Brasil é preciso debater os destinos da Amazônia neste nível primário, como se ainda vivêssemos no século 20, os estudantes se organizam para lutar pelo planeta, dando lições de cidadania a governantes muito mais velhos. Em novembro, 15 mil estudantes australianos boicotaram as aulas para dizer às autoridades públicas que era obrigatório combater o aquecimento global. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, reagiu mal: “O que queremos nas escolas é mais aprendizagem e menos ativismo”. Algo que podemos imaginar Bolsonaro dizendo com ainda piores palavras, talvez ameaçando mandar os estudantes para a “ponta da praia”, como ele costuma mencionar, referindo-se ao lugar clandestino onde eram torturados e assassinados os opositores mortos pelo regime de exceção que ele tanto exalta.
“Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”

Os jovens australianos responderam ao seu ministro com um cartaz nas ruas: “Nós seremos menos ativistas se vocês fizerem menos merda”. As manifestações de estudantes exigindo ações dos adultos diante da crise climática multiplicaram-se, especialmente na Europa, chegando a ter dezenas de milhares de manifestantes em países como Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça e França.

No centro dos numerosos protestos da Bélgica está uma adolescente de 17 anos chamada Anuna De Wever. Inspirada num vídeo gravado por Greta, no qual a sueca estimulava os estudantes a fazer uma greve climática diante da inércia dos adultos, ela e sua melhor amiga gravaram seu próprio vídeo. Como contou ao BuzzFedd News, esperavam apenas 20 pessoas num protesto marcado para o início de janeiro. Apareceram 3.000. E os protestos cresceram até dezenas de milhares semana após semana.

A ministra do meio ambiente da Bélgica mentiu aos estudantes e ao país, afirmando que os serviços de inteligência haviam informado que os protestos eram um complô para derrubá-la. Foi obrigada a reconhecer a mentira e a renunciar. Às autoridades desconcertadas, que tentaram justificar sua incompetência diante do maior desafio global cobrando dos manifestantes estudo e disciplina, os estudantes responderam com um cartaz bem objetivo: “Eu farei a minha lição de casa quando você fizer a sua”.

Quando se afirma que o governo Bolsonaro é uma vanguarda do atraso, é importante ter a dimensão de que a qualidade das lutas também determinam – e muito – a qualidade do país. Há vários anos o debate tem sido não só interditado como desqualificado no Brasil, o que é outra forma de interdição. Na semana passada, alunos e professores de escolas de vários países fizeram um protesto pela falta de conteúdos ligados à crise climática, o tema que deveria atravessar todos os outros também na sala de aula. “Ensine a verdade”, diziam os cartazes. Ou: “Nossas crianças podem lidar com a verdade. Você pode?”. Um professor comentou, durante a manifestação em Londres: “Às vezes me pergunto: qual é o sentido de ensinar quando ninguém está ensinando a verdade sobre o futuro?”.

No Brasil, os estudantes das escolas públicas precisam se rebelar para ter ensino com qualidade mínima e respeito aos seus direitos mais básicos, como aconteceu em 2015 e 2016. Os alunos brasileiros têm um dos piores desempenhos do mundo em disciplinas como português e matemática. E a maioria dos professores não ganha o suficiente sequer para viver com dignidade, quanto mais para se atualizar e estudar.

Nos dias atuais, porém, nem mesmo essa luta básica, óbvia, é possível travar, porque há que se preocupar com os falsos problemas. Um grupo de delirantes e/ou oportunistas decidiu inventar que os problemas das escolas são ideologia de gênero e outras bobagens criadas por ideólogos de extrema direita. Criaram, entre outras aberrações, o Escola Sem Partido, um projeto autoritário que toma o partido do que há de pior num momento em que todos deveriam estar concentrados nos problemas reais que arrancam as possibilidades de milhões de crianças e adolescentes brasileiros. Para conseguir o que querem, eles mentem, criam notícias falsas, como as mamadeiras com bico em formato de pênis e os professores ensinando crianças a fazer surubas. A falta de caráter dessas pessoas não encontra limites. E o governo não é o limite, porque hoje eles são governo.

Assim, em vez de lutar pela educação para enfrentar a crise climática, como estão fazendo os estudantes de países de outras partes do mundo, exigindo ciência e pensamento de qualidade nas escolas, no Brasil é preciso lutar para que a teoria científica da evolução de Charles Darwin, base para a compreensão das espécies e de muito do que foi possível compreender sobre a vida desde então, continue a ser ensinada como aquilo que é, uma teoria científica – e não uma teoria alternativa ao mito religioso do criacionismo. Os cada vez mais numerosos fundamentalistas evangélicos deveriam abrir mão dos medicamentos que salvam suas vidas e dos celulares onde espalham seu ódio antes de equiparar a ciência à religião, desrespeitando a ambas.

Em vez de concentrar todos os esforços do país em melhorar a qualidade da educação, Bolsonaro está preocupado em censurar as questões do ENEM. O ministro da Educação manda um email para as escolas dizendo que os alunos precisam cantar o hino nacional no início do ano letivo, os professores devem ler uma carta que termina com o slogan da campanha de Bolsonaro e a direção deve gravar o momento despachando um trecho do vídeo para Brasília. A ministra da Mulher diz que meninas vestem rosa, meninos azul. O ministro das Relações Exteriores afirma que o aquecimento global é um complô da esquerda. O ministro do Meio Ambiente diz que a discussão sobre “se há ou não aquecimento global é secundária”. O “secundária” já seria terrível, mas ele ainda coloca dúvida sobre aquilo que é um consenso científico mundial e que cada um já consegue perceber no seu cotidiano.

Os debates importantes, os que realmente podem representar avanço para o país, têm sido adiados porque é preciso se defender dessa gente que lança frases sem lastro na realidade, mas que hoje têm poder para afirmar mentiras como verdades. As melhores mentes do país são obrigadas a concentrar esforços em descobrir uma maneira de impedir que delírios virem lei. E enquanto isso o Brasil perde e perde e perde. Já não é mais nem pelo básico que se luta, mas para impedir que a realidade seja convertida num delírio. Luta-se também para que as palavras recuperem seu significado.

Os estudantes brasileiros, pela importância do Brasil na redução das emissões de gases que provocam o aquecimento global, deveriam ter protagonismo na greve climática marcada para 15 de março. Mas até este momento não têm. Porque vivem num país em que os adultos no poder são tão precários, mas tão precários, que é preciso explicar para o ministro do Meio Ambiente que não há nada mais importante neste momento histórico do que saber quem é Chico Mendes. É preciso ficar repetindo e repetindo o óbvio para que a estupidez não vire inteligência.

Os estudantes suíços, por exemplo, estão exigindo que nenhuma escola use aviões em suas excursões de estudos, já que voar tem grande impacto sobre o meio ambiente. A própria Greta, que parou há anos de comer carne e de comprar qualquer coisa que não seja absolutamente essencial, deixou de voar em 2015. Desde que a filha começou a se preocupar com a crise climática, sua mãe, uma famosa cantora de ópera, desistiu da carreira internacional por conta da pegada de carbono da aviação. A pergunta é óbvia: como debater questões como estas, num país como o Brasil, em que estudantes têm dificuldade para chegar à escola por falta de transporte?

Talvez começando por entender que é obrigatório debater. Acreditar que a crise climática é um tema para estudantes ricos de países ricos é um erro. E um erro perigoso. Enfrentar a crise climática não é luxo, é necessidade urgente de todos. Nada aumentará mais a desigualdade e atingirá os mais pobres do que a crise climática. O aquecimento global atravessa todos os temas e todas as áreas, inclusive a racial e a de gênero. No Brasil, possivelmente as mais afetadas serão as mulheres negras, o contingente mais frágil e oprimido da população. É isso que as crianças e adolescentes estão dizendo. Mas, também por deficiência de educação, e não só nas escolas públicas, a maioria dos estudantes brasileiros tem dificuldade para fazer as conexões e compreender que, ao lutar pela floresta amazônica, estará lutando pela redução da desigualdade e por mais acesso aos recursos e às políticas públicas.
As mulheres, e principalmente as negras, serão as mais afetadas pela crise climática

Nos Estados Unidos, a greve pelo clima de 15 de março está sendo organizada em sua maioria por meninas, muitas delas negras. A Organização Mundial da Saúde já mostrou que as mulheres serão as mais atingidas pelos desastres naturais causados pelo aquecimento global e também serão as mais atingidas porque em muitas sociedades ainda cabe a elas a responsabilidade de conseguir água, energia e alimento. São também as mulheres as primeiras a perderem oportunidades quando os recursos naturais se tornam escassos. “Se você é vítima de um sistema de opressão, você é mais afetado pela crise climática. E isso vale para as mulheres", disse Jamie Margolin, uma ativista climática americana de 17 anos, ao BuzzFeed News. “Temos que nos levantar e levantar nossas vozes.”

Há uma particularidade que torna o enfrentamento da crise climática ainda mais difícil no Brasil. O crescimento acelerado dos evangélicos neopentecostais nas últimas décadas fortaleceu a crença no apocalipse bíblico. Para uma parcela deles, que apoiou massivamente a eleição de Bolsonaro, as catástrofes provocadas pelo aquecimento global não foram causadas por ação humana, mas sim estão previstas na Bíblia como os acontecimentos que prenunciam o Armagedom. Ou, mesmo que tenham sido causadas por ação humana, já estava escrito. É bastante possível que seus líderes não acreditem nisso, apenas usem uma interpretação literal da Bíblia para melhor controlar os corpos e barganhar poder. Mas há uma massa de fiéis que acredita. E que cresce.
Uma linha dos evangélicos acredita que as catástrofes provocadas pelo aquecimento global são profecias bíblicas que prenunciam o apocalipse

Tudo o que pode ser visto como catástrofe climática causada pelo uso de combustíveis fósseis, para essa linha do evangelismo é apenas cumprimento da profecia bíblica. São eles que pressionam para mudar a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, porque esta cidade seria o palco do Armagedom. Mais uma vez é preciso sublinhar que os articuladores desta ideia têm interesses bem mais imediatos e mundanos, que revestem com uma retórica bíblica para santificar o que é totalmente terreno.

Não é permitido esquecer que Bolsonaro foi batizado no Rio Jordão, em Israel, em 2016, e que pastores como Silas Malafaia promovem excursões para Israel. Para esta camada de evangélicos que só cresce no Brasil, a catástrofe é bem vinda, já que eles têm certeza que serão salvos porque são os únicos puros. Salvar-se, portanto, seria apenas uma questão de ter a fé certa. A deles, claro. Como então demandar razão neste país? Talvez seja preciso avisá-los que o rio Jordão está se tornando mais e mais estreito devido à seca causada pela crise climática. Se o processo continuar, logo será preciso encontrar outro rio para batismos espetaculares.

Se as novas gerações (e também as velhas) dos povos da floresta fossem escutadas, elas poderiam dar aula para os estudantes que se rebelam pelo clima na Europa. Também na Amazônia o protagonismo das mulheres nas lutas de indígenas, quilombolas e beiradeiros é cada vez maior – e as lideranças são cada vez mais jovens. O profundo conhecimento dos povos da floresta, imprescindível para enfrentar a crise climática, e a rebelião que sua luta representa, porém, têm sido sistematicamente caladas. O projeto de Bolsonaro, como ele afirmou várias vezes, é que indígenas e quilombolas se tornem “ser humano como nós”. Se o “nós” é ele, pode se imaginar o ganho de conhecimento que as gerações da floresta terão.

Sem a maior floresta tropical do mundo, a vida humana no planeta não tem nenhuma chance. No Brasil, como nos outros países amazônicos da América Latina, os povos da floresta estão lutando quase sozinhos para mantê-la em pé. E morrendo. Os filhos destes lutadores têm precisado assumir a luta dos pais assassinados. As jovens garotas que lideram a rebelião dos estudantes pelo clima na Europa têm o desafio de fazer a ponte com as jovens garotas da floresta amazônica, o centro geográfico onde o futuro próximo está sendo disputado. E vice-versa.

Greta Thunberg e Anuna De Weve, duas das principais lideranças estudantis na Europa, trazem muitas novidades ao ativismo climático. Greta, a garota que inspirou dezenas de milhares de estudantes a se unir pelo clima, tem diagnóstico de transtorno do espectro do autismo. Embora não tenha sido esse o objetivo, seu ativismo pelo clima mostra a potência política de uma diferença. Em entrevista à revista NewYorker, ela disse: "Eu vejo o mundo um pouco diferente, a partir de outra perspectiva. Tenho um interesse especial. É muito comum que as pessoas, no espectro do autismo, tenham um interesse especial. Posso fazer a mesma coisa por horas”. Ou por anos, como já ficou provado.

Anuna é menina na certidão de nascimento, tornou-se menino durante a escola fundamental e hoje se define como “gênero fluido” e prefere os pronomes femininos. Ela relaciona a luta pelo clima diretamente com a identidade de gênero. Aquilo que para muitos é imutável, para ela é possível mudar, percepção que parte da sua própria experiência de ser. "Ter gênero fluido sendo jovem faz com que eu veja o mundo um pouco diferente", disse. "Eu não olho para o mainstream e o que eles pensam. Começo a ter meus próprios valores, princípios próprios, e penso no que não está dando certo neste mundo e o que posso fazer e melhorar em vez de apenas fechar os olhos.”

Velhos ativistas do clima estão perplexos – e animados. “O movimento que Greta lançou é uma das coisas mais esperançosas em meus 30 anos de trabalho na questão climática. Ela lança o desafio geracional do aquecimento global e desafia adultos a provar que são, na verdade, adultos”, disse Bill McKibben, fundador da 350.org, ao The Guardian.

Num mundo em que as decisões ainda são majoritariamente tomadas por homens, as garotas levantaram a voz. Os milhares de meninos de sua geração que vão para a rua com elas não parecem ter problemas com o protagonismo feminino dos protestos. Meninas como Greta, Anuna e outras tantas, porque elas são muitas, não querem ocupar o lugar dos adultos. Não é disso que se trata. O que elas querem talvez seja ainda mais difícil. Ao denunciar a infantilização dos governantes, ela reivindicam que os adultos se “adultizem”.

O afiado cronista brasileiro Nelson Rodrigues, que era também um exímio frasista, ao ser perguntado que conselho daria aos jovens, disse: “Envelheçam!”. As crianças que estão sendo obrigadas a tomar conta do mundo dizem hoje aos adultos: “Cresçam!”.

Chegamos a este ponto: as crianças precisam pedir aos adultos que sejam adultos. Que tenham limites e se responsabilizem. Ou, em suas palavras: “Parem de cagar no planeta em que vamos viver”.
Eliane Brum

Notícias da terra e da luta amazônica

No dia em que o mundo parou para pedir por ações contra o clima, inúmeras batalhas continuaram sendo travadas em cada canto das florestas brasileiras. Falarei de uma ocorrida esta semana. Um grupo de oito homens se move no meio da noite de segunda para terça-feira para sair com três caminhões carregados de madeira tirada na Terra Arariboia, no Maranhão. Uma moto os acompanha. Estão bem perto da aldeia Três Passagens. Do meio do mato surgem indígenas guajajara que integram o grupo Guardiões da Floresta. Os madeireiros atiram em direção aos indígenas, e eles revidam com arco e flecha e espingardas. Ninguém se fere, felizmente, e os madeireiros fogem.


Essas escaramuças acontecem em várias partes da Amazônia. O que há de comum em todos os eventos é a ausência do setor público. Ibama, Funai, Polícia Militar, Polícia Federal, todos os órgãos que poderiam se envolver para dar uma resposta a essa ação contínua, e cada vez mais agressiva, de tirar madeira da floresta ilegalmente estão ausentes. Em algumas tribos, os índios se organizaram em grupos de monitoramento da floresta e frequentemente se deparam com madeireiros. Naquela noite, lá na Terra Indígena (TI) Arariboia, os indígenas decidiram queimar os caminhões e a moto depois que os madeireiros foram embora. Eles sabem que adianta pouco avisar à polícia. No dia seguinte, os madeireiros voltaram e filmaram o que restou dos caminhões para circular nos grupos de WhatsApp da cidade de Amarante. Assim vai se alimentando o conflito.

Ontem mesmo, no dia em que milhões paravam no mundo pelo clima e pelo meio ambiente, um cacique Ka’apor, que está na TI Alto Turiaçu, também no Maranhão, pede socorro por WhatsApp para Antonio Wilson Guajajara, que é um dos guardiões da floresta e que está na Terra Caru. Avisa que perto do município de Zé Doca — o nome da cidade foi dado em homenagem a um grileiro — dentro da terra indígena foi localizado um acampamento de madeireiro.

As terras Caru, Awá e Alto Turiaçu são contíguas e ao lado da Reserva Biológica Gurupi, no Maranhão. A TI Arariboia fica mais ao sul, é cercada de inúmeros povoados e nela vivem 14 mil guajajara e alguns awá guajá isolados. Os awá guajá que vivem na Terra Caru, onde fiz reportagem em 2012, são definidos como de recente contato, mas existem integrantes dessa etnia que fogem de qualquer contato. São os isolados.

Nessas terras indígenas do Maranhão, os índios organizaram o grupo Guardiões da Floresta desde 2012.

— A gente trabalha nessas quatro terras e também na do Rio Pindaré fazendo vigilância e passando informações para as autoridades. Além disso, as mulheres das aldeias fazem trabalho educativo nos povoados, em palestras e conversas de conscientização. São as guerreiras da floresta. Nunca houve um ato de violência, nenhuma morte felizmente — disse Antonio Wilson Guajajara.

Ontem no Alto Turiaçu, os indíos ka’apor fazendo a limpeza do limite da terra encontraram um grupo grande de invasores, e foi por isso que um líder pediu ajuda a Antonio Wilson que estava na terra Caru.

— Eu sei que é um momento delicado, mas vou assim mesmo. Não podemos recuar. Quero dialogar. Se a gente tivesse mais apoio seria melhor — disse o líder Guajajara.

A Terra Indígena Arariboia enfrentou em 2015/2016 um enorme incêndio que destruiu metade dos seus 412 mil hectares. Na época, foi possível ver os isolados se deslocando. Eles estão ficando cada vez mais expostos. E vulneráveis.

Carlos Travassos que foi chefe do setor de índios isolados da Funai conta que a TI Arariboia está sendo assediada por dois tipos de demanda. A de madeira de lei, que ataca o centro da terra onde estão os isolados, e a de madeira para fazer estacas para cercas das inúmeras fazendas da região.

— O primeiro é um mercado que está atrás de ipê, maçaranduba, sapucaia, copaiba, cumaru, tatajuba e os últimos cedros. O outro mercado é gigantesco porque tem um mundo de fazenda perto da TI. É pulverizado, porque um fazendeiro entra na terra, tira as madeiras e redistribui para outros. Os guardiões estão ativos, mas eles estão sozinhos. E as invasões estão atingindo em cheio os últimos locais das grandes árvores onde estão os awá guajá isolados — explica Carlos Travassos.

Assim, os índios por sua conta vão tentando defender a si mesmos e a floresta.

Não podemos esperar

Começou em frente ao parlamento sueco em 27 de agosto, um dia de aula como outro qualquer. Greta sentou-se com o cartaz e os panfletos que havia feito em sua casa. Foi a primeira greve escolar. Desde então, as sextas-feiras deixaram de ser dias letivos normais. Os outros, muitos de nós, pegaram o bastão na Austrália, Alemanha, Bélgica e, logo, em todo o mundo. Sabíamos que havia uma crise climática. Não apenas porque as florestas da Suécia ou dos Estados Unidos queimaram, ou por causa das bruscas mudanças entre inundações e secas na Alemanha e na Austrália. Sabíamos disso porque tudo o que líamos e víamos gritava que algo estava muito errado.

Aquele primeiro dia de se recusar a ir à escola foi um dia de solidão, mas desde então o movimento dos grevistas pelo clima varreu o planeta. Hoje, jovens de mais de 90 países deixam suas salas de aula para exigir medidas em face da maior ameaça que enfrentamos. Hoje fazemos greve de Londres a Kampala, de Varsóvia a Bangcoc, porque os políticos nos decepcionaram. Presenciamos anos de negociações, acordos lamentáveis sobre a mudança climática, empresas de combustíveis fósseis com carta branca para abrir e perfurar nossas terras e queimar nosso futuro em benefício próprio. Vimos que as fraturas hídricas, a perfuração em águas profundas e as extrações de carvão continuam. Os políticos sabem a verdade sobre a mudança climática e entregaram voluntariamente o nosso futuro a especuladores cuja ânsia por dinheiro rápido põe em perigo a nossa existência.


O Painel Intergovernamental da ONU sobre a Mudança Climática do ano passado deixou muito claro os enormes perigos caso o aquecimento global ultrapasse 1,5ºC. Se quisermos evitar isso, as emissões devem diminuir a toda velocidade, para que, quando tivermos entre 20 e 30 anos, possamos viver em um mundo transformado. Se aqueles que agora ocupam o poder não agirem, será a nossa geração que sofrerá as consequências. Aqueles de nós que têm menos de 20 anos hoje talvez estejam vivos em 2080, e teremos de enfrentar um mundo que aqueceu 4 graus. Os efeitos desse aquecimento seriam desastrosos.

Não se trata apenas de reduzir emissões, mas de justiça; o sistema atual não funciona, porque só beneficia os ricos. O luxo desfrutado por alguns poucos no norte do planeta depende do sofrimento das pessoas que vivem no sul. Vimos políticos hesitarem e se dedicarem a jogos políticos em vez de reconhecerem que as soluções de que necessitamos não podem ser encontradas no sistema atual. Não querem encarar os fatos: para tentar fazer algo diante da crise climática precisamos mudar o sistema.

Este movimento era inevitável, não tínhamos outra escolha. A imensa maioria dos que fazem greve hoje pelo clima ainda não pode votar. Apesar de ver a crise climática, apesar de conhecer a realidade, não estamos autorizados a escolher quem tomará as decisões a respeito. Faça a você mesmo esta pergunta: também não faria greve se pensasse que poderia ajudá-lo a garantir o seu futuro? É por isso que hoje vamos abandonar as salas de aula, esquecer as lições e sair às ruas para gritar “Basta!”. Os adultos não param de dizer: “Temos a obrigação de dar esperança aos jovens”. Mas nós não queremos a esperança deles. Não queremos que tenham esperança. Queremos que sintam pânico e façam algo.

Acreditamos que os adultos tomariam as decisões apropriadas para garantir o futuro da próxima geração. É claro que não temos todas as respostas. Mas o que sabemos é que precisamos manter os combustíveis fósseis no subsolo, eliminar gradualmente os subsídios à produção de energias sujas, investir seriamente nas renováveis e começar a fazer perguntas desconfortáveis sobre como estruturamos nossas economias, quem sai ganhando e quem sai perdendo.

É muito importante que façamos tudo isso já. As mudanças necessárias exigem que todo mundo esteja consciente de que isto é uma crise e se comprometa a fazer transformações radicais. Acreditamos firmemente que podemos salvar o planeta, mas temos de agir agora.

Não há zonas cinzentas quando a sobrevivência está em jogo. Não existe mal menor. É por isso que hoje os jovens fazem greve em todos os cantos do mundo, e é por isso que pedimos aos mais velhos que se juntem a nós nas ruas. Quando a nossa casa está em chamas, não podemos deixar que sejam as crianças que as apaguem; precisamos que os adultos se responsabilizem por terem acendido a faísca. Assim, por uma vez, peçamos aos adultos que sigam nosso exemplo: não podemos continuar esperando.
Greta Thunberg (Suécia), Anna Taylor (reino Unido), Holly Gillibrand (Reino Unido), Luisa Neubauer (Alemanha), Kyra Gantois (Bélgica), Anuna de Wever (Bélgica), Adelaide Charlier (Bélgica) e Alexandria Villasenor (Estados Unidos)