terça-feira, 16 de julho de 2019

Do otimismo ao pessimismo

No século XX, até o final dos anos 1970, o Brasil foi o País que mais cresceu no mundo ocidental. O otimismo era uma marca nacional. Os desafios enfrentados eram sempre vencidos. As divergências políticas resumiam-se às distintas formas de crescimento econômico. Mas não havia dúvida: o Brasil era o País do futuro. Uma ampla literatura foi produzida apresentando diversos projetos econômicos, um mais detalhado que outro. No Parlamento, na imprensa, na universidade, no mundo editorial, debatia-se os rumos do País com entusiasmo.

Era raro, muito raro, alguém escolher morar no exterior e desenvolver sua vida profissional fora daqui. Era algo exótico, tendo em vista as oportunidades criadas pelo progresso econômico. Acontecia o inverso: o Brasil recebia anualmente milhares e milhares de imigrantes. Internamente, a população se deslocava em direção às áreas mais desenvolvidas. O futuro — mesmo que imediato — era sempre melhor que o presente.

Acreditava-se que o vazio demográfico das regiões Norte e Centro-Oeste era um incentivo ao crescimento populacional. A ocupação destas regiões era uma tarefa considerada de segurança nacional. Por outro lado, surgiram as primeiras metrópoles. A rápida expansão urbana era motivo de orgulho. São Paulo, nos anos 1950, começou a ser chamada de “a cidade que mais cresce no mundo”. Progresso e desenvolvimento eram as palavras mais utilizadas nos discursos políticos. Um queria ser mais otimista que o outro, mais realizador, mais ousado, mais moderno.

O passado recente era considerado velho, arcaico. A velocidade dava o tom. Velocidade dos carros, das construções de prédios e grandes obras públicas, da edificação de uma capital federal no interior a centenas de quilômetros do litoral, onde não havia, inicialmente, sequer uma choupana. Nada era considerado impossível.

As realizações eram evidentes. O discurso tinha na prática a sua comprovação. O País crescia rapidamente. Tudo era motivo de orgulho. O futebol (e outros esportes, como o boxe, basquete e tênis), o cinema, a arquitetura, a pintura, a literatura. Intelectuais e artistas estrangeiros visitavam e se encantavam com o Brasil. O País era visto como uma futura potência. Era só questão de tempo. Contudo, ao iniciar os anos 1980 (e desde então), os sucessivos tropeços econômicos e políticos geraram o pessimismo. Abandonar o Brasil virou moda. Fracassamos? Por que não encontramos uma saída? Ainda é tempo?

Tá reclamando do quê? Senado aprova

O povo deu procuração para o Bolsonaro, e ele está exercendo
Jorginho Mello (PL-SC)

O povo brasileiro deu uma procuração para o presidente tomar decisões. Essa é uma decisão que ele está tomando
Omar Aziz (PSD-AM)

Do nióbio a Washington

Quem assistiu à alocução no Facebook do presidente da República em que ele alardeou as virtudes do nióbio na confecção de adereços e badulaques teve motivos bastante fortes para procurar um esconderijo até que o estupor se diluísse em constrangimento. Diante da cena, imaginamos que mesmo os eleitores mais fiéis do capitão devem ter sentido a escandalosa dissonância cognitiva entre o ocupante e a função, e os menos engajados hão de ter suspirado de saudades dos ventos de Dilma, das mesóclises de Temer, das recorrentes referências de Lula ao ludopédio, das exortações raivosas de Collor a uma gente que chamava de sua e, por que não, do odor das cavalariças do general Figueiredo, que o preferia ao cheiro do povo.

Que ninguém pense, contudo, que Jair Bolsonaro é o pioneiro em iniciativas que beiram a idiotia ao tentar promover nossas exportações, demonstrando um comportamento tão amador quanto desastrado em seu sales speech. Se foi o primeiro presidente a atuar como mascate improvisado, miríades de políticos brasileiros já deram provas candentes de quão nosso país pode ser amador quando seus representantes se arvoram a missão de apresentar ao mundo um simulacro ralo de nossa competitividade. Inferência da armadilha que atribui a nossos indígenas um fascínio por pedrinhas brilhantes, não são poucos os aventureiros que deslustraram a liturgia das funções para tentarem emular o colonizador espertalhão, no caso, diante dos gringos incautos.

Nos idos dos 1980, o falecido deputado Ricardo Fiúza não se cansava de contar as incursões de seus empedernidos pares às areias do Oriente Médio. Certa feita, em relato amparado por testemunhas, o então parlamentar Theodorico Ferraço não se acanhou diante do austero e imponente então monarca saudita, o rei Fahd bin Abdul Aziz al-Saud, e valeu-se da audiência para tirar da pasta várias amostras de cubos de granito, produto de destaque na pauta exportadora de seu Espírito Santo natal. Com desenvoltura de fazer inveja aos camelôs que exibem raladores de legumes nas calçadas do mundo, não teve pruridos em desafiar o monarca a encarar a estultice de seu governo de privilegiar a compra de mármores italianos de Carrara, a preços elevados, em detrimento do “similar” capixaba. Inábil com os dedos, ponto fulcral na anatomia de um mascate de grei, derrubou as pedrinhas no colo de Sua Majestade. Para coroar a tarde, recitou uma lista de preços, para desespero do intérprete, a quem, naquele momento, ocorreu que teria sido bom negócio não ter nascido.

Nessa mesma excursão, mais uma das tantas missões inglórias promovidas pelo Congresso Nacional, o senador paraense Gabriel Hermes, tomado da melhor das intenções de desfraldar nas barbas dos muezins de minaretes a bandeira valetudinária do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, a que era ligado, saudou o rei Fahd verbosamente, ressaltando que o fazia em nome de toda a gente briosa do Senai. Sem saber ao certo o que vinha a ser aquela sigla, muito menos o que fazia pauta tão paroquial numa reunião de elevada representatividade, o pobre intérprete traduziu como pôde. Ora, pensou, o senador aludia ao Sinai, então área ocupada por Israel, subtraída ao Egito. O que seria aquilo, pensou o rei? Uma provocação em sua própria casa, cujas portas abrira com a fidalguia que só os filhos do deserto conhecem? Ultrajado, deixou o recinto acompanhado de solidário séquito, alegando mal-estar. E para trás lá ficou a comitiva verde-amarela, recolhendo cubos de granito e as migalhas de seu despreparo.

Foi por essa época, a crer no que dizia o deputado pernambucano, que outra comitiva foi ao Japão. Nem sempre a parvoíce se manifestava apenas à hora de mascatear as glórias terrenas de seus rincões de origem. Pois eis que à saída do Kendaren, a poderosa federação das indústrias do arquipélago, vários parlamentares e cônjuges desciam pelo elevador principal quando a esposa do então deputado Ernâni Sátiro, da Paraíba, manifestou que acabara de perder ali mesmo o precioso anel de brilhante que ganhara do marido. Solidário com a desdita da companheira, em altos brados o parlamentar proibiu que qualquer um ali saísse do elevador sem antes ser submetido a uma revista que ele próprio conduziria. Em defesa de seu zelo, segredou à esposa que era ciclópica a quantidade de ladrões no recinto.

Mais parece que essa comitiva estava mesmo fadada ao infortúnio. Pois coube a outro parlamentar a desventura de ter vivido um anticlímax que quase desaguou nas páginas policiais. Curioso em se iniciar nas alardeadas delícias do trato sensual de uma gueixa, instou a esposa a fazer uma excursão ao Monte Fuji. Quanto a ele, alegou uma tarde de reuniões com dirigentes de alto calibre, interessados em investir no Estado da Bahia. Sozinho na suíte do hotel Imperial, tomou banho prolongado e se paramentou com uma yukata para receber a visitadora. Com os cabelos besuntados de banguê do Recôncavo, perfumado, abriu a porta com mesuras, mas qual não foi a sua surpresa ao deparar com a própria esposa, que voltara para pegar a máquina fotográfica. Estranhando que o marido não estivesse tratando da venda de óleo de dendê aos ilhéus, e desconfiada de tamanho apuro no vestir, resolveu ficar. Para desespero do parlamentar, a gueixa apareceu minutos mais tarde, esbanjando sensualidade milenar. O que não estava nos planos é que fosse enxotada porta afora por uma baiana furibunda, que resolveu lavrar queixa na recepção, acusando o lendário hotel de ser um tugúrio de prostituição camuflada. Que o diga nosso então embaixador em Tóquio.

Se serve de consolo, Bolsonaro e os trancelins de nióbio integram alentada crônica de patetices que, como se vê, piora mês após mês. E cujo novo clímax tem como palco nossa embaixada em Washington, em flagrante demonstração de amadorismo.
Fernando Dourado Filho

São Francisco e a reforma da Previdência

A Oração de São Francisco é um texto repleto de boas intenções. Sugere, por exemplo, que onde houver ódio se leve o amor, e que a alegria seja levada aonde houver tristeza. O historiador francês Christian Renoux, entretanto, jura que essa mensagem de paz e amor nada tem a ver com o santo. De qualquer forma, ainda que possa ser um erro atribuí-la a São Francisco de Assis, ele com certeza ficaria honrado em assiná-la. Neste artigo, portanto, não focarei na autoria, seguindo o próprio ensinamento da oração: “Onde houver discórdia, que se leve a união”.

Há uma citação na prece que sensibiliza especialmente os políticos: “É dando que se recebe”. Lembrei-me da frase na votação da reforma da Previdência, diga-se de passagem, extremamente necessária para o reequilíbrio das contas públicas. No ano passado, o déficit entre o que o país arrecadou com contribuições e o que pagou com benefícios foi de quase R$ 270 bilhões.

Apesar da relevância do tema, na hora “H” São Francisco foi invocado. Nada muito diferente do que aconteceu em governos anteriores. Há diversas tratativas para a formação de maioria sobre determinado assunto, mas uma delas é “franciscana”, às avessas: é dando dinheiro para as emendas parlamentares que se recebem votos no Plenário.

As emendas parlamentares são alocações de gastos no Orçamento da União, por deputados e senadores, os quais costumam privilegiar com pequenas obras os seus redutos eleitorais. Desde a Constituição Federal de 1988, há a possibilidade de apresentação de emendas individuais ao Orçamento. Como durante vários anos o Executivo quitava apenas parte dessas propostas dos políticos — e geralmente favorecia a base parlamentar de apoio em detrimento da oposição —, em 2015 a Emenda Constitucional 86 tornou obrigatória a execução dessas proposições parlamentares, dentro de determinados parâmetros. As bancadas estaduais também têm parte das suas emendas asseguradas pela Constituição. Assim sendo, não há ilegalidade na execução dessas emendas. O que os governos fazem é liberá-las, ao longo do ano, em doses estratégicas, em volume maior quando é interessante afagar o Congresso.


Na votação da reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara dos Deputados, não foi diferente. Neste mês de julho, apenas nos primeiros cinco dias foram empenhados (reserva orçamentária para posterior pagamento) R$ 2,6 bilhões, volume maior do que o montante liberado em todo o primeiro semestre (R$ 1,8 bilhão). Comparados os valores mensais desde janeiro de 2016, os empenhos dos cinco primeiros dias deste mês colocam julho de 2019 em quarto lugar dentre 43 meses!

Para saciar as Excelências, a conta pode aumentar. Com a ampla renovação da Câmara dos Deputados nas eleições passadas, mais da metade dos parlamentares iniciou o mandato neste ano e não teve a oportunidade de fazer emendas ao Orçamento de 2019, aprovado no fim de 2018. Assim, alguns novatos estão reivindicando o seu naco. Os parlamentares antigos, por sua vez, querem mais do que constitucionalmente o governo está obrigado a liberar. Até a aprovação final, as negociações “franciscanas” devem continuar.

Logo após a votação da última quarta-feira, coincidentemente, o ritmo arrefeceu. Até sexta-feira passada foram empenhados R$ 2,7 bilhões, valor não muito maior do que o observado na enxurrada de emendas empenhadas nos cinco primeiros dias de julho.

Essa evidente barganha apequena o Executivo e o Congresso. Em um mundo ideal deveria haver um duplo constrangimento: do Executivo, ao liberar recursos, e dos parlamentares ao aceitarem que as suas emendas sejam atendidas às vésperas de votação importante. Mas o mundo político está muito distante do mundo ideal...

Voltando à Oração de São Francisco, relevemos, por ora, a relação promíscua entre Executivo e Legislativo. O momento é de comemorar a parcial aprovação da reforma que trará inúmeros benefícios para a economia brasileira e para o país. Esqueçamos os deputados que praticaram, às avessas, o é dando que se recebe. Afinal, é perdoando que se é perdoado...

Arca Brasil


Quando férias escolares significam fome no Brasil

O pano de prato vermelho adorna há dias a tampa do fogão e não existe expectativa de que ele seja retirado dali em breve: não há comida para preparar no barraco em que Alessandra, de 36 anos, mora com cinco filhos - o mais velho de nove anos e o menor de 16 dias. As crianças, em férias escolares, pulam e correm agitadas, se escondem entre as vielas, e Alessandra sabe que em breve chegará o momento em que elas vão pedir para almoçar.


"Me corta o coração eles quererem um pão e eu não ter. Já coloquei os meninos na escola pra isso mesmo, por causa da merenda. Um pouquinho de arroz sempre alguém me dá, mas nas férias complica", afirma Alessandra, que, desempregada, coleta latinhas na favela de Paraisópolis, em São Paulo, onde mora. No dia da entrevista à BBC News Brasil, os filhos de Alessandra iriam recorrer à casa da avó para conseguir se alimentar.

O drama de Alessandra não é incomum. As férias escolares - quando muitas crianças deixam de ter o acesso diário à merenda - intensificam a vulnerabilidade social de muitas famílias em todo o país. Embora variem em conteúdo e qualidade - às vezes são apenas bolacha ou pão, em outras, são refeições completas de arroz, feijão, legumes e carne - as merendas ocupam função importante no dia a dia de certos alunos. Para essas crianças, nos períodos sem aulas é que a fome, uma ameaça ao longo de todo ano, se torna uma realidade a ser enfrentada.

No Paranoá Parque, conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida que fica a 25 minutos de distância do Palácio do Planalto, em Brasília, as crianças passam os dias livres empinando pipa, de estômago vazio. "No final da tarde, elas me pedem, 'tia, tem um pãozinho aí para mim?' Se chega pão de doação, acaba tudo em um minuto", conta Maria Aparecida de Souza, líder comunitária no bairro.

Foi ali que, em 2017, um menino, na época com oito anos, desmaiou de fome durante as aulas e virou notícia nacional. Ele estudava em um colégio a 30 km de distância de sua casa, onde recebia como refeição apenas bolacha e suco. De lá para cá, a situação dos quase 30 mil moradores da área não parece ter melhorado.

"É muito desemprego, mães com cinco, seis ou oito filhos que não têm nada dentro de casa. Nem mesmo colchão, gás para cozinhar ou cobertor para este frio. Nas férias, algumas mulheres não têm o que dar aos filhos. Tenho 48 anos, sempre trabalhei nisso (assistência comunitária), e nunca vi a coisa tão ruim quanto está agora. Temos aqui no bairro 285 famílias em situação de miséria total", diz Souza.

Embora não haja estudos nacionais que indiquem o tamanho da insegurança alimentar durante o período de férias escolares, uma série de indicadores comprova a evolução da pobreza no país e o modo como ela incide sobre as crianças.

De acordo com a Fundação Abrinq, que fez cálculos a partir de dados do IBGE, 9 milhões de brasileiros entre zero e 14 anos do Brasil vivem em situação de extrema pobreza.

O Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde (Sisvan) identificou, no ano retrasado, 207 mil crianças menores de cinco anos com desnutrição grave no Brasil.  

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O custo da impotência do eleitor

Os Estados destinaram R$ 94 bi a 2,3 milhões de servidores inativos gastando em média R$ 40 mil por servidor. Já o investimento em toda a população de 210 milhões de plebeus foi quase quatro vezes menor em números absolutos, o que põe o gasto médio em R$ 125 por pessoa, 320 vezes menos que o que se “investe” nos aposentados da privilegiatura.

Esse é o resumo desta crise e da própria História do Brasil.

Essa nossa condição anacrônica de servidão semi-feudal só pode perdurar graças à “desorientação espacial”, digamos assim, em que anda perdida a imprensa nacional. O mundo ficou menor mas nem tanto. A Rede Globo, por exemplo, ainda que enquistada em pleno Rio de Janeiro, tem certeza de que vive numa sociedade sexualmente reprimida. De frente para a praia, nunca reparou naquilo que Pêro Vaz de Caminha viu de cara e marcou toda a nossa História: um país onde todo mundo anda pelado, naquela latitude abaixo da qual “não existe pecado”. Por isso agasta tanto que ela faça cara de heroína da revolução ao pregar a libertinagem na terra de João Ramalho, Caramuru e seus harens de filhas de caciques.


Não está sozinha. Boa parte do resto da imprensa frequentemente também imagina-se em alguma França, ou sei lá. Encasquetou meramente por eco que mudar regras de previdência é sempre “impopular”. Daí ter permanecido afirmando até tomar o desmentido na cara que reduzir a diferença média de 35 vezes entre as aposentadorias que o favelão nacional recebe e as que paga para a privilegiatura levaria os explorados às ruas para bradar contra o fim da própria espoliação.

Nem é da velha esquerda que se trata. Esta, de PT a FHC, não foi derrotada nem pela direita, nem pela internet. Morreu de morte morrida. Perdeu o trem do 3º Milênio e sumiu. Não tem proposta nenhuma pra nada. Por isso só fala de sexo. Mas dentro do universo do debate racional muita gente boa também tem boiado na interpretação do que está aí. O que explica essa desorientação é o vício muito brasileiro de excluir o povo de suas conjecturas. As “vitórias” e “derrotas” são sempre dos demiurgos. Tudo acontece ou deixa de acontecer exclusivamente graças a eles, e “é bom que seja assim” porque o povo brasileiro ignorante, coitado, não sabe o que é bom para ele próprio.

Ficou para trás do congresso que, vivendo de voto, logo entendeu que algo tinha mudado e deu 379 a 131. 64% da bancada do Nordeste (74% da do SE) votou a favor. Com isto querem crer os mais otimistas que por cima da constituição e da lei, o Brasil já é governado pelo povo que tem encontrado os meios de dobrar os governos, as oposições e as instituições alinhadas contra os seus interesses. Tem um remoto fundo de verdade nisso. Mas não é realista relevar o quanto a falta de dinheiro para pagar funcionários terá pesado para fazer finalmente subir a cancela com que há mais de 20 anos a privilegiatura mantinha a reforma da previdência barrada na porta do aparato das decisões nacionais, assim como imaginar que passado o sufoco ela jamais voltará ao ataque para nos impor o que não conseguiu com os “destaques” tentados.

Todos os problemas do Brasil, sem exceções, são consequência direta ou indireta da absoluta independência do País Oficial em relação ao País Real, e toda vez que esquecermos isso estaremos perdendo tempo (e vidas, muitas vidas). Na sequência da aprovação dessa reforma de que foram cirurgicamente extirpados todos os componentes revolucionários como a desconstitucionalização dos privilégios e a instituição do regime de contribuição, houve quem escrevesse sobre “a lentidão das decisões econômicas” e lembrasse que “foi preciso um impeachment e uma crise asfixiante” para que fizéssemos a reforma com 20 anos de atraso, como se essa lentidão não passasse de preguiça ou respondesse a duvidas reais.

Sobre a reforma tributária, há mais de meio século tida como “urgentíssima” por todos os especialistas, ha uma inflação de propostas no Congresso e nenhum sinal de consenso. Mas não é só por vaidade dos economistas. A razão real do marasmo é a de sempre: ha dois Brasis e o País Oficial, que decide por ambos, não paga os impostos que impõe ao País Real, logo não tem pressa. A questão decisiva para quem, mundo afora, optou por um ou outro sistema tributário é que onde o sistema apoia-se no imposto de valor agregado cobrado sobre o consumo o povo tem a ultima palavra sobre as decisões, logo o critério decisivo é o da transparência e justiça do imposto cobrado, e onde o de transações financeiras chegou a ser implantado o povo não participa das decisões e então o critério passa a ser só o do volume e o da facilidade de arrecadação.

Martela-se, ainda, no “mente quem diz que é possível baixar a carga de tributos no Brasil”. Mas mente mais ainda quem não acrescenta a esse raciocínio o seu complemento obrigatório, qual seja, “enquanto não se reduzir a farra do estado”. Dar por intocável o tamanho do estado é dar por intocável o tamanho da miséria do Brasil. É condenar mais uma geração que luta a viver no brejo e na guerra para que mais uma geração que não ganhou os privilégios que tem trabalhando possa desfrutá-los ao sol e em paz. O Brasil jamais poderá competir pelos empregos do mundo com o Estado custando o tanto que impede que os nossos impostos sejam tão baixos quanto os do resto do planeta, ou mais para compensar o handicap educacional que pagamos.

Todos esses raciocínios desviantes e desviados só podem ser abertamente defendidos no Brasil porque o eleitor é absolutamente impotente passado o ato de depositar o voto na urna. Eleições distritais, recall, referendo, iniciativa e eleições de retenção de juízes são a única garantia jamais inventada de que o jogo será jogado sempre a favor do eleitor. Essas ferramentas são as manifestações de rua sistematizadas e instituídas como fator decisivo de sucesso de qualquer proposta de solução. É como a bomba atômica. Não precisa ser disparada. Basta o inimigo saber que você a tem para que passe a respeitá-lo.

Messias dos diabos

Bolsonaro entenderá algum dia o que são os interesses do país? Provavelmente, não. Algumas frases dele ofendem, revoltam ou espantam
Miriam Leitão

Obstáculos à educação

O problema da educação de base no Brasil parece estar nos baixos salários e formação dos professores. Mas está também na baixa qualidade de equipamentos e edificações e na gestão deficiente das escolas; no descuido com o acompanhamento dos alunos pelos familiares e professores. Mas poucos percebem que há obstáculos mais profundos provocando esse cenário.

O primeiro está no sentimento de que não somos vocacionados para estarmos entre os melhores do mundo em educação. Somos e queremos continuar sendo os melhores com os pés, não com o cérebro. Raros lembram e lamentam que, ao longo de 130 anos de República, ao menos 20 milhões de adultos brasileiros morreram analfabetos e que outros 11 milhões estão vivos hoje sem ao menos reconhecer nossa bandeira por não saberem ler “ordem e progresso”.

Mesmo quem investe na escola dos filhos quer mais assegurar o salário que eles terão do que fazê-los intelectuais educados. Por isso, lamentam quando o filho diz que quer ser filósofo ou professor no lugar de seguir carreira que permita ganhar bem. O descontentamento de uma pessoa com a opção do filho pelo magistério decorre do sentimento nacional de que nos falta vocação para a educação.

Um segundo obstáculo é mais fácil de explicar. Depois de 350 anos de escravidão, a mente brasileira ainda acha que educação de qualidade não é para todos. No passado, senhores e escravos viam educação como privilégio de brancos livres. Hoje, ricos e pobres continuam vendo a escola de qualidade como privilégio de classes média e alta. Não sendo para todos, a educação de qualidade se limita a uma parcela da sociedade; e essa parcela não precisa também ser muito educada porque, se muitos estudam pouco, os poucos que estudam não precisam estudar muito.

Um terceiro obstáculo decorre de não termos percebido ainda que o vetor do progresso está no conhecimento. Nossa Constituição diz que educação é um direito de cada pessoa, não uma necessidade de todo o país. Em cada navio negreiro havia marujo para impedir que escravos desesperados saltassem ao mar, porque o suicídio era visto como prejuízo para o proprietário e para a economia, que perderia a força de seus braços. Mas não temos especialistas trabalhando para impedir que os jovens de hoje abandonem as escolas, porque não temos a percepção de que isso sacrifica não apenas o futuro da criança ou do jovem, mas de todo o Brasil ao se perder o potencial de seus cérebros.

A tragédia da educação brasileira tem muitas razões práticas, mas não vamos superar o atraso e a desigualdade enquanto não tivermos uma mudança de mentalidade nem superarmos esses três obstáculos fundamentais. Não venceremos a guerra pela educação enquanto não entendermos que ela é o vetor do progresso nem acreditarmos e desejarmos que o Brasil possa estar entre os melhores do mundo na qualidade da educação acessível a todos, independentemente da renda e do endereço do aluno.

Pensamento do Dia


Bolsonaro, escolhido por Deus, pisou em Luís XIV

Luís XIV, o Rei Sol, era, afinal, um sujeito modesto. A frase mais famosa a ele atribuída é citada como síntese do espírito absolutista: “O Estado sou eu”. É uma declaração quase franciscana, quando comparada com as palavras do presidente Jair Messias Bolsonaro: “O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os Poderes”. Em outras palavras, o cristianismo, pelo menos o do presidente e de seus companheiros, deve sobrepor-se à laicidade do Estado brasileiro e, portanto, permear os Poderes da República. Mais uma vez é indisfarçável o desprezo às instituições.

Esse desprezo ficou evidente em muitas ocasiões, como no dia 30 de junho, quando ele tuitou para cumprimentar os participantes de passeatas a favor da Lava Jato: “Respeito todas as instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade”.


Instituições incluem, por exemplo, o Código Penal. Se o povo está acima do código, poderá determinar a aplicação da pena de morte a um condenado? Poderá inocentar um culpado e condenar um inocente? E quem dirá se a manifestação terá partido realmente do “povo”? E como se identifica, nos eventos políticos, essa entidade tão difícil de definir? Pelo tamanho da multidão? Pela natureza de seus protestos ou reivindicações? Se for pelo tamanho, havia mais “povo” nas manifestações de 15 de maio, quando se protestou principalmente contra os cortes de verbas para a educação.

Nenhum crítico do governo e de sua política educacional falou em povo acima das instituições. Nem os portadores da bandeira “Lula livre”, também presentes nas passeatas, chegaram a esse ponto. Questionaram a lisura do processo, falaram em falta de provas e reclamaram de uma suposta condenação política, isto é, de uma violação da ordem jurídica.

O nome de Luís XIV era Louis-Dieudonné. “Dado por Deus” é a tradução da segunda parte. A competição continua. Bolsonaro, segundo proclamou seu ministro Onyx Lorenzoni em reunião com evangélicos, é “o escolhido”. Além disso, Messias é o seu segundo nome. O presidente parece levar esse detalhe muito a sério, mas à sua maneira, naturalmente.

Falando com frequência em nome do cristianismo, ou de seu cristianismo, esse Messias costuma valorizar especialmente um ramo da cultura cristã. Ao participar na quarta-feira de uma cerimônia religiosa na Câmara dos Deputados, ele atribuiu aos evangélicos papel central numa suposta inflexão da pauta moral nos últimos anos. Terá havido alguma contribuição positiva de católicos, judeus, muçulmanos, budistas, espíritas, umbandistas, candomblecistas e adeptos de outros credos menos conhecidos? Ou, quem sabe, também de agnósticos e ateus?

De vez em quando o Messias do Alvorada se mostra mais cuidadoso e passa a falar sobre respeito a todos os credos. Em momentos mais delicados chega a negar qualquer confusão entre crença religiosa e política. Mas a tentação parece irresistível. Manifestou-se de novo na quarta-feira, quando o presidente voltou a mencionar a possível indicação de um evangélico – “terrivelmente evangélico” – para o Supremo Tribunal Federal (STF).

“Não me venha a imprensa dizer que eu quero misturar a Justiça com a religião”, tem repetido o presidente. Mas está misturando, inegavelmente. “Não está na hora de termos um ministro do Supremo Tribunal evangélico?”, havia perguntado Jair Messias Bolsonaro em Goiânia, em maio, numa convenção religiosa. Foi muito aplaudido. Estaria o auditório aprovando a mistura?

A simples menção à crença religiosa do possível indicado comprova a importância atribuída a esse fator. A pergunta a respeito da oportunidade – será hora, enfim? – torna mais evidente a preocupação. Um evangélico teria influência, por exemplo, num debate como o da criminalização da homofobia? Mas se esse é o problema, ou um dos problemas, que tal indicar um conservador de qualquer credo, sem preferência por uma religião?

Tendências diferentes podem favorecer decisões equilibradas numa corte como o STF. Mas decisões sempre envolverão interpretações das normas constitucionais e de seu alcance. Interpretações, no entanto, exigem noções de teoria do Direito, envolvem critérios técnicos e requerem competência e equilíbrio. Tudo isso vai além do moralismo, do bom-mocismo e de qualquer padrão de religiosidade.

Pela Constituição, o indicado para um posto no STF deve destacar-se pelo notório saber e ter reputação ilibada. Na prática, a indicação pode ocasionalmente contornar algum requisito, ou os dois, mas isso jamais ocorre de modo explícito. Formalmente, as instituições são respeitadas. Não há notícia, no entanto, de indicações baseadas explicitamente em critérios extraconstitucionais, como a religião.

Mas esse critério foi mencionado mais de uma vez pelo presidente Messias. Convém, portanto, observar com cuidado qualquer indicação para o STF. A seleção de um evangélico motivará uma preocupação muito justa: quem aceitar a escolha com base em critério religioso será um juiz confiável, mesmo dispondo de qualidades técnicas? Será um profissional dotado de autorrespeito?

Essas questões podem ser irrelevantes para quem defende a imposição de sua religiosidade aos Poderes da República e afirma dever mais lealdade ao “povo” do que às instituições. Mas são extremamente relevantes para quem prefere uma vida ordenada segundo padrões de civilidade próprios de uma democracia liberal.

Uma segunda frase famosa é atribuída a Luís XIV: “Depois de mim, o dilúvio”. De novo, Messias poderá superá-lo, se tiver tanto êxito quanto outros populistas na devastação das instituições. Alguns de seus ídolos da extrema direita estão avançando nessa tarefa na periferia da União Europeia.

Nova política: De pai para filho

Agitava as mãos e gritava: “É palhaçada! Hipocrisia!”

Era contra qualquer tipo de proibição ao empreguismo de parentes no governo, Legislativo e Judiciário. Já havia inscrito mãe, filho e mulher na folha salarial de seu gabinete de deputado federal pelo Rio:

“Eu não estou preocupado porque meu filho não é um imbecil e minha mulher não é uma jumenta...”

Seguiu com uma provocação ao plenário: “E as amantes? Vão ficar de fora da proposta? Todo mundo sabe que tá cheio de amante do Executivo aqui.”


Ninguém se intimidou. A proposta de emenda à Constituição (nº 334) para proibir o nepotismo foi admitida na Câmara naquela quarta-feira, um 13 de abril de 14 anos atrás. Não foi muito além, porque alguns insistiam na velha política de apropriação de uma fatia do Orçamento público para uso pessoal, privado ou familiar. Nesse grupo se destacavam Bolsonaro e Severino Cavalcanti, presidente da Câmara.

Com oito parentes pendurados na folha do Legislativo, Cavalcanti inspirava humoristas como Millôr Fernandes: “Mateus, primeiro, segundo e terceiro, os teus”. Nepote, por bastardia, do Barão de Pau Barbado, escravocrata sanguinário, Agamenon Mendes Pedreira, do GLOBO, lembrava: “O nepotismo começou cedo, quando Deus nomeou Seu filho para a Santíssima Trindade.”

Cavalcanti, como Bolsonaro, não estava nem aí: “Essa história de nepotismo é coisa para fracassados e derrotados que não souberam criar seus filhos.”

No vácuo do Legislativo, o Supremo estabeleceu regras básicas antinepotismo (Súmula 13), mas deixou brechas. Em seguida, Lula proibiu por decreto (nº 7.203).

Ontem, na Câmara, Bolsonaro reafirmou sua predileção pelo nepotismo: “Por vezes, temos que tomar decisões que não agradam a todos, como a possibilidade de indicar para a Embaixada dos Estados Unidos um filho meu... Se está sendo tão criticado, é sinal de que é a pessoa adequada...”

No plenário, o deputado Eduardo agradeceu. Lembrou que já devia ao pai o mandato: “Sou seu filho, indissociavelmente.”

Deve ser isso que chamam de “nova política”.

Guiados pela escuridão

O bolsonarismo é uma ideologia do porão da ditadura, não é do general, não é do presidente militar. É a visão de mundo do sujeito que torturava comunistas e depois entrou para o esquadrão da morte, para garimpo ilegal, para jogo do bicho. Daí, também, o elogio às milícias. É sempre bom lembrar que Bolsonaro tentou colocar bomba no quartel por aumento salarial já nos anos 80, e que Geisel teve tempo de referir-se a ele como “mau militar”. Acho que a maior parte do público brasileiro não tem coragem de admitir quão radical é o presidente que elegemos
Celso Rocha de Barros 

No país bestificado, parece que a Era da Revolta 2013-2018 chegou ao fim

O país quase inteiro assistiu de modo resignado à aprovação da reforma da Previdência. Na prática e no grosso, espera de modo conformado que a economia dê sinal de vida. Talvez a reação bestificada ou perplexa fosse esperança modesta e calada em algum alívio próximo. Não é o que parecem dizer pesquisas de confiança econômica, de outros sentimentos da vida e de prestígio do governo, que sugerem desilusão e medo.

Talvez tenhamos chegado à fase de aceitação, como se diz do último estágio do luto, como se não houvesse mais a fazer além de atravessar o deserto de modo paciente. Acabou a era da revolta, 2013-2018?


Claro que esta caricatura de psicologia é apenas um modo tentativo de descrever a pasmaceira, obviamente não um diagnóstico do silêncio. O país parece ruidoso nas redes insociáveis ou no governo e nas demais minorias extremistas, mas não se movimenta política ou socialmente mesmo diante de questão controversa como a Previdência.

Antes da tramitação quase pacífica ou funérea da reforma das aposentadorias e pensões, parecia razoável estimar que o plano de mudanças previsto para o ano causasse conflito. Vai?

A reforma tributária pode ser racionalização econômica, como a previdenciária, mas também provoca perdas ou ganhos, talvez ainda mais evidentes. Haverá quem pague mais e menos impostos, empresas e cidadãos. A ideia temerária de acabar com os gastos obrigatórios em saúde e educação, que vem por aí, é caso análogo.

No conflito entre elites econômicas devido a mudanças nos impostos ou mesmo à reforma de carreiras e salários de servidores, talvez se escute algum barulho. O povo em geral e o miúdo em particular assistirá bestificado ao resto da parada das reformas? É uma grande pergunta para o resto deste ano ou de governo, tão difícil de responder quanto é prever os danos do próximo desvario ou remelexo ultradireitista do bolsonarismo.

No mais, haverá questões sérias que não causam comoção popular, como a decisão do futuro da taxa de juros (caso a Selic não vá de 6,5% a 5% até o fim do ano, o Banco Central estará promovendo arrocho grátis e caro, tudo mais constante). Haverá um pacotinho econômico para o curto prazo, uma aguinha para ajudar a travessia do deserto, como a liberação de dinheiro de Pis/Pasep e FGTS. Mata a sede até o ano que vem?

Embora as previsões econômicas dos dois últimos anos, por aí, tenham sido horrendas bolas fora, na média não parece que a economia vá crescer além do ritmo anual de 1% ao ano até o Carnaval de 2020, se houver Carnaval. Teremos então chegado a seis anos de depressão.

Haverá “fadiga de reformas” com efeito prático? A pergunta nem é tão ociosa, porque até economistas-padrão, ditos ortodoxos, começam a especular sobre a possibilidade ou necessidade de algum estímulo para que a economia pegue no tranco (gasto extra do governo, em investimento).

Há, porém, quem preveja que um passeio de reformas possa antecipar a retomada do crescimento. O silêncio nacional seria então de ouro.

Mais seguro dizer que, na falta de alternativa política considerável, respeitável e razoável, resta aos insatisfeitos chorar no cantinho. Pelo andar da carruagem, o país vai ser virado do avesso socioeconômico sob a anestesia da depressão e da catatonia da oposição mais incapaz e desinformada de que se tem notícia.