terça-feira, 6 de agosto de 2019

Os países em que a água já é um recurso em falta

O crescimento populacional, o aumento do consumo de carne e a intensificação da atividade econômica vêm pressionando os recursos hídricos do mundo.

Habitantes de quase 400 regiões do planeta já estão vivendo sob condições de "extremo estresse hídrico", segundo um novo relatório do World Resources Institute (WRI), um centro de pesquisa sediado em Washington.

Reservatório de Santa Maria , em Brasília
Esse cenário não se repete no Brasil, mas alguns Estados brasileiros já apresentam um parâmetro "baixo-médio", diferente de boa parte da realidade nacional.

O temor é que a escassez de água possa causar o deslocamento de milhões de pessoas, gerando conflitos e instabilidade política.

Do México ao Chile, a áreas da África e a pontos turísticos no sul da Europa e no Mediterrâneo, o nível de "estresse hídrico" - a quantia de água extraída de fontes terrestres e superficiais em comparação com o total disponível - está atingindo níveis preocupantes.

Quase um terço da população global - 2,6 bilhões de pessoas - vive em países em situação de estresse hídrico "extremamente alto", incluindo 1,7 bilhão em 17 nações classificadas como "extremamente carentes de água", segundo o WRI.

Enquanto os países do Oriente Médio são considerados os de maior estresse hídrico, o estudo também destaca que a Índia vem "enfrentando desafios críticos sobre seu uso e gestão da água que afetam tudo, desde a saúde ao seu desenvolvimento econômico".

Paquistão, Eritreia, Turcomenistão e Botsuana também são considerados extremamente carentes de água.

Os dados foram compilados a partir da plataforma Aqueduct 3.0 do WRI, que analisou vários modelos hidrológicos e calculou o quanto de água é retirada dos suprimentos de águas superficiais e subterrâneas disponíveis em cada região em comparação com o total de água disponível.

Quando a proporção excedia 80%, as áreas eram consideradas "extremamente carentes de água".

"Como alguém que trabalha com dados, tento ser bastante imparcial sobre o que esperar dos números, mas fiquei surpreso com a situação ruim na Índia", diz Rutger Hofste, principal autor do estudo, à BBC.

A Índia é o 13º país do mundo com maior estresse hídrico, à frente do seu vizinho Paquistão.

Nove dos seus 36 Estados e territórios são classificados como extremamente carentes de água e Chennai (antiga Madras), a capital do Estado de Tamil Nadu, no sul do país, sofreu recentemente com inundações e secas.

"A contínua crise hídrica na principal cidade de Chennai demonstra os tipos de desafios que grande parte da Índia enfrentará nos próximos anos, exacerbada pela má gestão da água e pelas crescentes demandas por água tanto da indústria quanto das pessoas", diz o relatório.

Segundo o WRI, o México enfrenta uma situação tão grave quanto a da Índia, se nenhuma medida for tomada.

Quinze dos 32 estados do país são classificados como extremamente carentes de água e Hofste aponta que a capital, a Cidade do México, em particular, tem um "sistema de água muito frágil".

Dez das 16 regiões do Chile também foram classificadas como "extremamente carentes de água", incluindo a capital, Santiago.

As capitais chinesa e russa, Pequim e Moscou, também são classificadas como "extremamente carentes de água", embora os países não sejam.

"Algumas outras surpresas", segundo Hofste, foram encontradas no sul da Europa, incluindo Itália e Espanha, onde o turismo representa uma pressão adicional sobre os sistemas de água durante os meses mais secos do ano.

Mais da metade das 20 regiões da Itália foi considerada "sob estresse hídrico extremo", bem como um terço (27) das 81 províncias da Turquia.

No entanto, a Cidade do Cabo, na África do Sul, dez dos 17 distritos do Botsuana e partes da Namíbia e Angola são considerados "extremamente carentes de água".

O Brasil, por outro lado, não vive a mesma realidade. Segundo o estudo, a maior parte do país tem um baixo risco de estresse hídrico.

Apesar disso, o Distrito Federal é o Estado em situação de maior estresse hídrico do Brasil (médio-alto), de acordo com a pesquisa. Em seguida, vêm os Estados do Ceará, Paraíba, Rio de Janeiro e Pernambuco.

Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), o Brasil possui cerca de 12% da disponibilidade de água doce do planeta, mas a distribuição natural desse recurso não é equilibrada.

A região Norte, por exemplo, concentra aproximadamente 80% da quantidade de água disponível, mas representa apenas 5% da população brasileira. Já as regiões costeiras abrigam mais de 45% da população e apenas 3% dos recursos hídricos do país.

A ricos e aliados, tudo

O presidente Jair Bolsonaro confirma, dia sim, outro também, sua visão peculiar e sectária do que sejam direitos. Diz a Constituição que “todos são iguais perante a lei”. Dizem as democracias que os direitos e deveres são iguais para todos. Para Bolsonaro, não. No seu governo, como na sua fala, uns têm mais direitos do que outros: os ricos, donos do capital.

Num país campeão de desigualdade social, com milhões de pessoas sem direito a emprego, educação, saúde, moradia, transporte, igualdades de condições e respeito, o presidente jamais usa a palavra “social” e está preocupado é com os direitos dos empresários, que chama de “heróis”: “É horrível ser patrão no Brasil”, prega. Bem pior, presidente, é ser pobre.

Assim, Bolsonaro defende trabalho infantil, produz frases dúbias sobre trabalho escravo e estuda devolver terras desapropriadas. E corta, ops!, contingencia verbas do Ministério do Desenvolvimento Social e da Educação.


Entre a proteção da Amazônia e a ganância de madeireiros ilegais, adivinhem quem ele defende? Em desacordo com a lei, impediu a destruição de caminhões que derrubavam árvores, criminosamente, na floresta.

Entre o direito ancestral dos índios e o desejo de “tarados” americanos de explorar minérios em terras indígenas, adivinhem o que ele prefere? E a ideia de liberar Angra dos Reis para empresários criarem “uma Cancún”?

Entre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas, e o interesse do filho Flávio Bolsonaro, cujo gabinete no Rio foi um dos flagrados, adivinhem o que ele faz? O chefe do Coaf cai, o filho Flávio fica feliz da vida. Aliás, cadê o Queiroz?

Sempre crítico à política, Bolsonaro se deu o direito de estar nela há 29 anos e garantir mandatos não só para Flávio, mas também para o “02”, Carlos, e o “03”, Eduardo. Por que será? Essa pergunta, que nunca quis calar, pode estar sendo respondida pelo jornal O Globo, que identificou 286 assessores do clã nessas três décadas, 102 da família Bolsonaro ou de famílias amigas. Alguns receberam a média de R$ 7,3 mil, ou R$ 10,7 mil, durante 14, 15 anos, sem dar as caras no trabalho. Uma era oficialmente “do lar”, outra declarou-se “babá” na Justiça e vai por aí afora. Será que os salários não eram para elas? E qual o direito dos Bolsonaro de fazer isso?

Há também os cartões corporativos: a sociedade tem o direito de saber como são gastas as verbas oficiais, mas Bolsonaro mantém o “direito” de gastar sem dizer onde, para quê, com quem. E não é pouco dinheiro, não.

Quem, por ofício, checa diariamente a agenda do presidente sabe os que têm acesso a Bolsonaro e para quem ele está efetivamente governando. Ele vai a toda e qualquer solenidade militar, frequenta cultos e despacha com pastores evangélicos, leva ministros a estádios de futebol e abre as portas do gabinete a multinacionais, grandes empresários, ruralistas, políticos aliados, a “bancada da bala”. Aos aliados e ao capital, enfim.

Onde ficam as outras religiões, os ambientalistas, as comunidades LGBT, os professores, os defensores de direitos humanos, os cientistas, os cineastas, os escritores, os artistas, os intelectuais, os índios, os quilombolas, os especialistas em trânsito e em desarmamento? E os representantes de trabalhadores?

No mundo de Bolsonaro, o capital tem todos os direitos, o trabalho e as minorias só têm deveres. A uns, a defesa. Aos outros, a cobrança. Mais ou menos como no caso dos Estados: aos governadores aliados, tudo; aos nordestinos, as migalhas.

Entra aí o “direito” do jovem deputado Eduardo de ser embaixador na mais importante embaixada do planeta, a dos EUA. “Indicado tem de ser filho de alguém. Por que não meu?”, indagou papai Bolsonaro. O que responder, minha gente?!

Pensamento do Dia


Sombras de agosto


Você não precisa ficar apavorado porque virou hoje o mês. Antes de mais nada, lá se vai o ano, veloz. Velocíssimo. Pode entrar na F-l que ganha disparado. Ninguém de fato corre mais depressa do que o tempo. E quanto mais tempo passa, mais depressa corre. No começo, se você se lembra, o tempo pingava como gota de óleo. Eu sou um que cansei de ser criança. E todo mundo ainda fazia questão de me dizer toda hora que eu não passava de uma criança.

É um longo aprendizado, a infância. O resto da vida, por mais que você viva, vai apenas conferir. A cada passo, tratamos de verificar se é mesmo como a gente, criança, já sabia. Não há curso de graduação ou pós-graduação, na melhor universidade do mundo, que consiga ensinar o que uma criança aprende. Aprende e apreende. Tudo sozinha. Talvez por isto, porque é só, porque está disponível, a criança absorve os milhentos saberes de que precisa para viver. Sobreviver.

Pois é. Enfim, está aí agosto. Impossível não pensar na rima. Agosto, desgosto. Eu mesmo mais de uma vez já andei especulando sobre isto. Primeiro, é culpa da rima. A paremiologia é muito parnasiana. Pode versejar de pé quebrado, mas não se esquece da rima. Rima pobre, pouco importa. Toante, ou assoante. Mas tem de rimar. Rima e é verdade, se diz. Daí, agosto, mês do desgosto. Como um decreto de superiores potestades. Ninguém escapa.

Por mal dos pecados, tem havido coincidências funestas aqui entre nós. Para não falar de outros exemplos, bastam os dois clássicos. E recentes. Dois coices no meu peito. Eu ia dizer que trago as feridas até hoje. Mas não vou exagerar. Digo então que trago no peito as cicatrizes. Cívicas, emocionais. 24 de agosto, o suicídio. Fato único na história do mundo. O tiro do Getúlio deixou um eco que assusta. É como um grito no escuro. Grito de dor numa gruta sem saída. E para sempre.

Foi em 1954. Sete anos depois, 1961, a renúncia, em 25 de agosto. O Jânio agora está morto. Nada mais vivo, porém, do que a sua renúncia. Meia morte, a renúncia no caso trouxe também o selo de uma incógnita. O que me intriga, mais que o gesto de um e de outro, é o Brasil. O destino deste país em que, dizem, nada acontece. Não sou de agosto, nem sou supersticioso. Mas escrevo com alguma dificuldade. Bater à máquina fazendo figa não é fácil.

Otto Lara Resende (Folha SP - 1/08/1992)

Quem mente são os 'maus brasileiros'

Alguns maus brasileiros ousam fazer campanha com números mentirosos contra a nossa Amazônia. E nós temos que vencer isso e mostrar para o mundo, primeiro, que o governo mudou e, depois, que nós temos responsabilidade para manter (a Amazônia) nossa
Jair Bolsonaro

O presidente desinformante

O presidente da República mente. Não terá sido o primeiro. Em Bolsonaro, porém, a mentira é estratégia, método mesmo, e está a serviço da desinformação. A desinformação como política de governo. Aliás: que um revolucionário da cepa de Jair Bolsonaro — um desconstrutor reacionário — tenha podido se inscrever no imaginário político brasileiro como um conservador é a própria afirmação da influência da operação desinformante.

Repito: a desinformação é política de governo. Não exagero. Está em curso, desde o Planalto, um programa de relativização absoluta da verdade, de flexibilização daquelas balizas levantadas a partir do estudo, processo que depaupera o valor do acúmulo de experiências, o rebanho de saberes sobre os quais assentamos o erguimento da civilização — o que, conforme o espírito do tempo, deságua, aí está, em desapreço por expressões fundamentais de nosso pacto social contra a selvageria, donde, na prática, os ataques dirigidos e estimulados às instituições que encarnam a democracia representativa, a defesa do contraditório e a guarda da Constituição.

A imposição do bolsonarismo investe numa blitz cujo ímpeto destruidor de princípios resulta em que se considere equivalentes dados objetivos, colhidos com ciência, e a negação autoritária destes, sem qualquer base técnica que os refute.

Tanto a fala cretina sobre a morte de Fernando Santa Cruz quanto aquela, mistificadora, relativa ao desmatamento têm lastro numa modalidade de discurso impostor que consiste em desqualificar permanentemente a história, as estatísticas, os mapeamentos empíricos, as comprovações científicas etc. Há uma intenção narrativa: desqualificar o conhecimento e a fiscalização, jornalismo incluído, de modo a que sobre tudo paire suspeição. Trata-se de um movimento consciente na direção de deslegitimar, isto para que tudo quanto seja incômodo possa ser também rebaixado — desacreditado — como produto de uma armação ideológica contra um governo em busca da verdade. Registre-se que tal modus operandi também serve para diluir atenções ante a “velha política” praticada pela nova corte e sua fome patrimonialista.

O presidente é um desinformante, um dos caráteres constitutivos da mentalidade bolsonarista por meio do qual se cultiva a forja de conflitos, de crises artificiais, que anima o fenômeno político reacionário, essencialmente ressentido, que alavancou e sustenta a liderança carismática de Bolsonaro. Ele só surpreende o ingênuo que supunha que seu avanço, uma vez eleito, pudesse ter outro norte senão o da radicalização, do acirramento de cismas institucionais, de rachas nos princípios republicanos, de polarizações, de multiplicações de novos “nós contra eles”, cujo evidente objetivo é escalpelar — devastar — o terreno onde o centro político poderia se rearranjar. Desnecessário dizer que onde não há centro não haverá estabilidade.

O presidente trabalha para desequilibrar; estica a corda do ultraje ao máximo para testar fidelidades e firmar a bolha eleitoral que o manterá competitivo.

Suas manifestações estúpidas recentes não são exceções, mas previsíveis desenvolvimentos de um texto iliberal que promove um projeto autoritário de poder ancorado numa modalidade de campanha permanente para a qual é imprescindível a eleição constante de ameaças e inimigos conspiradores — em face dos quais o único caminho é recrudescer. O Brasil está — pelo menos desde 2013 — em depressão política aguda; doença de que Bolsonaro é a mais alta febre.

Há quem possa conviver com isso — com a mentira, com o esgarçamento do tecido social, com a depredação do ambiente de convívio político, com a intimidação do dissenso — porque, afinal, as reformas evoluem. A esses lembro — pois já havia advertido — que a última escalada autocrática de Bolsonaro é decorrente da sensação de liberdade que a aprovação da nova Previdência lhe dá. Temos um presidente que despreza o Parlamento — e do qual agora se crê menos dependente. Ele vai pra cima.

Boa política econômica — está provado —qualquer tirania pode encaixar. Incontornável é proteger os marcos democráticos; de resto, a única garantia de durabilidade para qualquer programa liberal. Que os cínicos não se percam disto. E tampouco do quão improvável é que reformas estruturais profundas possam se plantar num terreno de imprevisibilidade semeada pelo próprio presidente.

A história é cheia de exemplos de para qual destino pende o liberal que imagina poder instrumentalizar um autoritário populista: é clarear um tantinho o horizonte de curto prazo, afrouxar um pouco o nó fiscal, por meio do que o governo retome alguma capacidade de investir, para logo se tornar dispensável.

A política no tempo da raiva

A indagação talvez mais importante e perturbadora do momento é se a política raivosa se trata de um fenômeno passageiro ou veio para ficar. Realmente, hoje o que mais nos chama à atenção são o aumento da agressividade e de uma sedutora grossura. Parece ser um fenômeno mundial, mas neste meu espaço mal cabe o Brasil. E isso é bom, pois me afasta da descabida pretensão de tudo compreender.

Por aqui, as sementes da raiva estão bem à vista. Eclodiram na era Lula, robusteceram-se na esteira da recessão, do empobrecimento do País, do desvendamento da corrupção e desabrocharam para valer com o enfrentamento de 2018 entre o bolsonarismo e o petismo.

A primeira pista que me vem à mente é perguntar o que há em comum entre Lula e Bolsonaro. No culto da macheza, eles são perceptivelmente iguais. É assim que, em geral, os populistas se apresentam: são avessos às luvas de pelica e gostam mesmo é de dar murros na mesa. A macheza de Lula apoiava-se nos comícios ululantes, na massa movida à mortadela, nas bandeiras vermelhas. A de Bolsonaro, na encenação teatral do tipo corajoso, que topa qualquer parada.


Haverá entre eles alguma semelhança que se possa descrever como ideológica? Para responder afirmativamente, precisamos reduzir o termo ideologia à sua expressão mais banal, a um simples anti-intelectualismo, uma vez que ideias articuladas não são o forte de nenhum dos dois. Lula esgrimia trivialidades sobre a “justiça social”, Bolsonaro quer acabar uma lista sem-fim de crenças que considera “de esquerda”.

Elaboradas por suas respectivas equipes econômicas, na questão econômica há diferenças importantes. Lula, se pudesse, prolongaria ad aeternum o desastre do intervencionismo estatal, do nacional desenvolvimentismo. Bolsonaro, confiando em Guedes, parece aceitar que desmontar o Estado parasitário e instituir uma ordem econômica mais liberal é nossa única saída.

O essencial, porém, é que a raiva generalizada é irmã siamesa da desconfiança universal. Desconfiança em relação a tudo e a todos, em relação às instituições, principalmente – turbinada diariamente pelas redes sociais. O comportamento desastrado e irresponsável das mais altas instâncias do Judiciário tem muito a ver com a formação desse ambiente enlouquecido. Desfazê-lo é possível, mas não enquanto os personagens desse drama conservarem suas nefastas influências.

Brasil sob nova direção


Romantismo, ciência e fé

O romantismo não foi apenas um movimento artístico e cultural, cujos grandes expoentes foram o espanhol Francisco Goya e o francês Eugène Delacroix, na pintura, o inglês Lord Byron e o alemão Johann Wolfgang von Goethe, na literatura. Foi também um movimento político e filosófico, que surgiu na Europa em meados do século 18 e durou quase todo o século 19. Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária ao racionalismo e ao Iluminismo, marcadamente nacionalista, que viria a ter um papel importante na consolidação dos estados nacionais, inclusive no Brasil. O romantismo valoriza o individualismo, a criatividade e a imaginação popular, a inspiração fugaz e a fé para remover os obstáculos da vida.

O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher, professor da Universidade de Berlim, bebeu das águas do romantismo na virada do século 18 para 19. Ao morrer, em 1934, deixou duas obras radicais sobre teologia — Sobre a religião e A fé cristã – e uma nova doutrina, o liberalismo teológico, que teve grande influência na Europa e nos Estados Unidos. Seu esforço intelectual foi voltado para dar uma resposta à Teoria da Evolução de Charles Darwin, que, ao publicar sua obra-prima, A origem das espécies, gerou a grande tensão entre a visão conservadora da Bíblia e a ciência que permanece até hoje. Essa tensão era preexistente, remonta à teoria do astrônomo polonês Copérnico, publicada em 1543, na qual já afirmava que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário, embora haja quem ainda acredite que a Terra é plana.


Durante certo período da Idade Média, a convivência pacífica entre a ciência e a religião foi estimulada pela Igreja Católica, sob inspiração de Tomás de Aquino, para quem uma compreensão maior da Criação levaria ao entendimento melhor do Criador. Entretanto, quando cientistas e teólogos começaram a chegar a conclusões diferentes, o confronto se instalou, como aconteceu, por exemplo, em relação ao cálculo infinitesimal estudado pelos monges católicos, que abalava os fundamentos da geometria aristotélica. No fim do século 18, com o avanço da ciência e do Iluminismo, os teólogos foram em busca de novas explicações para os fenômenos que preservassem a coexistência entre a religião e a ciência, a razão e a fé, para evitar que o cristianismo fosse ultrapassado pelo materialismo.

O pulo do gato de Schleiermacher foi equiparar a crença aos sentimentos, seguindo a trilha do romantismo, que colocava a emoção acima da razão, em vez de utilizar os mesmos critérios do conhecimento científico, equiparando experimentação e “revelação”, para provar a verdade do cristianismo. A ciência usa a razão humana para descobrir as coisas do mundo e explicar como ele existe; a Bíblia registra a experiência religiosa de seus autores, explica por que o mundo existe como ele é. Como e porque são perguntas complementares, logo, na visão do teólogo alemão, o avanço da ciência não invalidava a Bíblia.

Schleiermacher redefiniu a natureza da religião, estabelecendo três níveis para a vida humana: o conhecimento, a ação e o sentimento. Dessa forma, a ciência pertence ao conhecimento, a ação à ética e o sentimento, à religião. “Deus existe” é um sentimento que depende de algo maior do que nós mesmos, não precisa de comprovação. Essa visão foi batizada como “liberalismo protestante”, mas acabou sendo muito contestada por teólogos neo-ortodoxos, porque afastava a autoridade religiosa do âmbito público, já que sentimentos são atributos pessoais. Qual seria o lugar do Reino de Deus?

Por essa razão, o teólogo suíço Karl Barth, na sua Carta aos Romanos, no começo do século 20, criticou duramente Schleiermacher por sua indiferença às necessidades do mundo externo. Os fatos corroboraram os riscos desse alheamento: o liberalismo protestante foi acusado de omissão diante do nazismo, do genocídio, da corrida nuclear e do armamentismo. Na sequência do debate, a polêmica avançou para discussão se Deus existe fora dos limites do tempo, ou seja, se é capaz de prever o futuro. A teologia tradicional lhe atribui onisciência (ou seja, total conhecimento do passado, do presente e do futuro), mas teólogos modernos questionam esse entendimento de que o futuro a Deus pertence. Nesse caso, a presciência comprometeria a bondade divina, pois Deus nada faz para evitar o mal. Se assim fosse, argumentam, de nada adiantaria rezar. Quando o futuro é aberto, a reza funciona como ferramenta da mudança, uma construção humana.

Esse debate parece apartado da nossa política, mas não é, quando nada porque o governo Bolsonaro é “terrivelmente evangélico”. Não apenas no bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que adota desde a campanha eleitoral. Em suas decisões, predominam a emoção, a intuição, as ideias preconcebidas, os preconceitos e a fé, em detrimento da razão, da experiência vivida, dos indicadores estatísticos e das pesquisas científicas que, na gestão democrática e moderna, fundamentam as políticas públicas. Diante da revolução tecnológica global, a subordinação da ciência à religião e da razão à fé não tem a menor chance de dar certo.“Eppur si mueve!”, esse é o dilema teológico desde o julgamento de Galileu Galilei pela Inquisição Católica.

Decálogo do bom governante

Governar é difícil. Governar o Brasil, por sua vastidão territorial, multiplicidade étnica e cultural, histórica desigualdade e deficiência crônica em áreas básicas para o progresso humano, é tarefa para quem, antes de tudo, enxergue essas questões como estímulo e, de forma empática, saiba liderar a Nação na busca por soluções para nossas mazelas.

As variáveis que levaram os eleitores a escolher Jair Bolsonaro como presidente da República em outubro do ano passado já não importam, senão para a historiografia. A democracia não corre o risco de embolorar quando a sociedade se mostra capaz de aprender as lições deixadas por cada pleito. Aliás, é dessa abertura dos cidadãos ao aprendizado cívico que vem o oxigênio que mantém a democracia viva. Ora avançando, ora retrocedendo, o que importa é o constante apuro do discernimento dos eleitores.

Os cidadãos serão mais uma vez convocados às urnas no ano que vem para escolher os prefeitos e vereadores dos 5.570 municípios do País. É uma escolha muito importante porque é o município a base do sistema político brasileiro. É no município que acontecem os fatos que mais afetam a vida de milhões de homens e mulheres no País. Trata-se, pois, de mais uma excelente oportunidade para os eleitores buscarem informação confiável, sopesarem seus interesses e necessidades e identificarem no rol de candidatos aqueles que julgam estar preparados para melhorar suas vidas.

Já dissemos que governar é difícil. Um governante, pois, para dar conta da responsabilidade de influenciar a vida de milhões de pessoas, deve estar munido de uma série de atributos que o qualifiquem para o desafio.

Em Do institutions matter? (As instituições importam?, em tradução livre), publicado em 1993, R. Kent Weaver e Bert A. Rockman enumeraram as dez capacidades que seriam indispensáveis a todos os governantes, seja qual for o sistema político-eleitoral de um país. É um bom decálogo para orientar o processo decisório dos eleitores.

A primeira é a capacidade de definir prioridades diante da miríade de interesses coletivos em jogo, muitos deles contraditórios. Uma vez definidas as prioridades, é fundamental que um governante saiba empregar os recursos humanos e financeiros para atingir tais objetivos eficazmente.

A terceira capacidade é a de inovar quando os modelos até então tentados se mostram ineficazes para o atingimento daqueles objetivos. A quarta é a capacidade de construir um “todo coerente” a partir da coordenação de projetos conflitantes. A quinta capacidade indispensável a um governante é a de impor perdas a grupos poderosos. Não raro os interesses desses grupos se contrapõem ao interesse nacional. A um governante cabe fazer a justa distinção.

A sexta capacidade que os eleitores devem enxergar em seus escolhidos é a de saber representar “interesses difusos e desorganizados” ao lado de “interesses concentrados e mais bem organizados”. Definido um programa de governo, cabe ao governante, por óbvio, cuidar de sua execução, avaliando eventuais mudanças que possam se interpor no caminho. Este é o sétimo atributo básico enumerado pelos autores.

Os governantes também devem assumir compromisso com a estabilidade política, de modo a criar as condições para que as ações do poder público possam surtir os efeitos delas esperados. O mesmo vale para os compromissos assumidos no plano internacional, área em que devem estar divididos claramente os interesses de governo e de Estado.

Por fim, mas não menos importante, um governante deve ser o primeiro a se mostrar aberto à conciliação das divisões políticas a fim de garantir que a sociedade “não degenere numa guerra civil”. Ou seja, é papel de um governante pacificar a sociedade, não estimular rupturas.

Tanto melhor seremos uma nação quanto os eleitores estiverem dispostos a observar a presença de tais atributos nos que lhes suplicam o voto. É um processo que não levará mais ou menos tempo a depender do grau de amadurecimento da sociedade entre um pleito e outro.

A partir de agora, as autoridades podem se corromper

A partir de agora, as altas autoridades não podem mais ser investigadas, pois estão acima da lei e podem praticar todo o tipo de corrupção e demais ilícitos em decorrência do exercício criminoso de seus cargos.

Esta é a determinação do TCU – Tribunal de Contas da União – seguindo o exemplo de Toffoli, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, que impedem as investigações em torno deles mesmos. Estão todos receosos das revelações de suas atividades ilícitas no exercício de seus intocáveis cargos.
Dessa forma, se algum servidor do Banco Central, do Coaf (Conselho de Controle das Atividades Financeiras) e da Receita Federal procurar examinar as movimentações financeiras da cúpula dos três poderes, será imediatamente suspenso do exercício de seu cargo, acusado de improbidade administrativa, expulso do serviço público e processado criminalmente – conforme já determinou o ministro Alexandre de Moraes no inquérito 4.781 do DF, no último dia 1º de agosto.



Dentro desse sórdido esquema de acobertamento criminoso, o ministro do TCU – Bruno Dantas – ordenou a Receita que “entregue em até 15 dias àquela Corte, a relação dos processos e fiscalizações que, nos últimos cinco anos, envolveram integrantes e ex-integrantes das cúpulas dos três Poderes, além de seus cônjuges e dependentes”.

Ademais, o ministro exigiu a remessa àquela Corte “do nome e matrícula dos servidores da Receita Federal formalmente designados para atuar nos processos de fiscalização dessas altas autoridades”. Desse modo, o Tribunal de Contas da União faz coro com o STF, em benefício da Central Única da Corrupção. Veja-se a que ponto chegamos.

Meu amigo, o jornalista José Nêumanne Pinto fez um depoimento emocionado sobre os absurdos que vem sendo cometidos pelos donos do poder desse país, em seu canal do Youtube, que merece ser visto e divulgado.

Precisamos nos lembrar que as medidas do STF e TCU de proteção ao crime de corrupção não têm precedentes em qualquer país civilizado e muito menos em um Estado Democrático de Direito. O Brasil, por obra desses ministros do STF e TCU, vai se tornando um país fora da lei. Esse esquema canalha de impunidade não pode ser imposto goela abaixo ao povo brasileiro. Precisamos reagir à altura.

Imagem do Dia

Alentejo (Portugal)

A lógica do destempero

As manifestações intempestivas do presidente da República, suscitando confrontos permanentes, aparecem como formas de descontrole, quando são, na verdade, lógicas segundo sua arte de governar. São coerentes não apenas com o seu estilo pessoal, mas também, e sobretudo, com sua forma de fazer política.

Somente agora completa o novo governo sete meses, porém tem-se a impressão de que alguns anos já transcorreram. Discute-se a sucessão presidencial como se as eleições já estivessem ali adiante, expondo um quadro de envelhecimento precoce do governo. Nestes poucos meses ele ainda não disse ao que veio, mas novas eleições já entraram em pauta.

A duras penas completou o novo governo a aprovação da primeira rodada de votações da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados. O processo, provavelmente, não se concluirá no Senado antes de outubro, no que se configura o início de um duro processo de retomada do crescimento. No entanto, o debate público é regido por questões manifestamente menores, como liberação de cadeirinhas para crianças nos automóveis, porte de fuzis, nomeação de um filho para embaixador, acusações de que o pai do presidente da OAB teria sido “justiçado” por seus “companheiros” durante o regime militar, e assim por diante. Há uma evidente confusão entre o principal e o acessório. A comunicação social do presidente é manifestamente falha. Só agrada aos fiéis e aos já convertidos.


Note-se que o governo, em vez de se beneficiar dos seus feitos – como o começo da aprovação da reforma da Previdência, a lei sobre o direito à legítima defesa (depurada de seus excessos), a concessão de aeroportos, o debate sobre a necessidade das privatizações, o início de desburocratização administrativa via eliminação de decretos, portarias e conselhos –, se perde em pautas claramente secundárias, ofuscando o que faz pelo País. Há uma inversão: o principal sai de foco e entra em seu lugar o subsidiário.

Qual é a lógica? Certamente não é a arte de governar, pois esta exigiria uma atenção às políticas públicas voltadas para tirar o País do marasmo de uma economia que patina e de um desemprego que aterroriza milhões de brasileiros. A insegurança pessoal ronda boa parte da população. Em seu lugar entra um conjunto de questões menores que diz respeito à concepção política dos bolsonaristas, voltada para o embate permanente, sempre à caça do inimigo real ou imaginário, não importa. O que conta é a “existência” do inimigo, real ou não.

Quando o presidente confronta opositores, logo tomados como inimigos, logo o faz sob a forma do embate, como se ele próprio estivesse em questão, como se estivesse sendo atacado. Qualquer ocasião é aproveitada segundo sua intuição dos dividendos que poderá extrair do confronto. Precisa do embate para fortalecer a própria posição, sentindo-se ameaçado. Tal processo funcionou muito bem durante a campanha eleitoral, particularmente propícia para a “destruição do inimigo”, no caso, o PT. Deixa, porém, de funcionar quando se aplica à arte democrática de governar, baseada na negociação e na composição com os adversários.

Tomemos o caso do confronto com o presidente da OAB. Em aparente descontrole, o presidente fez acusações, sem nenhuma prova, ao pai do dr. Felipe Santa Cruz, procurando criar uma instabilidade no interlocutor. Tratou-se de um ato gratuito, fora de contexto, sem nenhuma compaixão. A moral foi para o espaço. A liturgia do cargo foi abandonada. Suscitou um problema que não deveria sequer ter sido levantado. Por que o fez?

Procurou trazer para o debate político a questão do “justiçamento” dos que participaram da luta armada para a instauração do socialismo/comunismo no Brasil. Ressalte-se: não lutaram pela democracia. Eram “companheiros” que não mais concordavam com o uso da violência, que discordavam ou, simplesmente, pretendiam voltar a uma vida normal. Eram tidos por “suspeitos” ou ”traidores”. Foram “julgados” por “tribunais populares” e sumariamente assassinados. Tais casos, porém, não foram investigados pela Comissão da “Verdade”, por contrariarem a narrativa de que a “esquerda” seria “vítima” e lutava pela “democracia”. Acontece que o caso específico do pai do presidente da OAB não se enquadra nesse tipo de fato, tendo sido atestada sua morte, seu “desaparecimento”, nas mãos de órgãos do Estado.

Ora, o presidente, ao suscitar um problema histórico e mal aplicá-lo ao caso em questão, trouxe a entidade dos advogados para o embate político, realçando seu perfil de esquerda e colocando-a como “inimiga”, na esteira de outros ataques ao PT. Ou seja, o presidente precisa do PT e da esquerda em geral para se justificar, para manter em movimento o seu embate político, pois é essa narrativa que o seu grupo pensa ser a sua forma de sustentação. Se 2022 é o horizonte, é necessário que sua narrativa seja preparada desde já. O “inimigo” deve estar agora presente. Se o PT não existisse, seria necessário criá-lo.

Na verdade, o inimigo real dos bolsonaristas não é o PT, mas o centro do espectro partidário, que se pode apresentar nas próximas eleições em figuras como o governador João Doria ou o apresentador Luciano Huck. Eles são os alvos ocultos. Pense-se, por hipótese, que os bolsonaristas representam em torno de 30% dos eleitores e o PT e a esquerda, outros 30%. O embate entre os dois grupos favorece ambos, excluindo terceiros. O presidente Bolsonaro está voltado para o fortalecimento de seu eleitorado, de seus fiéis, apostando que o adversário num eventual segundo turno seria o PT. Suas chances eleitorais seriam grandes. Se, contudo, o PT não tiver condições de chegar ao segundo turno, entrando em seu lugar Doria ou Huck, o presidente estaria seriamente ameaçado.

Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada.
Denis Lerrer Rosenfield

Armas

Qual a mais forte das armas,
a mais firme, a mais certeira?
A lança, a espada, a clavina,
ou a funda aventureira?
A pistola? O bacamarte?
A espingarda, ou a flecha?
O canhão que em praça forte
faz em dez minutos brecha?
– Qual a mais firme das armas? –
O terçado, a fisga, o chuço,
o dardo, a maça, o virote?
A faca, o florete, o laço,
o punhal, ou o chifarote?
A mais tremenda das armas,
pior que a durindana,
atendei, meus bons amigos:
se apelida: – a língua humana.
Fagundes Varela

O alerta verde da Europa sobre o Brasil

O New York Times deu o pontapé, no domingo, 28 de julho, com a matéria de capa intitulada "Destruição da Floresta Amazônica acelera", que mostrou que as multas ambientais aplicadas pelo Ibama caíram cerca de 20% nos últimos seis meses. Um dia depois, o espanhol El País repercutiu o texto "O Brasil de Bolsonaro, o vilão ambiental planetário", que destacou algumas das frases destemperadas do presidente brasileiro, como a de que a questão ambiental só importa "aos veganos que comem só vegetais". Dia primeiro de agosto, quinta-feira, foi a vez do britânico The Guardian : "Desmatamento da Amazônia: governo Bolsonaro acusado de lançar dúvidas sobre dados", sobre o caso do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cujo diretor, Ricardo Galvão, foi exonerado no dia seguinte. O grand finale (até agora) foi a reportagem de capa da última edição da revista The Economist : "Velório para a Amazônia — a ameaça do desmatamento descontrolado”.

A repercussão mundialmente negativa acendeu o "alerta verde" da Europa sobre a dramática situação ambiental no Brasil. Um dos principais motivos foi a morte do cacique Emyra Waiãpi , no Amapá, após uma invasão de supostos garimpeiros. Com a voz firme, e em tom de desabafo, a relatora das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, responsabilizou o presidente brasileiro pela tragédia: “Quando Bolsonaro estimula a exploração econômica das terras indígenas em seu discurso, na prática outorga um passe livre aos interesses econômicos e políticos que querem explorá-las ”, disse, por telefone, das Filipinas, seu país de nascimento. “Bolsonaro é diretamente responsável, porque é responsabilidade do governo proteger a vida dos seus cidadãos. E o Brasil assinou todas as convenções internacionais de direitos humanos que protegem a vida dos seus cidadãos”, acrescentou a relatora da ONU.

Tauli-Corpuz elogiou o sitema de medição de desmatamento da Amazônia do Inpe, feito a partir "do mais alto rigor tecnológico e científico" e falou que "não é muito fácil de esconder a realidade, com os dispositivos tecnológicos atuais". Defendeu ainda uma investigação indepedente sobre a morte do líder índígena Waiãpi e que os autores do crime respondam na Justiça. Da comunidade internacional, principalmente de países europeus importadores de carne e derivados de soja do Brasil, pediu um aumento da pressão, "sobretudo em um momento em que a União Europeia [UE] tem de ratificar o acordo de livre-comércio com o Mercosul ".

Questionadas pela coluna, fontes da UE ressaltaram que “a proteção dos direitos dos povos indígenas está incluída nos princípios gerais” do acordo de livre-comércio com o Mercosul, assim como a “promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em virtude da Declaração Universal dos Direitos Humanos”. "Lamentamos a morte do líder indígena Emyra Waiãpi. A UE está fortemente empenhada nos direitos humanos", escreveu um porta-voz, em uma tentativa de descolar a imagem do bloco da fatalidade.

Para o austríaco Thomas Waitz, do partido Os Verdes, o tratado de livre-comércio entre a UE e Mercosul terá muita resistência no parlamento europeu, já que a mudança climática e a defesa da biodiversidade “são temas que estão no centro do debate político". “O assunto da mudança climática afetou todos os partidos, não só 'Os Verdes’, mas também a maioria dos conservadores. Todos estão conscientes de que é preciso fazer algo”, disse, também por telefone, o eurodeputado na última legislatura. “Duvido muito que o tratado obtenha maioria no parlamento europeu do jeito que está."

O deputado do parlamento espanhol Juan López de Uralde, líder do partido ecologista Equo e ex-chefe do Greenpeace na Espanha por dez anos, também defende que a UE "não pode ficar de braços cruzados com o que está acontecendo" na Floresta Amazônica. "A Amazônia é um pulmão global de grande importância para a estabilidade climática. A Europa não pode olhar para o outro lado", disse. "As declarações e políticas de Bolsonaro são um convite para a destruição da Amazônia", acrescentou. Uralde também rechaçou a intenção do governo brasileiro de regularizar a exploração mineral de terras indígenas, incluindo os próprios índios, já que a atividade causa "grande dano ao meio ambiente", "contamina águas" e "desloca populações". "Os impactos são dramáticos", resume.

Para a diretora de pesquisa da ONG Survival, Fiona Watson, o governo de Bolsonaro representa a “maior ameaça aos povos nativos latino-americanos desde a ditadura militar”. “Tanto com o governo de Bolsonaro, como no período militar, houve uma tentativa de integrar os índios à sociedade, mas uma integração que não é benéfica aos índios, como demonstram muitos estudos no mundo, mas para o sistema econômico. A ideia é liberar suas terras para a exploração por setores como o agropecuário e a mineração”, explicou a diretora da ONG.

Segundo Watson, é competência das instituições que defendem os indígenas conscientizar os consumidores europeus dos crimes que acontecem na Floresta Amazônica. “Acho que se muitos países consumidores de carne e derivados da soja do Brasil souberem que seus produtos, às vezes, são feitos com o custo de vidas, ou do desmatamento da Amazônia, vão deixar de comprar”, argumentou, em convite a um boicote — talvez a única linguagem que Bolsonaro entenda.

Bolsonaro e os 'maus brasileiros'

Esqueça tudo o que você já leu sobre o desmatamento da Amazônia. Segundo o presidente da República, quem alerta para a devastação da floresta está a soldo de ONGs internacionais. Os avisos fariam parte de uma campanha maldosa, com o objetivo de manchar a imagem do país no exterior.

Ontem Jair Bolsonaro resolveu avançar na tese. Em solenidade na Bahia, ele disse que “maus brasileiros” têm divulgado “números mentirosos” sobre a Amazônia. Seu alvo foram os cientistas do Inpe, que usam imagens de satélite para monitorar a região e orientar os fiscais do Ibama.


O discurso do Planalto está afinado. Na quinta passada, o ministro Augusto Heleno disse que a publicação de dados sobre o desmatamento “prejudica muito a imagem do Brasil”. Ele sugeriu que “nós cuidássemos do problema internamente”.

Na semana anterior, Bolsonaro já havia cobrado mudanças na divulgação dos números. O presidente disse que o diretor do Inpe deveria, por “responsabilidade e respeito”, consultar o “chefe imediato” antes de informar o que acontece na floresta. Só faltou culpar a transparência pela queda das árvores.

A tática presidencial não é nova. Todo líder com vocação autoritária apela ao patriotismo para se esquivar de críticas. De acordo com essa lógica, quem discorda do governo é traidor da pátria. Quem ama o país tem o dever de apoiar seus governantes, mesmo quando eles estão errados.

A ditadura militar estimulou o ufanismo para se perpetuar no poder. As propagandas oficiais exaltavam usavam o mote “Brasil: ame-o ou deixe-o”. No ano passado, uma emissora de TV tentou ressuscitar o slogan depois da eleição presidencial.

A ofensiva do governo contra o Inpe não se limita às palavras. Ontem Bolsonaro nomeou um coronel da Aeronáutica para chefiar o órgão federal. O escolhido tem currículo na área, mas sua gestão deve ser acompanhada com olhos vivos. Ao que tudo indica, há “maus brasileiros” interessados em divulgar “números mentirosos” sobre a Amazônia. Não são os cientistas.