sábado, 5 de fevereiro de 2022

Sociedade de escória

Nenhuma sociedade , de fato, é tão baixa e desonrosa como a que repele os velhos para as margens da estrada, humilha-os e esquece-os, dizendo-lhes com pobres palavras: Viveram suficientemente, agora fora! Nenhuma sociedade é tão ignóbil como a nossa, quero dizer, onde aos velhos se deixa mais ou menos o lixo e se acha graça e até se conseguiu persuadi-los de que não contam mais nada e tudo o que lhes resta é um algo a mais, bondosamente concedido. E então os vemos pela rua, olhando ao redor, tímidos, pedindo desculpas por ainda estarem aqui.

(...) Oh, se fôssemos mas inteligentes ou astutos, daríamos aos velhos todas s alegrias, as comodidades e os triunfos, mesmo a glória, aos pobres barbudos do subúrbio, músicas, tapetes, tribunas de honra, camareiros. E à noite, nos ajoelharíamos em volta deles, para ouvi-los contar suas clássicas histórias, sempre suas clássicas histórias, sempre as mesmas, é verdade, já a sabemos todas de cor. Digam, porém, não vale a pena reprimir um pequeno bocejo, se isso favorece a felicidade?

Dino Buzzati, “Orquídeas para os velhos”

A cidade que vive nas ruas

Quem caminha pela região central de São Paulo certamente já notou. Aumentou enormemente a população de rua na cidade. O novo Censo da População em Situação de Rua tenta medir o tamanho do problema: são 32 mil pessoas que o desemprego e a falta de moradia empurraram para as calçadas. O número é o dobro daquele que havia em 2015, no início da crise econômica, e é considerado subestimado por organizações sociais que atendem a esse público.

É vergonhoso que tenhamos tanta gente na rua. E, como não se via há muito tempo, temos agora famílias inteiras, com crianças. Vinte e oito por cento dos moradores de rua de São Paulo estão com a família, e há quase mil crianças e adolescentes na rua.


Setenta e um por cento dessa população são negros ou pardos, quase o dobro do percentual no total da cidade (37%). Vinte e sete por cento deste contingente estão na rua há menos de dois anos, um período difícil, no qual a economia e o emprego sofreram o impacto da pandemia. Outros 29% estão nas ruas entre dois e cinco anos, mais ou menos o período de nossa crise econômica.

Quarenta e três por cento das pessoas em situação de rua não trabalham, e 34% vivem de bico. Entre os que têm algum tipo de trabalho, 79% ganham menos de um salário mínimo. A maioria não consegue um emprego regular, pois, além da competição com outros desempregados, não pode se candidatar a um posto por não ter residência fixa. Falta de moradia e desemprego se retroalimentam, num círculo vicioso.

Sem nenhuma surpresa, a solução, segundo as próprias pessoas em situação de rua, é oferecer moradia e emprego dignos. Quarenta e seis por cento acreditam que a solução é ganhar moradia permanente, e 23% creem que é receber emprego. Enquanto isso não vem, esse enorme contingente só pode contar com abrigos, restaurantes populares e as políticas de transferência de renda.

É muito triste termos mais de 30 mil morando nas ruas de São Paulo. São pessoas que precisam optar entre viver em barracas ou se submeter às severas e inflexíveis regras dos abrigos. São pessoas que precisam enfrentar as filas dos restaurantes populares e torcer para que mudanças bruscas nas políticas sociais não as deixem sem o jantar ou ter o que comer no fim de semana. São pessoas que não têm acesso a um banho regular, nem à água potável.

Uma parte desses mais de 30 mil é de cidadãos, como você e eu, que perderam o emprego e foram despejados das suas casas. Outra parte é de pessoas que brigaram com a família e terminaram na rua ou que têm algum problema mental ou dificuldade com álcool ou drogas —como muitos nas nossas famílias.

Somos um país de renda média e, se quisermos, temos condições para tirar essas pessoas das ruas. Gente vivendo na rua pode ser um problema pequeno e difícil de resolver, como mostra a experiência de países com boas políticas sociais. Mas, nesta escala, de dezenas de milhares, nós sabemos bem como enfrentar: precisamos oferecer moradia e emprego — e, na impossibilidade de emprego, dar algum tipo de renda. Política habitacional e política de transferência de renda já compõem o nosso repertório de políticas públicas. É preciso empenho.

“Não me matem”

Seu nome era Moise Mugenyi Kabagambe, o congolês de 24 anos que foi linchado na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em frente ao quiosque Tropicália em 24 de janeiro. Apesar de os brasileiros estarem tristemente acostumados a conviver com uma das maiores taxas de homicídios do mundo, desta vez, a severidade do crime comoveu o país inteiro. O grito do jovem antes de morrer, “Não me mate!”, continua a ressoar nas redes sociais e na consciência de quem, apesar de tudo, aposta e trabalha todos os dias a favor da paz e da harmonia.

De acordo com o promotor que analisa o caso, que foi gravado pelas câmeras de segurança do quiosque, “constata-se uma ação do mais alto grau de crueldade, perversidade, desprezo pela vida”. O jovem que trabalhava como garçom no quiosque é descrito pelos clientes como “alegre e educado”. Ele perdeu a vida apenas por ter pedido ao dono do bar da praia que lhe pagasse 200 reais (33 euros ou pouco menos de 38 dólares) que lhe devia.

O jovem que gritava para não ser morto foi linchado por cinco homens com chutes, socos e golpes de madeira. De acordo com exames médicos, Moise entrou em agonia 10 minutos antes de morrer e foi encontrado com as mãos e os pés amarrados, com os olhos ainda abertos.

Talvez a execução brutal realizada na areia da bela praia do Rio, a inveja do mundo, esteja causando dupla indignação na sociedade e tenha explodido nas redes sociais porque o país vive politicamente em um clima onde o governo do fascista Jair Bolsonaro tem como lema que o “melhor bandido é o bandido morto”. Se for executado, melhor ainda.



O presidente é defensor da tortura e da pena de morte. Sua política, seus gostos, seus esportes estão todos relacionados às armas, cujo mercado facilitou porque seu sonho é que todo o país esteja armado. Seu gesto favorito é simular com as mãos o ato de disparar um revólver. Durante a campanha eleitoral, uma cena em que o candidato a presidente do país pega uma menina de cinco anos nos braços e a ensina a imitar, rindo alegremente, o ato de disparar uma arma com a mão inocente, foi ultrajante.

Toda essa paixão pelas armas do chefe de Estado vem criando um clima no país em que a violência e as execuções sumárias se tornaram normal. Eu diria desportivo, se o adjetivo não me machucasse na boca.

Alguns teorizam que o Brasil sempre foi um país violento. É apenas parcialmente verdade. É que hoje essa violência é institucional, alimentada pelos instintos de morte de um presidente que zomba, por exemplo, daqueles que se protegem da pandemia, considerando-os “covardes”.

Estou neste país há 20 anos e sou testemunha de que a violência de hoje mudou de cara porque é alimentada por quem está no poder com o desprezo pela vida e a exaltação da ditadura militar. Hoje, talvez como reação a esse clima de morte que se instalou, cresce um movimento de solidariedade sem precedentes em todo o país, com o aumento de moradores de rua que vivem e morrem na rua.

Talvez o excesso de falta de humanidade do presidente esteja despertando na sociedade um movimento de defesa da vida, de acolher os deixados à própria sorte pela grave crise econômica. Aquele Brasil que reage à violência com sentimentos de compaixão e ajuda os que ficaram para trás na vida lembra-me a cena que presenciei quando cheguei aqui. Foi na praia de Copacabana, no Rio, quando uma idosa caiu inconsciente. Em poucos segundos, uma dezena de pessoas se reuniu com seus celulares na mão chamando uma ambulância. No Consulado me disseram então que os espanhóis que vieram para o Brasil queriam ficar. Eles comentaram que aqui “as pessoas são gentis, alegres e solidárias”.

Hoje, essa alegria e esse espírito acolhedor se perdem em meio à fumaça dos sentimentos de hostilidade, desconfiança e violência instigados por quem está no poder. Como disse o ex-presidente Lula da Silva, que aparece nas pesquisas como o candidato mais forte para derrotar Bolsonaro, “o Brasil precisa recuperar a alegria perdida”.

O grito do jovem trabalhador congolês de “Não me mate!” que continua ressoando na areia branca das praias do Rio onde foi executado vilmente e morreu de olhos abertos, talvez sirva, um triste paradoxo, para que quando chegar a hora de ir às urnas, os brasileiros decidam desta vez devolver ao país a felicidade perdida depois de ter se libertado do pesadelo do que já é considerado o pior e mais violento dos governos democráticos deste país.

O poder da descrença

Em ano eleitoral, os candidatos esperam que o eleitor se comporte como se estivesse diante da televisão na hora da novela; no teatro esperando abrirem-se as cortinas; no cinema, serem apagadas as luzes —e então se dê o milagre da suspensão voluntária da descrença.

Poderiam avisar, como Orson Welles em “Verdades e mentiras”, que o que vem a seguir é sobre trapaça, fraude e mentiras, mas que o filme, em si, é baseado em fatos sólidos. Seria pelo menos meia verdade.

Suspendemos a descrença para mergulhar, sem amarras, na arte. Para nos iludir com a perspectiva e aceitar a terceira dimensão numa tela plana. Ver o personagem por trás da máscara do ator, admitir que o tempo passe noutro ritmo, que uma sugestão no palco se torne um cenário completo. Para deixar que palavras escritas se transfigurem em personagens não só de carne e osso, mas com mais alma que a maioria de nós.

É preciso descrer das evidências para transcender e penetrar no mundo superiormente interessante da arte.


Isso quando o gatilho é um Fassbinder, a nos mentir a 24 quadros por segundo. Uma Hilda Hilst, nos arrastando em seu vórtice; um Sérgio Ferro, um José Miguel Wisnik, um Antunes Filho, um Sebastião Salgado. Em ano eleitoral quem entra em cena é o marqueteiro.

A essa figura compete nos convencer da troca da realidade por um simulacro, uma versão unidimensional — e infinitamente inferior — de si mesma.

O artista nos catapulta; o marqueteiro quer porque quer nos achatar. Não é culpa dele, coitado, que está só tentando ganhar a vida honestamente nos empurrando uma fraudezinha disfarçada de boas intenções, uma mentira sincera aqui e uma semiverdade marota acolá.

Tanto quanto o artista, ele atua na chave do ilusionismo. Mas se ilusão da arte tem a ver com o lúdico (a origem etimológica é a mesma); a do marqueteiro se ancora na percepção distorcida.

Ele vai tentar nos convencer de que o candidato X defende valores cristãos, mesmo tendo sido desonesto, desleal, intolerante, insensível ao sofrimento alheio. Que é um paladino da família, em luta contra a degeneração dos costumes — enquanto tratou foi de salvar a pele da própria prole, tendo feito do seu lar um antro de falcatruas. Exibirá como resultado de seu governo uma imunização em massa que salvou milhões de vidas — escamoteando sua luta incessante contra as vacinas.

Vai suar a camisa para demonstrar o apreço democrático do candidato Y, que defende regimes de força e não esconde o desdém pela imprensa livre, pelo livre mercado, pela liberdade de pensamento. Que insistirá em repetir o que já deu errado, e que não tem como dar certo, nem nunca terá. Vai, num jogo de espelhos, fazer desaparecer o governo mais desastroso que este país já teve. (Nota mental: lembrar onde foi que li que Dilma é a pior presidente do Brasil; Bolsonaro é apenas o pior presidente da galáxia).

E ainda há o encarregado de provar que uma penca de candidatos Z quer a união em torno de uma terceira via.

A suspensão da descrença nos permite a arte, a marquetagem política e a religião. Que saibamos quando usá-la com discernimento — ou sem moderação.