quinta-feira, 8 de abril de 2021
Passaram-se 27 meses
O Centrão não é surpreendente, é implacável. Como demonstra o deputado Arthur Lira, comandante em chefe do grupo, não só por ser presidente da Câmara mas por representar um papel múltiplo e mutante. Ora é um diplomata negociador. De repente dá sinais do seu limite e pode tornar-se um cangaceiro.
Tanto que o presidente Jair Bolsonaro está ciente de que não deve fugir ao resgate negociado. O ignorou, por exemplo, na escolha do ministro da Saúde, desprezando a candidata indicada. E desde então não se esgotam as compensações que é obrigado a fazer. O presidente nunca esteve tão fraco politicamente como neste momento.
Nas cláusulas do contrato de adesão do Centrão ainda restam muitos espaços a serem ocupados. Entre eles, os ministérios da Educação e o do Meio Ambiente. Metas que, enquanto não se cumprirem, são compensadas por um adiantamento da lista de nomeações para cargos menores. Além de dinheiro na veia: as emendas parlamentares do orçamento, ainda não legalizado, mas certamente já distribuído. Parcelas do inesgotável ajuste de contas.
Este é o panorama de hoje. Bolsonaro governará nos próximos 21 meses tal como o fez nos 27 passados. Em conflito com cada um e o universo.
As forças políticas contrárias, porém, estão vivas e se articulam com os protagonistas de sempre. Já abandonaram o plano A, cujo item número um era o impeachment. Empenham-se agora na elaboração do plano B: a construção de um candidato do centro, que não pode ser confundido com o Centrão, de perfil vencedor.
Os políticos creem que Bolsonaro chegará a 22 tão fraco como candidato, desacreditado como gestor, desautorizado como líder, sabendo que seu adversário principal terá todas as chances de derrotá-lo. É verdade que não gostariam de dar o espaço a Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente, porém, parece ser o único que ainda não se convenceu de que não foi ele que ganhou a eleição, mas o PT que a perdeu. O temor do centro é que Lula vença no papel do antibolsonaro, situação que querem evitar. O ideal que procuram, sinceramente, é a constituição de um governo liberal, sim, com educação e compostura política, inserido no mundo.
De onde veio o crescente enfraquecimento que tiraria as chances do presidente? Bolsonaro perdeu substância e energia até no seu staff da Presidência. Saiu fragilizado da refrega, puramente vingativa, com as Forças Armadas. A demissão do ministro das Relações Exteriores foi humilhante, e com ele foram reprovados o filho Eduardo Bolsonaro e o doutrinador Olavo de Carvalho.
O quarto ministro da Saúde, administrador da profunda crise sanitária, não se encontrou em meio às contradições do governo: não há vacinas, prioridade absoluta. O quarto ministro da Educação é um pastor sem força política para evitar o avassalador obscurantismo que impregnou o MEC, dominado pela mediocridade das bases extremistas do bolsonarismo. A educação está destruída. A infraestrutura não tem verbas. O Meio Ambiente e a Cultura, marginalizados.
Passaram-se dois anos e três meses de governo e permanece a sensação de que o filme de terror não tem fim. O enredo é dominado pela violência, agressividade, insegurança, armas, controle político da polícia, perseguições, irracionalidade, crimes de responsabilidade, ódio, devastação. É por esta agenda que o governo se move.
Jair Bolsonaro emite sinais de que continuará administrando tal parque de horrores, no qual seus filhos se deliciam na montanha russa, da cabine de comando do trem fantasma. A cada susto, o timoneiro narra, em discurso staccato, que só ele e seu partner ocasional sabem o porquê das suas manobras radicais. Recorrente mistério para explicação do inexplicável. Enquanto isso, os brasileiros, desamparados, teimam em sobreviver à covid-19.
Tanto que o presidente Jair Bolsonaro está ciente de que não deve fugir ao resgate negociado. O ignorou, por exemplo, na escolha do ministro da Saúde, desprezando a candidata indicada. E desde então não se esgotam as compensações que é obrigado a fazer. O presidente nunca esteve tão fraco politicamente como neste momento.
Nas cláusulas do contrato de adesão do Centrão ainda restam muitos espaços a serem ocupados. Entre eles, os ministérios da Educação e o do Meio Ambiente. Metas que, enquanto não se cumprirem, são compensadas por um adiantamento da lista de nomeações para cargos menores. Além de dinheiro na veia: as emendas parlamentares do orçamento, ainda não legalizado, mas certamente já distribuído. Parcelas do inesgotável ajuste de contas.
Este é o panorama de hoje. Bolsonaro governará nos próximos 21 meses tal como o fez nos 27 passados. Em conflito com cada um e o universo.
As forças políticas contrárias, porém, estão vivas e se articulam com os protagonistas de sempre. Já abandonaram o plano A, cujo item número um era o impeachment. Empenham-se agora na elaboração do plano B: a construção de um candidato do centro, que não pode ser confundido com o Centrão, de perfil vencedor.
Os políticos creem que Bolsonaro chegará a 22 tão fraco como candidato, desacreditado como gestor, desautorizado como líder, sabendo que seu adversário principal terá todas as chances de derrotá-lo. É verdade que não gostariam de dar o espaço a Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente, porém, parece ser o único que ainda não se convenceu de que não foi ele que ganhou a eleição, mas o PT que a perdeu. O temor do centro é que Lula vença no papel do antibolsonaro, situação que querem evitar. O ideal que procuram, sinceramente, é a constituição de um governo liberal, sim, com educação e compostura política, inserido no mundo.
De onde veio o crescente enfraquecimento que tiraria as chances do presidente? Bolsonaro perdeu substância e energia até no seu staff da Presidência. Saiu fragilizado da refrega, puramente vingativa, com as Forças Armadas. A demissão do ministro das Relações Exteriores foi humilhante, e com ele foram reprovados o filho Eduardo Bolsonaro e o doutrinador Olavo de Carvalho.
O quarto ministro da Saúde, administrador da profunda crise sanitária, não se encontrou em meio às contradições do governo: não há vacinas, prioridade absoluta. O quarto ministro da Educação é um pastor sem força política para evitar o avassalador obscurantismo que impregnou o MEC, dominado pela mediocridade das bases extremistas do bolsonarismo. A educação está destruída. A infraestrutura não tem verbas. O Meio Ambiente e a Cultura, marginalizados.
Passaram-se dois anos e três meses de governo e permanece a sensação de que o filme de terror não tem fim. O enredo é dominado pela violência, agressividade, insegurança, armas, controle político da polícia, perseguições, irracionalidade, crimes de responsabilidade, ódio, devastação. É por esta agenda que o governo se move.
Jair Bolsonaro emite sinais de que continuará administrando tal parque de horrores, no qual seus filhos se deliciam na montanha russa, da cabine de comando do trem fantasma. A cada susto, o timoneiro narra, em discurso staccato, que só ele e seu partner ocasional sabem o porquê das suas manobras radicais. Recorrente mistério para explicação do inexplicável. Enquanto isso, os brasileiros, desamparados, teimam em sobreviver à covid-19.
Quando seguir à risca é um dilema
Quem, no Brasil, segue tudo à risca?
Quem tem certeza de cumprir com todo o oceano de leis, portarias, decretos, normas e regimentos (uma pesquisa do ministro Ives Gandra revela que são 34 mil regras, mas é preciso admitir que esse número aumentou) que compõem a escrita legal no Brasil?
Vale notar que cinco séculos de escravidão negra formam a nossa base sociocultural e a nossa índole coletiva. Nos Estados Unidos, a escravidão foi regional. Sua abolição causou uma guerra civil e o regime mistificador do “iguais, mas separados” segregava. Aqui, depois da abolição, mas mesmo antes dela, tivemos um racismo contextual e negacionista; lá, há racismo manifesto e sociedades como a KKK. No Rio, a princesa Isabel acolhia escravos fugidos no seu palácio e uma flor (a camélia) era o símbolo discreto e aristocrático dos antiescravistas.
Quem seguia alguma coisa à risca?
Vale notar que a única instituição na qual vivemos sem ouvir explicitamente falar em “lei” ou em “seguir à risca” alguma coisa é a família que funciona sem o incômodo de regras escritas. Daí, dizem alguns amigos, o seu autoritarismo até hoje é indiscutível porque, conforme prova o antijurídico, “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, lema que a democracia e o feminismo felizmente questionam –, a polícia deveria ficar de fora de laços conjugais que, obviamente, têm suas regras falocráticas. Normas implícitas, embora enterradas nos nossos corações.
Você, como eu, jamais ouviu o pai ou a mãe invocar o Código Penal porque chegou em casa bêbado e de madrugada. Seria também insólito imaginar um “golpe” ou um “impedimento” da autoridade materna ou paterna. Em casa, aplicam-se “castigos”, “sermões” ou “pitos” e os desvios mais graves dos seus membros são percebidos como conflitos emocionais, jamais como ilegalidades. No espaço da morada, a lei só entra quando é chamada numa demonstração patente da oposição entre a lógica da casa (patriarcal) e a da rua (republicana), conforme sugeri num outro livro não lido.
Em casa, seguimos as regras do costume que, curiosamente, não teria peso político-social. Exceto em casos extremos, quando um ministério da Justiça e as Procuradorias são mexidos por Bolsonaro em defesa do filho...
Num resumo cabível numa crônica, é obvio que o legalismo deveria ser usado fora (ou nas fronteiras) da rede de parentesco e amizade, embora ele seja, como muitos historiadores têm apontado, um viés do sistema contrarreformista do mundo ibérico.
Se as comunidades reformistas criavam autodeterminação e autonomia, tendo uma índole igualitária e anticentralizadoras – o maior ataque da Reforma foi obviamente desferido contra as hierarquias terrenas e divinas centralizadas pela Santa Igreja Católico Romana –, a reação contrarreformista ibérica foi a de concentrar o poder real e colocar cada coisa em seu lugar e ter um lugar para cada coisa.
Mas – eis o dilema – como seguir à risca leis impessoais sem olhar rostos, mestiçagens e laços de família, se as relações são fundamentais? Como estabelecer um sistema legal-igualitário-meritocrático com base num sistema hierarquizado, escravocrata e aristocrático como o “ibérico”? Um sistema no qual o igualitarismo ofende, como faz prova o “você sabe com quem está falando?”
Não há dúvida de que o “legal” é legal, mas é muito difícil de ser seguido à risca. Primeiro, porque legislar é um atributo de quem tem poder e não do povo, como prova a lei da ficha limpa prestes a se transformar no seu oposto; segundo, porque o oceano jurídico requer interpretações barrocas. Uma dogmática na qual o cálculo político promove uma óbvia macumba legalística. Macumba justificada pelos tribunais superiores que julgam também procedimentos extinguindo crimes; terceiro, a impessoalidade gera reações selvagemente parciais, revestidas de uma linguagem que imoralmente esconde interesses e laços pessoais; quarto, tal sistema legalístico opera ao inverso dos princípios democráticos que implicam em menos erudição malandra e mais imparcialidade. Algo difícil de obter num sistema no qual pessoas englobam leis e os crimes por elas apreciados.
O que é uma sociedade razoável, senão um sistema no qual seus cidadãos seguem suas regras e suas regras, consonantes com seus hábitos e costumes, requerem um mínimo de especialistas em falar difícil porque todos sabem os limites do certo e do errado?
Não se pode ser fiel a leis impessoais sem limitar infinitas dívidas pessoais. Não se pode ser fiel ao “legal” e, ao mesmo tempo, seguir inflexivelmente as normas do familismo. O preço da ambiguidade é essa paralisação do sistema, agravada por um presidente cuja irascibilidade o torna incapaz não apenas de governar, mas de instalar um governo.
Quem tem certeza de cumprir com todo o oceano de leis, portarias, decretos, normas e regimentos (uma pesquisa do ministro Ives Gandra revela que são 34 mil regras, mas é preciso admitir que esse número aumentou) que compõem a escrita legal no Brasil?
Vale notar que cinco séculos de escravidão negra formam a nossa base sociocultural e a nossa índole coletiva. Nos Estados Unidos, a escravidão foi regional. Sua abolição causou uma guerra civil e o regime mistificador do “iguais, mas separados” segregava. Aqui, depois da abolição, mas mesmo antes dela, tivemos um racismo contextual e negacionista; lá, há racismo manifesto e sociedades como a KKK. No Rio, a princesa Isabel acolhia escravos fugidos no seu palácio e uma flor (a camélia) era o símbolo discreto e aristocrático dos antiescravistas.
Quem seguia alguma coisa à risca?
Vale notar que a única instituição na qual vivemos sem ouvir explicitamente falar em “lei” ou em “seguir à risca” alguma coisa é a família que funciona sem o incômodo de regras escritas. Daí, dizem alguns amigos, o seu autoritarismo até hoje é indiscutível porque, conforme prova o antijurídico, “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, lema que a democracia e o feminismo felizmente questionam –, a polícia deveria ficar de fora de laços conjugais que, obviamente, têm suas regras falocráticas. Normas implícitas, embora enterradas nos nossos corações.
Você, como eu, jamais ouviu o pai ou a mãe invocar o Código Penal porque chegou em casa bêbado e de madrugada. Seria também insólito imaginar um “golpe” ou um “impedimento” da autoridade materna ou paterna. Em casa, aplicam-se “castigos”, “sermões” ou “pitos” e os desvios mais graves dos seus membros são percebidos como conflitos emocionais, jamais como ilegalidades. No espaço da morada, a lei só entra quando é chamada numa demonstração patente da oposição entre a lógica da casa (patriarcal) e a da rua (republicana), conforme sugeri num outro livro não lido.
Em casa, seguimos as regras do costume que, curiosamente, não teria peso político-social. Exceto em casos extremos, quando um ministério da Justiça e as Procuradorias são mexidos por Bolsonaro em defesa do filho...
Num resumo cabível numa crônica, é obvio que o legalismo deveria ser usado fora (ou nas fronteiras) da rede de parentesco e amizade, embora ele seja, como muitos historiadores têm apontado, um viés do sistema contrarreformista do mundo ibérico.
Se as comunidades reformistas criavam autodeterminação e autonomia, tendo uma índole igualitária e anticentralizadoras – o maior ataque da Reforma foi obviamente desferido contra as hierarquias terrenas e divinas centralizadas pela Santa Igreja Católico Romana –, a reação contrarreformista ibérica foi a de concentrar o poder real e colocar cada coisa em seu lugar e ter um lugar para cada coisa.
Mas – eis o dilema – como seguir à risca leis impessoais sem olhar rostos, mestiçagens e laços de família, se as relações são fundamentais? Como estabelecer um sistema legal-igualitário-meritocrático com base num sistema hierarquizado, escravocrata e aristocrático como o “ibérico”? Um sistema no qual o igualitarismo ofende, como faz prova o “você sabe com quem está falando?”
Não há dúvida de que o “legal” é legal, mas é muito difícil de ser seguido à risca. Primeiro, porque legislar é um atributo de quem tem poder e não do povo, como prova a lei da ficha limpa prestes a se transformar no seu oposto; segundo, porque o oceano jurídico requer interpretações barrocas. Uma dogmática na qual o cálculo político promove uma óbvia macumba legalística. Macumba justificada pelos tribunais superiores que julgam também procedimentos extinguindo crimes; terceiro, a impessoalidade gera reações selvagemente parciais, revestidas de uma linguagem que imoralmente esconde interesses e laços pessoais; quarto, tal sistema legalístico opera ao inverso dos princípios democráticos que implicam em menos erudição malandra e mais imparcialidade. Algo difícil de obter num sistema no qual pessoas englobam leis e os crimes por elas apreciados.
O que é uma sociedade razoável, senão um sistema no qual seus cidadãos seguem suas regras e suas regras, consonantes com seus hábitos e costumes, requerem um mínimo de especialistas em falar difícil porque todos sabem os limites do certo e do errado?
Não se pode ser fiel a leis impessoais sem limitar infinitas dívidas pessoais. Não se pode ser fiel ao “legal” e, ao mesmo tempo, seguir inflexivelmente as normas do familismo. O preço da ambiguidade é essa paralisação do sistema, agravada por um presidente cuja irascibilidade o torna incapaz não apenas de governar, mas de instalar um governo.
Presidência necrófila
Hoje, em nosso País, o Presidente da República (que julga ser um monarca absolutista ou um contraditório ‘monarca presidencial’) tornou-se, com justa razão, o Sumo Sacerdote que desconhece tanto o valor e a primazia da vida quanto o seu dever ético de celebrá-la incondicionalmente !!! A sua arbitrária recusa em decretar o ‘lockdown’ nacional (como ocorreu em países de inegável avanço civilizatório) equivale a um repulsivo e horrendo ‘grito necrófilo'Celso de Mello, ex-ministro do STF
Os dez mandamentos do desmando
1 – Profanarás o Estado laico.
A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.
2 – Transformarás a política em fanatismo.
A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.
Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.
3 – Xingarás a ciência de bruxaria.
Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.
4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.
O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.
5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.
Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.
6 – Não honrarás a verdade dos fatos.
O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.
7 – Matarás.
Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.
8 – Conspurcarás todas as profecias.
Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?
9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.
Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.
10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.
Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.
A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.
2 – Transformarás a política em fanatismo.
A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.
Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.
3 – Xingarás a ciência de bruxaria.
Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.
4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.
O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.
5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.
Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.
6 – Não honrarás a verdade dos fatos.
O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.
7 – Matarás.
Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.
8 – Conspurcarás todas as profecias.
Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?
9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.
Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.
10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.
Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.
Atenção: Bolsonaro vai ficar mais perigoso
O delírio se realizou porque o Brasil não é um país são. Uma sociedade que convive com a desigualdade racial brasileira não tem como ser sã. Uma maioria de eleitores que vota em alguém que diz que prefere um filho morto num acidente de trânsito a um filho gay e que defende em vídeo que a ditadura deveria ter matado “pelo menos uns 30.000” não pertence a uma sociedade sã. Essa sociedade, da qual todos fazemos parte e portanto somos coletivamente responsáveis, gestou tanto Bolsonaro quanto seus eleitores
Estamos no caminho dos 400.000 mortos. Se o Brasil continuar nesse rumo ―como vários epidemiologistas alertam― superaremos o meio milhão. E ainda assim as mortes vão seguir. Se esse extermínio não for suficiente para mover aqueles que têm a obrigação constitucional de promover ou apoiar o impeachment, é importante acordar para uma grande probabilidade. Bolsonaro é uma besta. Acuado e isolado, quase certamente ficará mais perigoso. É urgente impedi-lo antes que um horror ainda maior do que centenas de milhares de mortes aconteça.
Que Jair Bolsonaro não se importa com ninguém, a não ser ele mesmo e seus filhos homens, é claríssimo. Desde sempre, ele frita aqueles que o ajudaram a se eleger, o advogado Gustavo Bebianno poderia dizer se estivesse vivo. E também aqueles que o ajudaram a se manter governando, o general Fernando Azevedo e Silva que nos conte, já que Bebianno não pode mais. Bolsonaro não tem lealdade a ninguém, só lhe importam seus próprios interesses. Mais do que interesses, Bolsonaro tem apetites. Só lhe importam seus próprios apetites.
Bolsonaro gostou, porém, da popularidade e da ideia de ser o líder de um movimento. Bolsonaro, uma mal acabada mistura de cachorro louco com bobo da corte, que sugou os cofres públicos como deputado sem fazer nada de relevante por quase 30 anos, apreciou ser finalmente levado a sério. E isso teve efeito sobre ele, como teria sobre qualquer pessoa.
Bolsonaro se elegeu e começou a governar com generais apoiando-o, justamente ele, um capitão que saiu do Exército pela porta dos fundos, apenas para não ser preso (mais uma vez). Bolsonaro se elegeu e começou a governar com Paulo Guedes, um economista ultraliberal que tinha as bênçãos dessa entidade metafísica chamada “mercado”, que tanto opina nos jornais ―sempre nervosa e com humores, mas raramente com rosto. Bolsonaro se elegeu e começou a governar com o ainda herói (para muitos) Sergio Moro, com sua capa de juiz justiceiro contra os corruptos. Bolsonaro, que só provocava risadas, de repente era ovacionado como “mito”, escolhido para liderar um país.
Era um delírio, em qualquer mente sã, mas o delírio se realizou porque o Brasil não é um país são. Uma sociedade que convive com a desigualdade racial brasileira não tem como ser sã. Uma maioria de eleitores que vota em alguém que diz que prefere um filho morto num acidente de trânsito a um filho gay e que defende em vídeo que a ditadura deveria ter matado “pelo menos uns 30.000” não pertence a uma sociedade sã. Essa sociedade, da qual todos fazemos parte e portanto somos coletivamente responsáveis, gestou tanto Bolsonaro quanto seus eleitores.
Sem jamais perder de vista seus apetites, Bolsonaro acreditou no delírio. A realidade, porém, foi corroendo-o. Finalmente, no terceiro ano de Governo, Bolsonaro descobre-se isolado. De bufão do Congresso, uma imagem com a qual convivia sem maiores problemas, virou “genocida”. A libertação do politicamente correto, que ele anunciou em seu discurso de posse, pode ter liberado vários horrores, a ponto de permitir que um misógino, racista e homofóbico como ele se tornasse presidente. Mas genocídio é um degrau que ainda continua no mesmo lugar. Não dá para fazer piada com genocídio.
Quem ainda tem algo a perder começou a se afastar de Bolsonaro, com as mais variadas desculpas, ao longo dos primeiros anos de Governo. De Jananína Paschoal a Joyce Hasellmann. Do MBL ao PSL, seu próprio partido. E então Sergio Moro se foi e saiu atirando. E, no final de março, chegou a vez dos militares. Bolsonaro quis dar uma demonstração de força, demitindo um general, e seu apoio nos peitos estrelados das Forças Armadas ficou reduzido à meia dúzia, se tanto, de seus generais de estimação. Bolsonaro ainda precisa conviver com o bafo na nuca do vice Hamilton Mourão. Único não demissível, o general sempre dá um jeito de sutilmente avisar ao país (que já levou três vices ao poder desde a redemocratização, um por morte e dois por impeachment) que está ao dispor se necessário for. Mourão está sempre por ali, dando um jeito de ser lembrado.
A queda do chanceler Ernesto Araújo foi um ponto de inflexão no Governo Bolsonaro. Porque Bolsonaro foi obrigado a demiti-lo, e Bolsonaro não gosta de ser obrigado a nada. Ele fica ressentido como uma criança mimada e reage com malcriação ou violência, o que em parte explica a mal calculada demissão do ministro da Defesa, o equivalente a uma cotovelada para mostrar quem manda quando sente que já manda pouco. Mas principalmente porque Ernesto Araújo era importante para Bolsonaro. Ele era o idiota ilustrado de Bolsonaro, aquele que deveria dar uma roupagem supostamente intelectual a um Governo de ignorantes que sabem que são ignorantes.
Araújo sempre foi muito mais importante do que o guru Olavo de Carvalho porque era ele o ideólogo do bolsonarismo dentro do Governo e trazia com ele a legitimidade (e o lustro) de ser um diplomata, quadro de carreira no Itamaraty, ainda que obscuro. Seu discurso de posse como chanceler era uma metralhadora de citações para exibir erudição. A peça final era delirante, mas cuidadosamente pensada como um documento de fundação do que o então chanceler anunciava como uma “nova era”. Um delírio. Mas o que é Bolsonaro no poder senão um delírio que se realizou?
Perder Araújo ou, pior do que isso, ser obrigado a chutá-lo contra a sua vontade, significa para Bolsonaro que não há mais o simulacro de um projeto para além de si mesmo e o anteparo que isso representava, não há anseio ou expectativa de ser algo na história. Bolsonaro é agora também oficialmente só ele mesmo. E ele sabe o que é.
Bolsonaro converteu o Brasil num gigantesco cemitério. E essa tem sido uma manchete recorrente em jornais das mais diversas línguas. Seu projeto de disseminar o vírus para garantir imunidade por contágio, um barco furado em que o premiê Boris Johnson embarcou no início da pandemia, mas pulou fora quando o Reino Unido exibiu as piores estatísticas da Europa, deu ao Governo brasileiro o título de pior condução da pandemia entre todos os países do planeta.
Se as reuniões presenciais de cúpula estivessem permitidas, Bolsonaro teria dificuldades hoje em se manter ao lado de algum chefe de Estado com autoestima e preocupação eleitoral para posar para um retrato oficial. O brasileiro é visto como pária do mundo e estar perto dele pode contaminar o interlocutor. No cenário global ele não é mito, e sim mico (com o perdão ao animal que, graças a Bolsonaro, hoje vive muito pior em todos os seus habitats naturais).
Bolsonaro hoje é radioativo e infectou as relações comerciais do Brasil com o mundo. Grandes redes de supermercados, por exemplo, não querem se arriscar a um boicote por vender carne e outros produtos de um país governado por um destruidor da maior floresta tropical do mundo. Ninguém que tem apreço pela imagem de “democrata” quer negociar com alguém cada vez mais colado ao rótulo de “genocida”, especialmente na Europa pressionada por ativistas climáticos como Greta Thunberg e com os “verdes” aumentando sua influência em vários parlamentos.
Na terça-feira, 199 organizações ambientais brasileiras fizeram uma carta pública a Joe Biden alertando sobre o risco que um acordo de cooperação iminente entre os Estados Unidos e o Governo Bolsonaro traria para a emergência climática, os direitos humanos e a democracia. A descoberta de que o Governo Biden mantém há mais de um mês conversas a portas fechadas com o Governo Bolsonaro sobre meio ambiente surpreendeu o mundo democrático. Segundo a carta, as negociações com Bolsonaro —negacionista da pandemia que desmontou a política ambiental brasileira e que foi acusado por indígenas no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade— contaminam a narrativa de Biden, que prometeu em sua gestão lidar com a pandemia, o racismo, a crise climática e o papel dos Estados Unidos na promoção da democracia no mundo. “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”, afirma o texto.
Depois de mais de dois anos com Bolsonaro no poder, o Brasil vive um dos piores momentos de sua história. A economia ruiu. O pib brasileiro é o pior em 24 anos. A fome e a miséria aumentaram. A Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno. Os quatro filhos homens de Bolsonaro (a filha mulher, lembram, é só o resultado de uma “fraquejada”) são investigados por corrupção e outros crimes. Sua ligação com as milícias do Rio de Janeiro e o cruzamento com a execução de Marielle Franco, ela sim um ícone, se tornam cada vez mais evidentes. Um após outro grande jornal do mundo estampa Bolsonaro como uma “ameaça global” em seus editoriais e reportagens.
Quem ainda permanece ao lado de Bolsonaro hoje? Paulo Guedes, anunciado como superministro para aplacar os tais humores do tal mercado, desde o início do Governo foi apenas um miniministro. O fato de ainda permanecer como titular da Economia de um Governo com o desempenho do atual diz muito mais sobre Guedes do que sobre Bolsonaro. Se fosse uma empresa privada, essas que ele tanto defende, estaria demitido há muitos meses. E não adianta culpar a pandemia, porque vários governos do mundo, inclusive na América Latina, exibiram desempenhos econômicos muito melhores, inclusive porque fizeram lockdown.
Permanecem também os líderes do evangelismo de mercado. É importante diferenciar os evangélicos para não cometer injustiças. Quem apoiou e apoia Bolsonaro e suas políticas de mortes são os grandes pastores ligados ao neopentecostalismo e ao pentecostalismo que converteram a religião num dos negócios mais lucrativos dessa época, e também algumas figuras católicas. Beneficiadas com um perdão de débitos concedido sob a bênção de Bolsonaro, as igrejas acumulam 1,9 bilhão de reais na Dívida Ativa da União, dinheiro este, é importante assinalar, que pertence à população e dela está sendo tirado. Sem compromisso com a vida dos fiéis, esses mesmos pastores e padres abriram os templos na Páscoa, autorizados por Nunes Marques, ministro de estimação de Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal, produzindo aglomerações no momento em que o Brasil a cada dia superava o anterior no recorde de mortes por covid-19.
E permanecem também uma meia dúzia de generais de pijama, dos quais os generais da ativa tentam desesperadamente se distanciar para não corromper ainda mais a imagem das Forças Armadas. Há ainda o Centrão, o numeroso grupo de deputados de aluguel que hoje comanda o Congresso, mas que já mostraram que podem mudar de lado, se mais lucrativo for, da noite para o dia, como fizeram com Dilma Rousseff (PT) no passado recentíssimo. É esse rebotalho que resta hoje a Bolsonaro, que já não encontra quadros minimamente convincentes nem para recompor seu próprio Governo.
Bolsonaro, que gostou de ser popular, vê hoje baixas na sua base de apoio, assombrosamente fiel apesar dos horrores do seu Governo ―ou por causa dele. Sua popularidade está em queda. É certo que sempre haverá de restar aquele grupo totalmente identificado com Bolsonaro, para o qual negar Bolsonaro é negar a si mesmo. Esse grupo, ainda que minoritário, é lamentavelmente significativo. Lamentavelmente porque mostra que há uma parcela de brasileiros capazes de ignorar as centenas de milhares de mortes ao seu redor, mesmo quando há perdas dentro de sua casa. Esse é um traço de distorção mental complicado de lidar numa sociedade, mas não é novo, na medida em que a sociedade brasileira sempre conviveu com a morte sistemática dos mais frágeis, seja por fome, por doença não tratada ou por bala “perdida” da polícia.
Porém, todos aqueles que encontrarem alguma brecha para se desidentificar de Bolsonaro ou para dizer que foram enganados por ele na eleição estão se afastando horrorizados. Como sociedade, precisamos parar de renegar os eleitores arrependidos de Bolsonaro, porque é necessário dar saída às pessoas ou elas serão obrigadas a permanecer no mesmo lugar. Todos têm o direito de mudar de ideia, o que não os exime da responsabilidade pelos atos aos quais suas ideias os levaram no passado.
Bolsonaro se descobre isolado. E se descobre feio, pária do mundo. Nem mesmo líderes de direita de outros países querem vê-lo por perto. Antigos apoiadores, que lucraram muito com ele, vão vazando pela primeira brecha que encontram. Bolsonaro está acuado, como mostrou ao demitir o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. E Bolsonaro acuado é ainda mais perigoso, porque ele não gosta de perder e tem cada vez menos a perder. Este é um homem, ninguém tem o direito de esquecer, que planejou explodir bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Explodir bombas diz muito sobre alguém. Mas é preciso também prestar atenção no porquê: para melhorar seu próprio soldo. Bolsonaro só age fundamentalmente por si mesmo. Sua vida é a única que importa, como está mais do que provado.
A ideia ridícula de que ele é controlável é isso mesmo: ridícula. E, em vários momentos, também oportunista, para alguns justificarem o injustificável, que é seguir compondo com Bolsonaro. O homem que governa o Brasil é bestial. Se move por apetites, por explosões, por delírios. Mas não é burro. Aliado às forças mais predatórias do Brasil, ele destruiu grande parte do arcabouço de direitos duramente conquistados, um trabalho iniciado por Michel Temer (MDB) antes dele. Também desmontou a legislação ambiental e enfraqueceu os órgãos de proteção, abrindo a Amazônia para exploração em níveis só superados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Bolsonaro governa. E, não tenham dúvidas, seguirá governando enquanto não for impedido.
É necessário compreender que Bolsonaro é uma besta, sim, no sentido de sua bestialidade. Mas é uma besta inteligente e com projeto. Poucos governantes executaram com tanta rapidez seu projeto ao assumir o poder. Com exceção do discurso vazio da anticorrupção, Bolsonaro fez e faz exatamente o que anunciou na campanha eleitoral que faria. É por essa razão que isso que chamam “mercado” está sempre prestes “a perder a paciência” com ele, mas como demora… Demora porque sempre pode ganhar um pouco mais com Bolsonaro. Isso que chamam mercado inventou as regras que movem o Centrão. O que vale são os fins e os fins são os lucros privados, o povo que se exploda. Ou que morra na fila do hospital, como agora. O mercado é o Centrão com pedigree. Muito mais antigo e experiente que seu arremedo no Congresso.
Bolsonaro precisa ser impedido já, porque o que fará a seguir poderá ser muito pior e mais mortífero do que o que fez até agora. E precisa ser impedido também pelo óbvio: porque constitucionalmente alguém que cometeu os crimes de responsabilidade que ele cometeu não tem o direito legal e ético de permanecer na presidência. Ter impedido Dilma Rousseff por “pedaladas fiscais” e não fazer o impeachment de Bolsonaro “por falta de condições de fazer um impeachment agora” ou porque “o impeachment é um remédio muito amargo” é incompatível com qualquer projeto de democracia. É incompatível mesmo com uma democracia esfarrapada como a brasileira. E haverá consequências.
O que resta agora a Bolsonaro, cada vez mais isolado e acuado, é olhar para Donald Trump e aprender com os erros e acertos de seu ídolo. Ele seguirá tentando o autogolpe, mesmo com as Forças Armadas afirmando seu papel constitucional. Ele seguirá apostando naqueles que o mantiveram por quase 30 anos como deputado, sua base desde os tempos em que queria explodir os quartéis: as baixas patentes das Forças Armadas e, principalmente, as PMs dos Estados.
Bolsonaro se prepara muito antes de Trump. Se conseguirá ou não, é uma incógnita. Mas aqueles sentados sobre mais de 70 pedidos de impeachment e aqueles que ainda sustentam o Governo vão mesmo pagar para ver? É sério que vão seguir discutindo uma “solução de centro” para a eleição de 2022 e ignorar todos os crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro? É sério que ainda não entenderam que ele sempre esteve fora de controle porque as instituições que deveria controlá-lo pelo respeito à Constituição abriram mão de fazê-lo?
É sério que vão se arriscar a reproduzir no Brasil, de forma muito mais violenta, a “insurreição” vivida pelo Congresso americano em 6 de janeiro de 2021, quando o Capitólio foi invadido por seguidores inflamados por Donald Trump? Vale lembrar do republicano Mike Pence, vice-presidente no Governo de Trump, e do republicano Mitch McConnell, líder do partido no Senado: deram a Trump tudo o que ele queria, acreditando-se a salvo, até descobrir em 6 de janeiro que também estavam ameaçados. Não se controla bestas.
No Brasil, porém, com uma democracia muito mais frágil, qualquer uma das aventuras perversas de Bolsonaro poderá ter consequências muito mais sangrentas. Posso estar errada, mas acredito que Trump não pretendia que houvesse mortes. Ele é um político inescrupuloso, um negociante desonesto, um mentiroso compulsivo e um showman que adora holofotes, mas não acho que seja um matador. Já Bolsonaro é notoriamente um defensor da violência como modo de agir, que defende o armamento da população e claramente goza com a dor do outro. Bolsonaro acredita no sangue e acredita em infligir dor. Perto de Bolsonaro, Trump é um garoto levado com topete esquisito. E Bolsonaro está se movendo.
Quantos brasileiras e brasileiros ainda precisam morrer?
O Brasil já exibe números de mortos por covid-19 comparáveis a grandes projetos de extermínio da história. E as covas continuam sendo abertas a uma média diária de quase 3.000 por dia. Grande parte dessas mortes poderiam ter sido evitadas se Bolsonaro e seu Governo tivessem combatido a covid-19. Isso não é uma opinião, é um fato comprovado por pesquisas sérias. O sistema público de saúde está colapsado. O sistema privado de saúde também está colapsado. Hoje não adianta nem mesmo ter dinheiro no Brasil. As pessoas estão morrendo na fila, o que também está comprovado. Hospitais privados de ponta estão racionando oxigênio e diluindo sedativos. E as mortes seguem multiplicando-se.
A pergunta às autoridades responsáveis, de todas as áreas, no âmbito público e no privado, é: quantas brasileiras e quantos brasileiros mais precisam morrer para que vocês façam seu dever? Muitos de nós ainda morreremos, mas eu garanto: muitos de nós viveremos para nomear a responsabilidade de cada um na história. Seus nomes serão grafados com a vergonha dos covardes e seus descendentes terão o sobrenome manchado de sangue. Não morreremos em silêncio. E os que sobreviverem dirão o nome de cada um de vocês, dia após dia.
Pacheco transforma blindagem do governo em desmoralização do Senado
O senador Rodrigo Pacheco tornou-se um personagem paradoxal. No comitê constituído para supostamente gerir a crise sanitária, assume atribuição de Bolsonaro ao coordenar as demandas de governadores e prefeitos. Na presidência do Senado, foge de suas próprias atribuições ao retardar a instalação da CPI da Pandemia.
Guindado ao comando do Senado com o apoio do Planalto, Pacheco transforma a blindagem do governo Bolsonaro num processo de desmoralização da Casa legislativa que deveria presidir.
O pedido de CPI é apoiado por 31 senadores, mais do que os 27 exigidos pelo regimento interno. O objeto da investigação está delimitado, como exige a Constituição. Deseja-se apurar ações e omissões do governo no gerenciamento da pandemia no Brasil e no Amazonas, onde doentes morreram por falta de oxigênio.
Havendo apoio e motivação, não restaria a Pacheco senão ler o pedido em plenário, requisitar aos líderes a indicação dos representantes de cada partido na CPI e deflagrar a investigação. Mas Pacheco decidiu impedir a minoria parlamentar de exercer o seu direito constitucional.
Contrariados, os senadores foram bater às portas do Supremo. Intimado a dar explicações, Pacheco enviou à Suprema Corte uma peça preparada pela Advocacia do Senado. Anota que, neste momento, uma CPI teria o "efeito inverso ao desejado", pois geraria "a desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis". E poderia promover "reações sociais inesperadas".
Curioso, muito curioso, curiosíssimo. O Brasil frequenta as manchetes internacionais como ameaça sanitária. Faltam vacinas. O sistema hospitalar vive um colapso. Há filas nas UTIs. Os doentes que conseguem chegar ao respirador por vezes são entubados a seco, porque falta sedativo. A pilha de mortos se aproxima da inacreditável marca dos 400 mil. E Pacheco avalia que a CPI é que vai atear "desconfiança" na população, provocando reações "inesperadas".
Após migrar do jejum da ditadura para o banquete de poderes da Constituinte de 1988, o Congresso experimentou uma saborosa sensação de utilidade. Nessa época, os congressistas acreditavam que, aberta a porta dos estímulos, seriam capazes de saciar todos os apetites da nação.
Decorridas mais de três décadas, o Congresso vive uma fase de perversa originalidade: ambiciona a irrelevância. No alvorecer da redemocratização, erguera-se do túmulo da mediocridade existencial. Agora, leva o eleitor a perguntar para os seus botões: Afinal, para que serve o Congresso Nacional?
São quatro as principais serventias do Legislativo: representar a sociedade, produzir leis, aprovar o Orçamento e fiscalizar o Poder Executivo. O Congresso já não se desincumbe adequadamente de nenhuma dessas atribuições. O brasileiro não se sente representado. Entre 80% e 90% das leis têm origem no Executivo. Crivado de pedaladas, o Orçamento virou pista de ciclismo fiscal.
Guindado ao comando do Senado com o apoio do Planalto, Pacheco transforma a blindagem do governo Bolsonaro num processo de desmoralização da Casa legislativa que deveria presidir.
O pedido de CPI é apoiado por 31 senadores, mais do que os 27 exigidos pelo regimento interno. O objeto da investigação está delimitado, como exige a Constituição. Deseja-se apurar ações e omissões do governo no gerenciamento da pandemia no Brasil e no Amazonas, onde doentes morreram por falta de oxigênio.
Havendo apoio e motivação, não restaria a Pacheco senão ler o pedido em plenário, requisitar aos líderes a indicação dos representantes de cada partido na CPI e deflagrar a investigação. Mas Pacheco decidiu impedir a minoria parlamentar de exercer o seu direito constitucional.
Contrariados, os senadores foram bater às portas do Supremo. Intimado a dar explicações, Pacheco enviou à Suprema Corte uma peça preparada pela Advocacia do Senado. Anota que, neste momento, uma CPI teria o "efeito inverso ao desejado", pois geraria "a desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis". E poderia promover "reações sociais inesperadas".
Curioso, muito curioso, curiosíssimo. O Brasil frequenta as manchetes internacionais como ameaça sanitária. Faltam vacinas. O sistema hospitalar vive um colapso. Há filas nas UTIs. Os doentes que conseguem chegar ao respirador por vezes são entubados a seco, porque falta sedativo. A pilha de mortos se aproxima da inacreditável marca dos 400 mil. E Pacheco avalia que a CPI é que vai atear "desconfiança" na população, provocando reações "inesperadas".
Após migrar do jejum da ditadura para o banquete de poderes da Constituinte de 1988, o Congresso experimentou uma saborosa sensação de utilidade. Nessa época, os congressistas acreditavam que, aberta a porta dos estímulos, seriam capazes de saciar todos os apetites da nação.
Decorridas mais de três décadas, o Congresso vive uma fase de perversa originalidade: ambiciona a irrelevância. No alvorecer da redemocratização, erguera-se do túmulo da mediocridade existencial. Agora, leva o eleitor a perguntar para os seus botões: Afinal, para que serve o Congresso Nacional?
São quatro as principais serventias do Legislativo: representar a sociedade, produzir leis, aprovar o Orçamento e fiscalizar o Poder Executivo. O Congresso já não se desincumbe adequadamente de nenhuma dessas atribuições. O brasileiro não se sente representado. Entre 80% e 90% das leis têm origem no Executivo. Crivado de pedaladas, o Orçamento virou pista de ciclismo fiscal.
Quanto à fiscalização do Executivo há de dois tipos: as que jamais são abertas e as que são enterradas vivas. Admita-se que os compromissos que Pacheco assumiu com o governo o impeçam de elevar a própria estatura. Agacha quem quer. Mas o Supremo não pode permitir que o presidente do Senado reduza o pé-direito da Casa que deveria presidir.
A tragédia dos invisíveis
O que causa maior impressão quando se veem as imagens das populações deslocadas no Norte de Moçambique, a tentar fugir dos ataques cometidos por bandos terroristas selvagens, é o completo grau de abandono em que aquelas pessoas se encontram – longe de tudo e de todos, sem qualquer ligação com o resto do mundo, quase como se vivessem num planeta distante ou num longínquo tempo passado.
Há pelo menos três anos que, com alguma frequência, vamos sendo sobressaltados com os ataques perpetrados contra aquelas gentes, pobres, indefesas e inocentes, cujo único crime, pelos vistos, é o de habitarem um espaço cobiçado por outros, por razões que as ultrapassam. No entanto, só prestamos atenção àquelas mulheres e crianças – e, mesmo assim, efémera – quando elas, após um ataque, são obrigadas a caminhar durante quilómetros em busca de auxílio, deixando para trás a dor dos maridos e filhos mortos, com relatos que deveriam obrigar as autoridades moçambicanas e o mundo a agir para pôr cobro a uma tragédia que parece não ter fim. Em todo o resto do tempo, quando não nos chegam notícias de massacres, aqueles moçambicanos voltam para a invisibilidade em que vivem e a que nós os devotamos.
Apesar dos relatos de coragem e abnegação que nos chegam sempre que o conflito escala, esta continua a ser uma tragédia de pessoas invisíveis, de quem apenas vemos imagens em situações aflitivas, em campos de refugiados ou no meio da dor imensa pela perda de entes próximos e queridos. São pessoas entregues à sua sorte, num território que tem tudo para ser um paraíso, mas que está cada vez mais transformado num inferno. São pessoas que, mesmo após caminharem longos quilómetros, falam um português que nos é familiar – e que, no mínimo, nos deveria fazer aumentar o nosso sentido de proximidade e de solidariedade. São pessoas que vivem com pouco ou quase nada, sem beneficiarem um cêntimo sequer dos enormes projetos de exploração de gás natural que estão a ser desenvolvidos na região. São as vítimas principais de uma guerra esquecida e também ela, quase sempre, invisível.
Grande parte do abandono a que estas populações estão votadas deve-se a algo que, no fundo, nos deveria a todos fazer pensar: elas não têm imagens para nos mostrar. Elas não têm os smartphones à mão, que permitem mostrar ao mundo a forma como vivem, como sofrem, como são atacadas. Não podem, sequer, copiar o que estão a fazer, atualmente, os manifestantes birmaneses que enfrentam as balas do exército armados com uma coragem imensa, mas também com os telemóveis que lhes permitem filmar as atrocidades e, dessa forma, denunciar ao mundo a selvajaria lunática de uma junta militar prepotente e sanguinária. Da mesma maneira, é-lhes também vedado o acesso a um grau de comoção generalizado, como o que surgiu nos EUA, após a divulgação das imagens da asfixia de George Floyd – prova irrefutável de uma violência policial que, até aí, permanecia conhecida, mas também invisível.
A pobreza e as atrocidades no Norte de Moçambique não aparecem nas redes sociais. Sem imagens, a realidade de Cabo Delgado não consegue tornar-se “viral” para o resto do mundo. Exatamente como acontece, aliás, em tantas outras regiões de África, por onde avançam os grupos militares de radicais islâmicos, dizimando populações, raptando alunos nas escolas, destruindo aldeias.
Em muitos locais do planeta, atualmente, a primeira medida que regimes autoritários tomam para calar revoltas ou protestos que possam fugir do controlo é desligar a internet. Em Cabo Delgado e em grande parte de África, é a pobreza que se encarrega dessa “tarefa”, condenando milhões ao esquecimento. Mas eles não são invisíveis, nós é que insistimos em não querer vê-los.
Brasil tem em um dia mais mortes por covid-19 do que 133 países em um ano de pandemia
Em 6 de abril de 2021, o Brasil bateu um recorde trágico na pandemia, com 4.195 mortes por covid registradas em 24 horas. É mais que o dobro do registrado um mês antes. Apenas os Estados Unidos superam essa marca. O patamar brasileiro de mortes em apenas um dia é tão alto que supera o que 133 países registraram, separadamente, durante um ano inteiro de pandemia.
O Brasil tem 212 milhões de habitantes. Estes 133 países somam 1,9 bilhão de pessoas.
Nesse grupo há de tudo um pouco. Em comparação ao Brasil, há nações com quase a mesma população (Nigéria, com 206 milhões), 30 países com mais de 20 milhões de habitantes, 44 com maior índice de desenvolvimento humano (IDH), 33 com mais idosos, 49 com mais diabéticos. São dados oficiais levantados pelo site Our World in Data, da Universidade de Oxford.
Um dos principais argumentos de quem nega a gravidade da pandemia no Brasil passa pelo tamanho da população. Muitos afirmam que não seria justo comparar com países com menos habitantes em números absolutos.
Segundo o Ministério da Saúde, o número de mortos por covid-19 no Brasil totaliza 336 mil. A cifra, no entanto, é desatualizada e incompleta. Por outro lado, dados também oficiais de hospitais brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram com casos confirmados ou suspeitos de covid-19 já se aproxima hoje de 500 mil.
Em março, haviam morrido mais pessoas de covid-19 no Brasil do que em 109 países juntos durante a pandemia inteira. E o mês de abril sinaliza ser pior.
Todos os indicadores de saúde do país indicam que a tragédia brasileira deve continuar piorando, com sistema de saúde em colapso, vacinação lenta, número de casos graves aumentando e centenas de pessoas morrendo em filas diariamente à espera de vagas em hospitais.
A situação socioeconômica também tem se agravado, com desemprego e inflação crescentes. Ainda: pela primeira vez em 17 anos, mais da metade da população não sabe se conseguirá ter comida no prato todos os dias. Há 19 milhões de pessoas passando fome hoje no país, segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirma ainda que a transmissão do vírus e a letalidade da doença estão em alta no país. Falta de leitos, medicamentos e profissionais de saúde tendem a ampliar o número de mortos.
Segundo a Fiocruz, 19 Estados e o Distrito Federal têm ocupação dos leitos de UTI superior a 90%. Isso levando em consideração que a oferta de camas hospitalares já é muito maior do que no início da pandemia.
Para tentar conter a crise, a instituição defende a adoção de restrições rígidas à circulação de pessoas por pelo menos duas semanas e de forma coordenada por governo federal, Estados e municípios.
"Coerência e convergência são fundamentais neste momento de crise, para que as medidas de bloqueio sejam efetivamente adotadas, de forma a sair do estado de colapso de saúde e progredir para uma etapa de medidas de mitigação da pandemia, diminuindo o número de mortes, casos e taxas de transmissão e efetivamente salvando vidas", afirma a Fiocruz em boletim.
Há diversas formas de comparar o ritmo de vacinação entre os países. Em números totais, o Brasil estaria na quinta posição, com 21 milhões de doses distribuídas, atrás de EUA (168 milhões), China (142 milhões), Índia (83 milhões) e Reino Unido (37 milhões).
Mas, como mencionado acima, mesmo aqueles que minimizam a gravidade da situação defendem que as comparações levem em conta o tamanho da população.
E aí, nesse caso, o Brasil cai para a 15ª posição global, com 8,1% da população imunizada com pelo menos uma dose. O líder é Israel, 61%.
Na América Latina, quem está à frente é o Chile, com 37%. E mesmo com o avanço expressivo da vacinação por lá, o país sul-americano também tem enfrentado um colapso no sistema de saúde, o que indica que a contenção da pandemia precisa ser associada a medidas eficazes de distanciamento social e uso universal de máscaras capazes de evitar a infecção.
A estratégia de lockdown e vacinação acelerada juntos foi adotada por Israel e Reino Unido, dois dos países mais bem-sucedidos até aqui em reduzir o número de mortes e imunizar rapidamente a população.
O ritmo de vacinação no Brasil tem melhorado, mas está longe da capacidade instalada do país, reconhecido internacionalmente por programas massivos e eficazes de imunização.
Desde 17 de janeiro de 2021, o Brasil só superou duas vezes a marca de 1 milhão de vacinados por dia. Mas isso ainda é menos da metade da meta brasileira. "Nós temos 37 mil salas de vacinação no Brasil, que podem vacinar até 2,4 milhões de brasileiros todos os dias. Esse é o objetivo", afirmou o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em audiência na Câmara dos Deputados em 31 de março de 2021.
A aceleração das aplicações esbarra em um problema mundial: a falta de vacinas.
No caso brasileiro, isso se agravou porque o governo Bolsonaro recusou sucessivas ofertas da Pfizer, apostou todas as fichas na vacina AstraZeneca-Oxford, boicotou a Coronavac por disputas políticas com o governo de São Paulo e só decidiu comprar outras vacinas quando a fila de países compradores já "dobrava a esquina".
O cronograma atual do Ministério da Saúde prevê a entrega de 154 milhões de doses no primeiro semestre de 2021, considerando apenas vacinas aprovadas pela Anvisa: Coronavac, AstraZeneca-Oxford e Pfizer.
Isso seria suficiente para imunizar o grupo prioritário inteiro, mas não significa que todas essas 78 milhões de pessoas estariam vacinadas antes de julho — o Brasil tem conseguido aplicar apenas metade das doses disponíveis e há um intervalo de semanas entre a primeira e a segunda dose.
Além disso, em razão dos atrasos recorrentes de importações e entregas e da alta demanda internacional por vacinas, parte dos especialistas vê com ceticismo o cronograma de 154 milhões de doses no primeiro semestre.
"Com o pé no chão, até o meio do ano você vai ter uma vacinação provavelmente de quem tem mais de 60 anos e provavelmente pode avançar um pouco mais na faixa dos 50 anos, incluindo também outros profissionais em risco. É isso que nós vamos ter até o meio do ano. Estamos falando de 40 ou 50 milhões de pessoas. E 100 milhões de doses de vacinas", afirmou Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em entrevista ao jornal Valor Econômico em 4 de abril de 2021.
É importante ter em mente que tudo pode mudar.
A tendência, até o momento, é que o início da vacinação dos adultos não prioritários deva acontecer pelo menos em meados do segundo semestre de 2021, enquanto a de jovens com menos de 25 anos deve acontecer só em 2022.
O Brasil tem 212 milhões de habitantes. Estes 133 países somam 1,9 bilhão de pessoas.
Nesse grupo há de tudo um pouco. Em comparação ao Brasil, há nações com quase a mesma população (Nigéria, com 206 milhões), 30 países com mais de 20 milhões de habitantes, 44 com maior índice de desenvolvimento humano (IDH), 33 com mais idosos, 49 com mais diabéticos. São dados oficiais levantados pelo site Our World in Data, da Universidade de Oxford.
Um dos principais argumentos de quem nega a gravidade da pandemia no Brasil passa pelo tamanho da população. Muitos afirmam que não seria justo comparar com países com menos habitantes em números absolutos.
Vamos então aos números relativos: quantas mortes são registradas a cada 1 milhão de habitantes? Atualmente, o Brasil é o sexto do ranking mundial, superado apenas por Hungria, Bósnia e Herzegovina, Macedônia do Norte, Bulgária e Montenegro. Todos têm menos de 10 milhões de pessoas.
Se essa comparação levar em conta todas as mortes ocorridas na pandemia inteira, e não apenas a taxa atual, o Brasil está em 18º no ranking, atrás de nações como Bélgica, Itália, Reino Unido, Estados Unidos e México.
Mas a situação brasileira está piorando rapidamente: em janeiro, o país ocupava a 24ª posição.
Hoje, o Brasil tem 2,7% da população mundial, mas concentra 37% das mortes que ocorrem no mundo. Morre-se mais no Brasil de covid-19 do que em continentes inteiros: Europa, Ásia, África, Oceania ou no restante da América.
Se essa comparação levar em conta todas as mortes ocorridas na pandemia inteira, e não apenas a taxa atual, o Brasil está em 18º no ranking, atrás de nações como Bélgica, Itália, Reino Unido, Estados Unidos e México.
Mas a situação brasileira está piorando rapidamente: em janeiro, o país ocupava a 24ª posição.
Hoje, o Brasil tem 2,7% da população mundial, mas concentra 37% das mortes que ocorrem no mundo. Morre-se mais no Brasil de covid-19 do que em continentes inteiros: Europa, Ásia, África, Oceania ou no restante da América.
Segundo o Ministério da Saúde, o número de mortos por covid-19 no Brasil totaliza 336 mil. A cifra, no entanto, é desatualizada e incompleta. Por outro lado, dados também oficiais de hospitais brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram com casos confirmados ou suspeitos de covid-19 já se aproxima hoje de 500 mil.
Em março, haviam morrido mais pessoas de covid-19 no Brasil do que em 109 países juntos durante a pandemia inteira. E o mês de abril sinaliza ser pior.
Todos os indicadores de saúde do país indicam que a tragédia brasileira deve continuar piorando, com sistema de saúde em colapso, vacinação lenta, número de casos graves aumentando e centenas de pessoas morrendo em filas diariamente à espera de vagas em hospitais.
A situação socioeconômica também tem se agravado, com desemprego e inflação crescentes. Ainda: pela primeira vez em 17 anos, mais da metade da população não sabe se conseguirá ter comida no prato todos os dias. Há 19 milhões de pessoas passando fome hoje no país, segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirma ainda que a transmissão do vírus e a letalidade da doença estão em alta no país. Falta de leitos, medicamentos e profissionais de saúde tendem a ampliar o número de mortos.
Segundo a Fiocruz, 19 Estados e o Distrito Federal têm ocupação dos leitos de UTI superior a 90%. Isso levando em consideração que a oferta de camas hospitalares já é muito maior do que no início da pandemia.
Para tentar conter a crise, a instituição defende a adoção de restrições rígidas à circulação de pessoas por pelo menos duas semanas e de forma coordenada por governo federal, Estados e municípios.
"Coerência e convergência são fundamentais neste momento de crise, para que as medidas de bloqueio sejam efetivamente adotadas, de forma a sair do estado de colapso de saúde e progredir para uma etapa de medidas de mitigação da pandemia, diminuindo o número de mortes, casos e taxas de transmissão e efetivamente salvando vidas", afirma a Fiocruz em boletim.
Há diversas formas de comparar o ritmo de vacinação entre os países. Em números totais, o Brasil estaria na quinta posição, com 21 milhões de doses distribuídas, atrás de EUA (168 milhões), China (142 milhões), Índia (83 milhões) e Reino Unido (37 milhões).
Mas, como mencionado acima, mesmo aqueles que minimizam a gravidade da situação defendem que as comparações levem em conta o tamanho da população.
E aí, nesse caso, o Brasil cai para a 15ª posição global, com 8,1% da população imunizada com pelo menos uma dose. O líder é Israel, 61%.
Na América Latina, quem está à frente é o Chile, com 37%. E mesmo com o avanço expressivo da vacinação por lá, o país sul-americano também tem enfrentado um colapso no sistema de saúde, o que indica que a contenção da pandemia precisa ser associada a medidas eficazes de distanciamento social e uso universal de máscaras capazes de evitar a infecção.
A estratégia de lockdown e vacinação acelerada juntos foi adotada por Israel e Reino Unido, dois dos países mais bem-sucedidos até aqui em reduzir o número de mortes e imunizar rapidamente a população.
O ritmo de vacinação no Brasil tem melhorado, mas está longe da capacidade instalada do país, reconhecido internacionalmente por programas massivos e eficazes de imunização.
Desde 17 de janeiro de 2021, o Brasil só superou duas vezes a marca de 1 milhão de vacinados por dia. Mas isso ainda é menos da metade da meta brasileira. "Nós temos 37 mil salas de vacinação no Brasil, que podem vacinar até 2,4 milhões de brasileiros todos os dias. Esse é o objetivo", afirmou o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em audiência na Câmara dos Deputados em 31 de março de 2021.
A aceleração das aplicações esbarra em um problema mundial: a falta de vacinas.
No caso brasileiro, isso se agravou porque o governo Bolsonaro recusou sucessivas ofertas da Pfizer, apostou todas as fichas na vacina AstraZeneca-Oxford, boicotou a Coronavac por disputas políticas com o governo de São Paulo e só decidiu comprar outras vacinas quando a fila de países compradores já "dobrava a esquina".
O cronograma atual do Ministério da Saúde prevê a entrega de 154 milhões de doses no primeiro semestre de 2021, considerando apenas vacinas aprovadas pela Anvisa: Coronavac, AstraZeneca-Oxford e Pfizer.
Isso seria suficiente para imunizar o grupo prioritário inteiro, mas não significa que todas essas 78 milhões de pessoas estariam vacinadas antes de julho — o Brasil tem conseguido aplicar apenas metade das doses disponíveis e há um intervalo de semanas entre a primeira e a segunda dose.
Além disso, em razão dos atrasos recorrentes de importações e entregas e da alta demanda internacional por vacinas, parte dos especialistas vê com ceticismo o cronograma de 154 milhões de doses no primeiro semestre.
"Com o pé no chão, até o meio do ano você vai ter uma vacinação provavelmente de quem tem mais de 60 anos e provavelmente pode avançar um pouco mais na faixa dos 50 anos, incluindo também outros profissionais em risco. É isso que nós vamos ter até o meio do ano. Estamos falando de 40 ou 50 milhões de pessoas. E 100 milhões de doses de vacinas", afirmou Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em entrevista ao jornal Valor Econômico em 4 de abril de 2021.
É importante ter em mente que tudo pode mudar.
A tendência, até o momento, é que o início da vacinação dos adultos não prioritários deva acontecer pelo menos em meados do segundo semestre de 2021, enquanto a de jovens com menos de 25 anos deve acontecer só em 2022.
O governo federal abandonou o Brasil
Comemoramos no dia 7 de abril o Dia Mundial da Saúde, data em que todos os países integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU) colocam em pauta o tema da Saúde Pública como fundamental para o desenvolvimento social e para a dignidade humana. Porém, apesar de termos o maior sistema público de saúde do mundo, o SUS, o Brasil não tem o que comemorar diante da irresponsabilidade federal na condução das ações contra a pandemia de Covid-19.
São mais de 337 mil vidas perdidas em pouco mais de um ano. De acordo com a pesquisa Epicovid, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), poderíamos ter evitado 225 mil mortes até março se tivéssemos ações adequadas coordenadas a nível nacional, se o governo não fosse negacionista, se comprasse vacinas no tempo adequado e se o SUS tivesse financiamento suficiente para dar conta de cuidar da população no meio do cenário de crise sanitária.
O Brasil foi abandonado pelos que optaram por apostar no ajuste fiscal, na manutenção da EC 95/2016, na redução do auxílio emergencial e no fim da verba emergencial para enfrentamento da Covid-19 em 2021. Mais da metade do orçamento da União está intocado para dar conta do pagamento dos juros e encargos da dívida pública. Isso é genocídio. As pessoas que morreram não voltam mais, mas nossa força será capaz de transformar o luto em luta para seguirmos defendendo os valores da nossa Constituição de 1988. O SUS e a Vida nunca deixarão de existir.
Queremos:
– Vacina já para todas as pessoas no SUS!
– Auxílio emergencial de no mínimo R$ 600 até o fim da pandemia!
– Revogação da EC 95/2016 e financiamento efetivo para o SUS!
São mais de 337 mil vidas perdidas em pouco mais de um ano. De acordo com a pesquisa Epicovid, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), poderíamos ter evitado 225 mil mortes até março se tivéssemos ações adequadas coordenadas a nível nacional, se o governo não fosse negacionista, se comprasse vacinas no tempo adequado e se o SUS tivesse financiamento suficiente para dar conta de cuidar da população no meio do cenário de crise sanitária.
O Brasil foi abandonado pelos que optaram por apostar no ajuste fiscal, na manutenção da EC 95/2016, na redução do auxílio emergencial e no fim da verba emergencial para enfrentamento da Covid-19 em 2021. Mais da metade do orçamento da União está intocado para dar conta do pagamento dos juros e encargos da dívida pública. Isso é genocídio. As pessoas que morreram não voltam mais, mas nossa força será capaz de transformar o luto em luta para seguirmos defendendo os valores da nossa Constituição de 1988. O SUS e a Vida nunca deixarão de existir.
Queremos:
– Vacina já para todas as pessoas no SUS!
– Auxílio emergencial de no mínimo R$ 600 até o fim da pandemia!
– Revogação da EC 95/2016 e financiamento efetivo para o SUS!
Assinar:
Postagens (Atom)