sábado, 14 de abril de 2018

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Os silêncios de Rosa Weber em um Supremo ruidoso

A sociedade começa a se sentir incomodada diante de um Supremo Tribunal Federal em que sobrariam palavras e brigas entre suas excelências. Já se começa a pedir que seria melhor não transmitir ao vivo suas sessões eternas, que dão a impressão de que suas excelências estão de mal com a vida e em confronto uns com os outros. Uma das contradições de alguns magistrados é que, enquanto acusam a imprensa de “opressora”, como acaba de fazer Gilmar Mendes, sonham em aparecer na mídia, esquecendo-se de sua responsabilidade, como se se tratasse de simples políticos em busca de votos. Uma das exceções é Rosa Weber, de quem as pessoas sabem pouco ou nada de sua vida, nem perde tempo em expor opiniões para a mídia. Ela fala onde deve fazer um magistrado da Alta Corte, em seus votos, que costumam ser concisos e nem por isso menos densos e responsáveis.


Desde os tempos do mensalão, nós, jornalistas, estamos acostumados a acompanhar ao vivo as sessões do Supremo e já vimos de tudo, até brigas, como a famosa entre Gilmar Mendes, então presidente da Corte e um duro crítico do PT, e o relator do mensalão, Joaquim Barbosa. Era 22 de abril de 2009. Irritado com Barbosa, Mendes afirmou: “O ministro não tem condições de dar lição a ninguém”. Barbosa pediu respeito e respondeu: “Vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário”. E continuou: “Vossa excelência, quando se dirige a mim não está falando com os seus capangas do Mato Grosso”. E já desde essa época me lembro de Rosa Weber, silenciosa, concentrada em seus papéis. Nunca a vi interromper um colega e menos ainda desrespeitá-lo, algo que, sim, fizeram com ela.

Se os magistrados têm tanto medo da imprensa, que a ignorem. O que não podem é procurá-la, passar informações a seus jornalistas amigos com uma mão e, com outra, execrá-la. Eles mais que ninguém deveriam ter a consciência de que em todas as ditaduras se começa por demonizar os meios de comunicação e se acaba fechando-os ou censurando-os. Jogar com os ataques à liberdade de informação é o melhor meio de armar quem gostaria de silenciá-la.

Parece às vezes que Gilmar, quando ataca a mídia e diz que “nunca a viu tão opressora”, se esqueceu dos tempos da ditadura militar. Nós jornalistas que já trabalhamos por anos na informação durante uma ditadura, sob um censor, sabemos a gravidade que significa atacar a mídia durante uma democracia. E ainda mais um magistrado, que deveria ser o maior garantidor do direito que a sociedade tem de ser informada. Deveria ser o primeiro a saber que informar é publicar o que o poder quer ocultar. O resto é publicidade.

O sagaz desenhista El Roto, da edição espanhola de EL PAÍS, publicou dias atrás seu cartum com estas palavras: “Não sei se acredito nas notícias falsas ou nas mentiras oficiais”. E referindo-se à vaidade dos homens públicos que tanto gostam de aparecer na mídia que eles amaldiçoam, escreveu: “Ser homem de palavra hoje é um arcaísmo. Agora é preciso ser homem de imagem”. Esse pode ser hoje o drama de alguns magistrados brasileiros que, em vez de se preocuparem em ser homens de palavras e não caniços que mudam com o vento ou com seus interesses políticos, preferem ser homens de imagem.

Como correspondente durante muitos anos deste jornal na Itália, tive de escrever sobre muitos de seus políticos importantes. Quando os criticava, em vez de se irritarem, todas as vezes que havia alguma reportagem sobre eles me mandavam um motorista em meu escritório com um cartão escrito à mão no qual me agradeciam a publicação. Conservo ainda alguns deles. Não era sarcasmo, era inteligência política. Uma noite, em um jantar em que me coube sentar ao lado de Giulio Andreotti, então primeiro-ministro, ao saber que era o correspondente de EL PAÍS, ele me disse: “O senhor escreve mal de mim, mas escreve”. Disse isso rindo.

Os grandes estadistas, os políticos ou juízes importantes costumam estar acima das possíveis críticas da mídia. Eles devem saber que a crítica ao poder faz parte da defesa da democracia. Nesse sentido, com a admiração pelos silêncios de Rosa Weber, mais frutíferos que a fanfarronice de alguns de seus colegas, quero recordar que Dilma Rousseff, em seu discurso de posse como presidenta, afirmou: “Prefiro o barulho da imprensa livre ao silêncio das ditaduras”. E ela conheceu a ditadura em sua própria carne. Dilma encontrou em seu gabinete um projeto do PT do último Governo Lula para o “controle social dos meios de comunicação”, um eufemismo para indicar a censura. Pelo que sei Dilma mandou deixá-lo num canto e nunca se voltou a falar dele. Seria triste hoje que os dardos contra a imprensa chegassem do palácio do Supremo, templo das garantias de todas as liberdades que a Constituição consagra. Uma das não menos importante é a liberdade de expressão para que a sociedade possa controlar o poder. Todos os poderes.

Também a imprensa? Também, mas só nos tribunais de Justiça, não a partir deles.

Ser ridículo

O homem não se conforma em ser o animal mais estúpido da Criação e se permite o luxo de ser o único ridículo
Augusto Monterrosso

Briga com o guarda

Talvez o ex-presidente Lula seja mesmo Deus, enfim revelado ao homem, como ele próprio vive dizendo que é. Esgotados os poderes da ciência, como diria seu ex-ministro Gilberto Gil, e esgotada toda nossa paciência, eis que ninguém com a cabeça no lugar consegue entender o que ele está fazendo — e, menos ainda, onde quer chegar com o que faz. Nesses casos, a saída geralmente mais prática é chamar a ajuda da fé. Deus, como logo aprende qualquer criança que começa a estudar o catecismo, é conhecido por fazer, ou por permitir que se faça, uma alarmante quantidade de coisas incompreensíveis – algumas delas, com todo o respeito, francamente estúpidas, como guerras mundiais, terremotos ou epidemias de peste negra. Mas somos todos informados, ao mesmo tempo, que não cabe ao ser humano tentar entender o que Deus faz, nem porque faz isso ou deixa de fazer aquilo. Os planos do senhor são mesmo misteriosos, e em vez de ficar tentando descobrir explicações para eles, a obrigação de todo bom cristão é não perguntar nada e acreditar que Deus está sempre certo. Em resumo: Deus sabe o que faz. Só assim, data máxima vênia, é possível lidar com os feitos de Lula, seu partido e a esquerda nacional desde que sua prisão foi decretada pela justiça – e, mais ainda, depois que foi realmente preso na Polícia Federal de Curitiba, sem data definida para sair de lá.

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Não há nenhum nexo em nada do que estão fazendo – ou, então, Lula tem um plano secreto, que só ele conhece, e que nos será explicado um dia, como se espera que Deus faça quando vier o Fim do Mundo. É claro que se você for ouvir os analistas que aparecem nos programas políticos da televisão, os formadores de opinião e outros que se apresentam como feras em política, há grande possibilidade de ouvir que o ex-presidente tem uma “estratégia” muito bem montada, pois gênios como ele sempre têm uma estratégia. Não estão entendendo essa quizumba sem precedentes montada em torno dele? Calma, é tudo estratégia. O problema é que cada palpite é diferente do outro, ou até o seu contrário, e não se chega à conclusão nenhuma. O que dá para saber, com certeza, é que Lula e o seu sistema de apoio estão se comportando de maneira desconexa. Deveriam, pela lógica do sujeito comum que nunca é entrevistado por ninguém na mídia, estar fazendo o possível para tentar estabelecer um mínimo de convivência mais produtiva com as autoridades judiciárias e policiais encarregadas de mantê-lo no xadrez – já que ele está preso mesmo, e não vai sair dali fazendo discurso em cima de caminhão de som, que pelo menos se trabalhe, então, por um ambiente mais calmo entre as partes. Isso só poderia facilitar uma futura libertação. Mas tudo o que Lula tem feito, até agora, é promover a mais agressiva hostilidade contra o sistema que está com as chaves da cela. Não faz sentido – a menos, como dito acima, que Lula seja Deus e uma hora dessas resolva derrubar as paredes do prédio da PF em Curitiba e sair andando livre até Brasília, onde vai se declarar Presidente Perpétuo.

Antes de completar uma semana na cadeia, Lula já tinha pedido às autoridades uma esteira ergométrica pessoal, e autorização para ser visitado por pessoas alheias à família e à sua equipe de advogados. O PT, enquanto isso, oficiou ao governo federal pedindo que o chefe recebesse comida especial, para não ser envenenado na prisão. Governadores e outros peixes graúdos do PT e arredores tentaram visitar Lula em conjunto – apenas para chegar lá, fazer meia volta e ir embora, pois nenhuma penitenciária do mundo poderia aceitar uma coisa dessas. O PT prometeu que as “organizações populares”, os “movimentos sociais”, o “povo”, etc. iriam cercar o prédio onde Lula está preso e só sair de lá quando ele for solto. Conseguiram, até agora, juntar umas 500 pessoas no lugar onde deveria estar a multidão; estão amontoadas em barracas de lona, fazendo suas necessidades físicas na rua, espalhando lixo, incomodando os moradores das vizinhanças com pedidos de comida e de água e, de uma maneira geral, tornando Lula e o Complexo PT-PSOL-PCdoB mais odiados do que já são. Os grandes líderes que convocaram o povo a ficar lá até lula ser solto deram uma passada e, depois, bem – você sabe. Um voou para Portugal. Outra foi para a Espanha. Nenhum cacique acampou; só vão à trincheira a passeio.

Dá para imaginar alguma coisa mais elitista do que uma esteira ergométrica pessoal? É impossível atrair simpatia, da mesma forma, dizendo coisas contrárias ao que o público está vendo com os seus próprios olhos. “A ficha está caindo”, disse um dos chefes, antes de sumir do acampamento rumo ao aeroporto de Curitiba. “A população vai começar a vir para cá”. Que população? Não apareceu uma única alma a mais depois dessa profecia. Também fica difícil imaginar como poderiam ajudar na soltura de Lula, entre as atividades de luta que o cerco à PF prometeu desenvolver, uma exibição de ioga, um espetáculo de teatro do MST e a oferta de uma cesta de produtos agro-ecológicos, segundo a descrição dos organizadores. O mesmo se pode dizer de atos religiosos não definidos, um encontro do movimento negro e uma “sessão” do Congresso Nacional que teve traço de audiência. Sobrou, fora isso tudo, a iniciativa da presidente do PT de incluir a palavra “Lula” no seu nome. Outros militantes prometem fazer o mesmo — sem que tenha sido possível entender, até agora, como um negócio desses poderia, na prática, ajudar o chefe a ser solto.

A última tentativa para libertar Lula é a circunstância, alegada pelo PT, de que ele está com pressão alta. Por que não? Para Deus nada é impossível.

Limitação do Foro + Prisão = Detergente Político

O Supremo está muito próximo de produzir um poderoso detergente, capaz de acelerar a higienização da política nacional. Cármen Lúcia, a presidente da Corte, marcou para 2 de maio a conclusão do julgamento que limitará a abrangência do foro privilegiado. Num plenário com 11 togas, sete já votaram a favor. Somando-se essa novidade à regra que autoriza o encarceramento de condenados no segundo grau, chega-se à fórmula mágica: os corruptos serão empurrados para dentro da máquina de lavar da primeira instância. Depois, serão passados a ferro por tribunais de segunda instância.

Engendrada pelo ministro Luís Roberto Barroso, a restrição ao foro privilegiado acontecerá assim: ficarão no Supremo apenas os processos referentes a crimes praticados por parlamentares no exercício do mandato, desde que sejam relacionados ao exercício da função púbica. As coisas ficam mais claras quando os holofotes iluminam um caso concreto —como o de Aécio Neves, por exemplo.

Na terça-feira, a Primeira Turma do Supremo deve converter em ação penal a denúncia em que a Procuradoria acusa Aécio de extorquir Joesley Batista, da JBS, em R$ 2 milhões. O crime não tem vinculação com a atividade parlamentar do senador tucano. Assim, sacramentada a limitação do foro, os autos descerão à primeira instância. E Aécio trocará a bolha do foro privilegiado, onde respira a esperança da prescrição, pelo sacolejo asfixiante da primeira instância.

Desde que a Lava Jato começou, há quatro anos, foram investigados, julgados e encarcerados políticos sem mandato, como Lula e Eduardo Cunha, e oligarcas do PIB, como Marcelo Odebrecht e Leo Pinheiro. Produziram-se, por ora, 188 condenações contra 123 pessoas. Juntas, as sentenças somam 1.861 anos e 20 dias. No Supremo, não há vestígio de condenação. Repetindo: a Suprema Corte não condenou um mísero corrupto pilhado na Lava Jato.

Agora, esquivando-se das tentativas de virar a mesa, o Supremo está a um passo de fechar o alçapão da impunidade dos figurões da política.

Imagem do Dia

The Land of Ghosts by Peter Bowers, via Flickr
Peter Bowers

Perguntas que gostaria de ver respondidas

1) A TV Justiça ajuda ou prejudica o Brasil? É verdade que com a transmissão das sessões plenárias ficamos conhecendo como pensam e como votam os juízes da Suprema Corte. Mas de que nos vale esse conhecimento? A meu ver, não nos ajuda em nada. Pior, a câmera de TV despertou o talento artístico de quase todos os ministros. Há alguns que só falam para a plateia. Hollywood não sabe o que está perdendo…

2) Os ministros do STF podem se ausentar das sessões plenárias assim, sem mais aquela? Podem viajar para seus estados, ou para fora do país, sem ser no período de férias? Ontem, alguns ministros anteciparam seus votos e saíram antes do fim da sessão… Não fazem falta, mas dói ver que podem trabalhar só quando querem sem que seu salário sofra cortes. É a injustiça na Justiça.


3) Alguém sabe por que o ministro Gilmar Mendes despreza a Lava-Jato? Pelo menos foi o que ele deu a entender ao declarar que “o mensalão, este, sim, foi um marco no combate à corrupção”. Não é ao menos curioso, quando é a Lava Jato que está prendendo mais corruptos?

4) Montesquieu, o grande pensador autor de “O Espírito das Leis”, cunhou esta frase: “Em qualquer magistratura, é indispensável compensar a grandeza do poder pela brevidade da duração”. Essa lição é da maior importância: nenhum cargo político, advindo de eleição ou de nomeação, deveria durar mais do que uns quatro anos. O tempo dilatado acaba gerando uma intimidade que não dá bom ponto. Como disse um dia Janio Quadros, “Intimidade gera aborrecimentos ou filhos”… O Brasil foi beneficiado com a dilatação da permanência dos ministros do STF até os 75 anos? Não parece a você, leitor, que a garantia de um bom posto até essa idade provecta os deixa mais à vontade, menos preocupados em ser bons magistrados, já que se não o forem nada têm a perder?

5) O juiz Sergio Moro, em respeito à dignidade do cargo que Lula ocupou, deu-lhe uma acomodação de luxo em comparação com as demais celas. Lula não respeitou a dignidade do cargo, mas Moro o faz, o que é importante e educativo. Mas é preciso um limite. Água gelada já seria deboche. Esteira ergométrica, sinceramente, seria uma afronta aos outros presos, que também são seres humanos necessitados de exercício físico para a manutenção de sua saúde.

6) Quem sustenta o pessoal que está no acampamento em Curitiba? Podem ficar dias lá acampados, não têm trabalho, aulas, ou quaisquer obrigações? Estão em férias permanentes?

7) Você, leitor, gosta de citações? Eu gosto. Não me neguem o prazer de delas abusar. Churchill dizia que é bom ter livros de citações que, gravadas na memória, nos inspiram bons pensamentos. Pois é de Montesquieu também a frase que escolhi para encerrar este artigo: “A pomposidade é o escudo dos idiotas”.

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Desde Al Capone, em Chicago...

Não existe organização criminosa que opere sem a anuência do Estado. De um ou de vários atores do Estado em suas mais diversas esferas
Claudio Ferraz, delegado aposentado conhecido como “o caçador de milícias”, à época titular da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), de onde saiu em 2011 

Crise política atropela o crescimento

Todos os olhos do setor produtivo estão voltados para as próximas pesquisas de intenção de voto. Há a percepção entre o empresariado de que, depois da prisão de Lula, aumentou, consideravelmente, o número de eleitores indecisos, boa parte deles órfã do petista. A se confirmar esse quadro, as incertezas em relação à disputa para a Presidência da República vão aumentar. Um baque ao já frágil crescimento da economia.

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Nas últimas semanas, várias empresas decidiram reavaliar seus planos de investimentos. O ano havia começado com disposição das companhias de tirar das gavetas projetos que estavam parados desde 2015, quando começou a ruir o governo de Dilma Rousseff. Tal perspectiva levou muitos agentes de mercado e do governo a superestimarem o avanço do Produto Interno Bruto (PIB) em 2018, alguns falando em taxas superiores a 3%. Agora, as expectativas positivas estão murchando.

Apesar de avalizarem a prisão de Lula, os empresários se deram conta do tamanho do buraco que se abriu nas eleições. Além de não haver um candidato de centro-direita competitivo, são grandes as chances de dois postulantes ao Palácio do Planalto não fechados com a cartilha do mercado chegarem ao segundo turno. Nesse contexto, não há, no entender do empresariado, por que correr riscos. Investimentos produtivos exigem previsibilidade, por serem de longo prazo. É tudo o que não se tem hoje.

Sem esses investimentos, o crescimento do PIB vai minguar. Não será surpresa se o resultado final ficar mais próximo de 2%. Tanto o Ministério da Fazenda quanto o Banco Central jamais dirão isso — não agora. Nem os grandes bancos, porque não querem ficar malvistos no governo. “Estamos diante de um quadro perigoso”, diz um grande industrial. “As incertezas políticas se multiplicaram num momento em que o quadro global se complicou. Está tudo jogando contra o país”, acrescenta.

Não é apenas o cenário político que perturba o setor produtivo. Há um enorme desconforto com a explícita divisão dentro do Judiciário, sobretudo no Supremo Tribunal Federal (STF), o que amplia a insegurança jurídica. O temor de mudança nas regras que permitem prisões depois de condenações em segunda instância é enorme, assim como a preocupação de que o presidente Michel Temer sancione o projeto de lei 7.448/2017, aprovado pelo Congresso sem qualquer discussão. Se entrar em vigor, o projeto provocará um inaceitável retrocesso na fiscalização de contratos do setor público.

Para piorar, são visíveis as dúvidas sobre o compromisso do governo em reduzir o deficit fiscal. O novo ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, garante que o empenho em arrumar as contas públicas está mantido. Mas não se vê nenhum comprometimento do Palácio do Planalto em negociar com o Congresso a aprovação de medidas fundamentais para evitar a explosão do rombo nas finanças federais e o descumprimento da regra de ouro, que impede o pagamento de despesas correntes, como salários de servidores, por meio da emissão de dívidas.

O Instituto Fiscal Independente, ligado ao Senado, afirma que todas as simulações sugerem insuficiência de recursos para o cumprimento da regra de ouro entre 2018 e 2024. Isso quer dizer que Temer pode terminar o mandato acusado de descumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e o próximo presidente, sofrer um processo de impeachment. Não por acaso, a ficha do mercado começou a cair. O Brasil se tornou um mar de incertezas. As apostas em relação ao futuro ficaram caras demais. A fatura a ser paga trará crescimento menor e desemprego acima do desejado. Nem a inflação rodando próxima de 3% ao ano e os juros nos menores níveis da história estão servindo para reduzir o pessimismo. Pobre país.

Paisagem brasileira

Capela Fazenda Alpes/MardeEspanha/MG/Brasil
Capela de fazenda, Mar de Espanha/(MG)

O que falta para o Rio ser Medellin?

Distantes 7.800 km, Rio de Janeiro e Medellín são muito mais próximas do que se poderia imaginar. Ambas despertam suspiros por sua beleza natural, por motivos diversos foram polos econômicos pujantes que sofreram um baque a partir dos anos 1960 e têm um povo musical até a medula, que usa o diminutivo à vontade (é minutinho pra lá, minutico pra cá) e que afirma sem o menor constrangimento morar na cidade mais linda do mundo.



Mas também há o lado B das semelhanças, uma combinação bombástica de governos corruptos, favelas borbulhantes de potências e carências, desigualdades gritantes, segregações urbanas, degringolada econômica, violência, milícias, intervenção militar e a lista vai longe. Apresente as manchetes estampadas nos jornais cariocas de hoje a um medellinense de meia-idade e é bem provável que ele se transporte à Medellín dos anos 1980 ou 1990. Mas Medellin foi mais fundo. Bem mais fundo. A ponto de, em 1991, ter recebido o malfadado título de cidade mais violenta do mundo.

Duas décadas. Foi esse o tempo de que a cidade precisou para bater no fundo do poço, pegar impulso e se tornar referência mundial de reinvenção econômica, urbanismo social e cultura, aquinhoando prêmios cobiçadíssimos como, em 2013, o de “Cidade do Ano”, concedido por The Wall Street Journal e pelo Urban Land Institute às cidades mais inovadoras do mundo, deixando para trás finalistas do naipe de Nova York e Tel Aviv. E é justamente nesse arco de 20 anos, durante os quais os índices de violência caíram em 80%, que Medellín mostra caminhos, inspirações e provocações para nenhuma cidade em crise botar defeito.

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Melhores e mais numerosos espaços públicos

Alguns traços dessa revolução dos amigos andinos são bastante conhecidos. Dentre eles, os famosos Parques-Biblioteca, estruturas icônicas em conteúdo e continente, tangibilização por excelência do urbanismo social — aquele que entende que o urbanismo pode e deve ser expressão profunda de política pública, voltado a urdir novos fios de conexões em e entre áreas de tecido social esgarçado. É claro que os edifícios, que desfilam um sem-número de prêmios arquitetônicos, são fulgurantes mas o mais importante é o que representam: o direito ao belo, o valor da estética e dos símbolos para quem é mais alijado de direitos. É evidente que o conteúdo programático, que expande exponencialmente o papel das bibliotecas para o de espaços de convívio e interação, para espaços de choque (aquele roçar de braços e pensamentos de pessoas que se cruzam), é de relevância inquestionável. E houve mais: um lixão urbano transformou-se em centro cultural de tirar o chapéu, um antigo presídio se converteu em campus universitário e o espaço público passou a reconectar pessoas e espaços. O que une tudo isso é o foco: não sobre projetos e sim sobre processos.

É nessa mesma lógica que se insere um flanco menos conhecido mas crucial para que Medellín tenha deixado para trás um passado sombrio de cidade de violência e tenha empunhado a bandeira de cidade da inteligência — ou melhor, de hub latino-americano de inovação. É claro que saber estabelecer e cumprir prioridades orçamentárias ajuda. Se em 2015 o setor de ciência e tecnologia recebeu 0,7% do PIB municipal, em 2016 o investimento foi de 1,82% (algo como 468 milhões de dólares) e a meta, até 2021, é chegar a 3% (mesmo desejo da Europa, que, leve-se em conta, está apanhando para chegar perto disso). E mais: 60% desse investimento deve advir do setor privado. Mas tão ou mais importante não é o quanto e sim o como.

Diante de uma situação complexa a resolver, da certeza de que seria resolvida e do reconhecimento de que ninguém sozinho sabia como fazê-lo, governo, setor privado, academia e cidadãos passaram a fazer algo na contramão do caminho pelo qual vai nossa crescente intolerância: ouvir uns aos outros. Tudo o que foi e vem sendo feito em Medellín parte de dois pressupostos: de que a voz do outro é importante (para opinar sobre as atividades das escolas, para discutir como será aplicado o orçamento, para desenvolver parcerias público-privadas baseadas em confiança); e de que inovação não é um fim e sim um meio para gerar qualidade de vida para todos (o que dá um puxão de orelha nos que acham que os cidadãos têm de se encaixar em soluções tecnológicas urbanas impostas de cima para baixo).

A partir daí, avançar foi inevitável. Doze universidades se uniram para formar a Tecnnova, que analisa futuras demandas do setor empresarial e prepara seus alunos para atendê-las. Detalhe: o orçamento da Tecnnova é rateado entre seus vários membros. No setor público, o Plano de Ciência, Tecnologia e Inovação parece ter sido o primeiro da América Latina a ser aprovado pela Câmara de Vereadores. Empresas Públicas de Medellín (EPM), conglomerado de empresas públicas com projetos voltados ao bem-estar do cidadão e que vê o lucro como essencial para isso, é outra grande força viva da economia e da inovação de Medellín. Há dez anos criou, em parceria com a Prefeitura, a Ruta N, centro de inovação e negócios da cidade, que articula com maestria essa estratégia — Alejandro Franco, diretor-geral da Ruta N, participa da Arena de Economia Criativa do Farol Santander, em São Paulo, neste sábado (14), às 11h30, com curadoria da Garimpo de Soluções. Considerada há poucas semanas uma das dez empresas mais inovadoras da América Latina pela FastCompany, a Ruta N vem alavancando a economia do conhecimento, nas parcerias entre empresas, políticas públicas, academia e cidadãos. Como se não bastasse, sedia o Distrito da Inovação — um espaço de 115 hectares, que percorre quatro bairros e concretiza no espaço urbano que um dia foi de mais baixo IDH da cidade a visão da Medellin que a cidade quer ser.

Um caso encantador, fascinante e aqui, do nosso lado, para mostrar que reinventar contextos em crise é não só possível, como inevitável. Um jato de alento para cidades como nosso maravilhoso Rio, para que não seja necessário chegar ainda mais fundo no poço para reagir.

Ana Carla Fonseca

Facebook foi crucial para limpeza étnica do século XXI em Myanmar

Khaleda Begum tem flashbacks. Às vezes a cabeça lhe trai e ela revive o assassinato dos seus pais. Conta que os soldados birmaneses convocaram todo o povoado, os homens e as mulheres. Os moradores achavam que iam a uma reunião comunitária, mas começaram a matá-los. A tiros. A golpes de facão. Os soldados subiam nas árvores para disparar. Era por volta de meio-dia. Os militares acusavam os aldeões de esconderem insurgentes. “Não sei nada sobre eles”, insistia e insiste ela. Khaleda sobreviveu. E fugiu. Esta rohingya atualmente recebe tratamento psicológico em um campo de refugiados de Bangladesh. A violência extrema desatada a partir de agosto pelos militares, com a colaboração de turbas budistas inflamadas por monges xenófobos através do Facebook, representa o apogeu de um sistemático processo de perseguição dessa minoria muçulmana que começou nos anos setenta.

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Primeiro a ONU e depois os Estados Unidos acusaram o Exército de Myanmar de violar a legislação internacional e perpetrar uma limpeza étnica. O enviado das Nações Unidas para a prevenção do genocídio, Adama Dieng, suspeita de algo ainda mais grave: “A informação que recebi indica que a intenção dos perpetradores era limpar o Estado de Rakhine da sua presença, talvez até mesmo destruir os rohingyas como tais, o que, se ficar comprovado, significaria um crime de genocídio”, declarou Dieng no mês passado após visitar os membros dessa minoria muçulmana em Bangladesh.

As autoridades de Myanmar negam quase todas as acusações. Só reconheceram uma matança, a de Inn Din, em 2 de setembro de 2017. Justamente a que era investigada por dois jornalistas locais da Reuters encarcerados desde dezembro. A agência de notícias documentou a execução extrajudicial de 10 aldeões muçulmanos acusados de terrorismo. Sete soldados foram condenados nesta terça-feira a 10 anos de trabalhos forçados pelo massacre, informou o Exército pela via que usa habitualmente para seus anúncios oficiais: um post no Facebook.

A liberdade de expressão, os telefones celulares e essa rede social são algumas das novidades que a democratização trouxe para este país de maioria budista. “Temo que o Facebook tenha se transformado numa fera, o que não era a intenção original”, declarou a investigadora da ONU para Myanmar, Yanghee Lee, em março em Genebra. Os especialistas no país concordam que o Facebook foi a grande correia de transmissão do ódio em Myanmar – a versão 2.0 da rádio Livre das Mil Colinas no genocídio de Ruanda, em 1994.

Lá Internet significa Facebook. Os birmaneses não navegam na web, não vão ao Google, e sim à rede social, que até as instituições usam. Depois que Mark Zuckerberg se gabou numa entrevista, a propósito do escândalo pelo suposto vazamento de dados, sobre a suposta eficácia da sua empresa em detectar e eliminar os discursos que incitam ao ódio no país asiático, um grupo de empreendedores e representantes da sociedade civil birmanesa publicou uma carta aberta acusando-o de ter feito vista grossa às advertências que eles mesmos lhe enviaram. Os signatários insistiram para “investir mais em moderação”, sobretudo em lugares como Myanmar, “onde o risco de que os conteúdos do Facebook desatem a violência aberta é agora maior do que em qualquer outro lugar”.

A carta é ilustrada com mensagens quase idênticas em que um budista (ou um muçulmano) alerta a um correligionário que a outra comunidade vai cometer um ataque em Rangum em 11 de setembro e termina com um “por favor reenvie esta mensagem aos nossos irmãos”.

Zuckerberg se desculpou com esses grupos da sociedade civil birmanesa e nesta semana anunciou que o Facebook reforçará seus mecanismos contra o discurso xenófobo em Myanmar e analisará possíveis mensagens de ódio em 24 horas. Também prometeu contratar dezenas de falantes de birmanês porque, segundo ele, a rede “precisa redobrar dramaticamente seus esforços por lá”. O fundador do Facebook disse ao Congresso dos EUA que também em Myanmar sua empresa deve “fazer mais” esforços.

A especialista no estudo do genocídio ressalva que “se não tivesse havido o Facebook seriam usados outros meios de propaganda”. “A imprensa estatal é muito poderosa aqui, mas o Facebook certamente desempenhou um papel significativo possibilitando a difusão de discursos que incitam ao ódio e o medo, e inflamando o ódio nas comunidades a grande velocidade”.

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