terça-feira, 18 de agosto de 2020

Brasil infanticida

 

Mais armas, menos livros

O governo quer gastar mais com militares do que com estudantes em 2021. O plano é coerente com a trajetória de Jair Bolsonaro. O capitão foi para a reserva há 32 anos, mas nunca tirou os pés do quartel. Na política, sempre atuou como um sindicalista da farda.

O Brasil não está em guerra e não tem motivos para se preocupar com as fronteiras. Mesmo assim, o Planalto pretende aumentar as verbas do Ministério da Defesa em 49% na comparação com o projeto de Orçamento enviado ao Congresso no ano passado.

Segundo o jornal “O Estado de S.Paulo”, a pasta deverá receber R$ 5,8 bilhões a mais do que o Ministério da Educação. Isso não ocorre há uma década, quando o investimento nas salas de aula ultrapassou as despesas com a caserna.

Desde que vestiu a faixa, Bolsonaro mima as Forças Armadas com vantagens e privilégios. Os militares foram poupados na Reforma da Previdência, ocuparam dez ministérios e abocanharam mais de seis mil cargos civis. Em julho, ganharam reajuste de até 73% num penduricalho incorporado ao contracheque.


O presidente não desgruda da tropa. É arroz de festa em posses, aniversários e formaturas de cadetes. Na última viagem ao Rio, ele visitou três quartéis e inaugurou uma escola cívico-militar. Em todos os compromissos, levou a tiracolo o ministro da Educação, Milton Ribeiro.

Na sexta-feira, capitão e pastor se deixaram fotografar diante do escudo do Bope. O emblema é composto de uma caveira, uma faca e dois revólveres. A simbologia perfeita do bolsonarismo, que exalta as armas e despreza o conhecimento.

Nem a pandemia convenceu o governo a dar prioridade à educação. Ontem o MEC anunciou um plano para levar internet a alunos de universidades e institutos federais. Levou cinco meses para notar que estudantes pobres não têm banda larga em casa.

Agora o Ministério da Economia quer taxar a venda de livros, isenta de impostos desde 1946. O novo encargo ameaça sufocar editoras e livrarias. Paulo Guedes não se importa. Em debate com parlamentares, ele sugeriu que ler é passatempo de rico.

O efeito bumerangue da reeleição

O pobre é aquele desamparado ser humano que mais transfere seu poder ao político. As maquinações que a política faz com seus sentimentos são dramáticas. Seu maior inimigo no Brasil é a reeleição. Originária da década de 1990, como o Plano Real, se este mirou longe como um telescópio, a reeleição é sombria como um microscópio.

Cada vez que alguém se reelege, tudo piora. Como outra vez agora, que depois de injetar 1.3 trilhões na economia e de enterrar mais de 100 mil eleitores em cinco meses, sobe três pontos nas pesquisas e conta com a reeleição para fazer pior por mais quatro anos.

Sustentada pela preguiça de nossos costumes, a reeleição esgotou todas as possibilidades de a política pretender servir ao bem comum por meios melhores. E fantasiosamente transformou pesquisa de opinião, em qualquer época, em fator de reeleição. Porque é tal a super cobertura do fenômeno que qualquer situação inelegível é incluída na análise.

Fabrique o exótico, amplie o familiar. O conjuntural virou estrutural e o oportunismo das coalizões virou jogada de mestre, escondendo a corrupção de costumes embaixo da cooptação eleitoral do governante no poder.

As consequências metodológicas disso nas ciências sociais e políticas foram terríveis. Acertar o que vai acontecer passou a devorar qualquer análise de fatos e realidade. E a imagem que os institutos de pesquisa passaram a ter de si mesmo passou a ser a de ator político reduzindo tudo a explicação psicológica e fatores de ordem pessoal.

Reeleição então é um conjunto aquiescente de respostas de entrevistados não querendo decepcionar entrevistadores para fixar o valor apurado do eleitor. Pura e facciosa especulação.



O fato sucessório, como única experiência comum que interessa à análise política, introduziu um erro padrão no acompanhamento da gestão governamental que é analisar o desempenho do Executivo pelo viés eleitoral. Como se bom para o país fosse o sujeito que planeja outro filho, sem ter sido capaz ainda de criar bem o que já tem.

Reeleição é regra artificial cuja importância é a auto-importância que a política se dá, um esteio que se sobrepõe a todos os outros. Nascida como um viés pessoal do governante, não é um aspecto essencial da história ou da genética brasileira. O modelo consolidou-se como uma deficiência imposta ao país por grupo político inábil para conduzir sua sucessão e logo entrelaçou todas as nossas outras deficiências.

O princípio nasceu como expediente privado e se mantém com sua natureza de erro, um reino objetivo de atraso, comodidade e corrupção de costumes e valores governamentais. O que se obtém de bom com a reeleição? Para o país, nada.

Instituída por emenda constitucional em junho de 1997 com a desculpa de proteger o Plano Real (julho 1994) dos seus adversários, se tornou a razão da agonia e morte da prosperidade econômica. Vendo assim, a reeleição funcionou como um antídoto contra a economia liberal. Uma conspiração política do governo que criou o Real contra a lógica do Real.

Assim, o plano econômico impulsionador do processo histórico de independência para todo o povo foi trocado pela criação e desenvolvimento de uma comunidade política baseada na solidariedade corporativa (fisiologismo, base do governo, centrão) que bloqueou o diálogo livre entre o Estado e a Sociedade.

A reeleição resolveu para o patrimonialismo brasileiro uma contradição histórica do país: o Estado conseguiu finalmente centralizar, pela via política, seu caráter disperso e de grupos. A política feudal dos partidos passou a dirigir a economia da elite tradicional. Todos os três presidentes que se beneficiaram da reeleição fizeram campanhas economicamente absurdas para se reelegerem e um segundo governo desastroso para suas biografias e o horizonte do país.

Estão aí as consequências desse acúmulo de erros. É ela que desencoraja a sociedade para a autonomia e induz o eleitor à hipocrisia. Quando a elite é tão sem juízo não adianta pedir ao povo para ser melhor.

Contraditoriamente, subproduto de um plano econômico idealista, técnica e materialmente sustentado, aceito e compreendido, a reeleição foi usada como um freio político para remediar arranjos circunstanciais de interesse de grupos, vetar a circulação de líderes e dar segurança de vitória eleitoral antecipada. Até hoje este é o seu motor de arranque, a sua única razão de ser.

O Plano Real, com a autoridade cívica e profissional de sua brilhante equipe de formuladores, era um pensamento e uma ordem econômica para transformar brasileiros em cidadãos. O princípio da reeleição foi acoplado a ele como um contra pensamento de desordem, uma regra de solidariedade interna de grupos políticos e comodidade governamental responsável por desfazer os sonhos do cidadão e o reduzir a suas necessidades imediatas.

É infalível, quem mais paga tributo à reeleição é a verdade e a estabilidade econômica e o progresso do país. E a coisa é feita ardilosamente pondo a culpa na pobreza e desigualdade social. Porque desde então a principal desculpa para rejeitar qualquer regra de austeridade ou responsabilidade fiscal do Estado é a necessidade de atender emergencialmente os eleitores pobres.

É o velho laço entre a ambição e a inércia. Uma dualidade ilógica: a reverência aos pobres anunciada como irreverência ao que poderia retirá-los da pobreza que é a boa e previsível ordem econômica do país.

Mergulhe fundo na alma dos dois personagens, o candidato e o eleitor, e assim então se compreende: qualquer mudança significativa na vida de um não depende de esforços humanos e boas e estáveis regras socioeconômicas, mas de ser dócil, crédulo e obediente ao outro.

A reeleição congela na cabeça do povo o modo moderno de mudar de vida. A política, e sua inclinação contra a riqueza legal e legítima, tomou a direção oposta da estabilidade econômica, a única maneira de acabar com a pobreza que se tornou o combustível da má democracia eleitoral que praticamos.

Pensar, isolada e emocionalmente, em qualquer política distributivista de benefícios sociais compensatórios sem enfrentar a necessidade de abolir a reeleição é blefar com os fatos. Veja valor na população e refaça o tempo do mandato, mas arrebente com a cerca do curral eleitoral que é a reeleição para que as ideias circulem e o país tenha acesso a outra realidade política.

Evitar o tema é não querer reduzir as repugnantes influências da reeleição na manutenção da pobreza confirmando a negligência e a hipocrisia da política diante das ideias igualitárias.

A estabilidade econômica favorece o impulso para a independência, a reeleição consolida o costume de depender. Ela dissolve os antagonismos de opinião, endossa o despotismo dos braços fortes do Estado, favorece o dirigismo moral contra os que estão em desvantagem na sociedade.

A tirania da reeleição é um moinho triturador da mobilidade social e do rejuvenescimento das práticas políticas. Uma pilha de pedras para contenção da mudança erguida pelos políticos para seus próprios fins. A reeleição impôs ao país tal apatia moral que não nos permite reavaliar a ignorância que tal princípio propaga.

Bolsa Família e Bolsonaro

“O voto do idiota é comprado pelo Bolsa Família”, disse Jair Bolsonaro, certa vez. Ele já definiu esse programa como a forma de “tirar dinheiro de quem produz para dar para quem se acomoda”, e pediu que fosse extinto. Em 2017, em Barretos, afirmou que “para ser candidato a presidente tem que falar que vai ampliar o Bolsa Família”. No mundo inteiro, o Bolsa Família sempre foi elogiado por ter foco, baixo custo, e porque através dele foi criada uma rede de proteção social aos mais vulneráveis no Brasil. Esse presidente, que tem tal desprezo por essa política social, fará agora o Renda Brasil. Seu objetivo é um só: o de se reeleger.


Todas as ações anteriores de Bolsonaro negam qualquer compreensão da importância de políticas de transferência de renda. Em março, foram cortados 158 mil beneficiários do Bolsa Família, 61% eram no Nordeste. Os governadores, então, foram ao Supremo, que na semana passada confirmou a decisão do ministro Marco Aurélio de proibir novos cortes enquanto durar a pandemia. Em junho, o governo tentou tirar dinheiro do Bolsa Família para gastos com publicidade do Planalto. Na quinta-feira passada, o ministro Paulo Guedes, em entrevista a um instituto espanhol, revelou que haverá um acréscimo de seis ou sete milhões de beneficiários. No dia da reunião sobre o teto, Guedes gastou um bom tempo falando no Alvorada que o Renda Brasil será criado. Era uma forma de dizer para o presidente que cortaria gastos, mas daria para ele o Bolsa Família com outro nome.

O mais popular e mais bem-sucedido programa social do Brasil foi tecnicamente bem feito, resultou de estudos de especialistas e nasceu dos programas definidos como Bolsa Escola. Algumas vezes, foi usado nas campanhas, quando se disseminavam boatos de que um determinado candidato acabaria com ele. No caso de Bolsonaro, parecia possível porque ele sempre fez críticas. Mas hoje o programa foi incorporado ao rol das políticas públicas que permanecerão. O que se quer agora é reempacotá-lo para servir à reeleição de Bolsonaro. A equipe econômica tem trabalhado com esse objetivo declarado.

Num vídeo postado por Bolsonaro na segunda-feira, o presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), Pedro Guimarães, está no aeroporto, faz uma chamada de vídeo para o presidente e diz: “Tem uma história interessante da dona Maria José aqui.” E, pelo celular, mostra o presidente à mulher. Ela diz que é “apaixonada, louca” por ele. E agradece “tudo o que você tem feito por nós, principalmente os amapaenses”. Pedro Guimarães, no papel de garoto-propaganda, pergunta: “E quanto você vai receber hoje aqui?” Ela diz que são duas parcelas. “Eu vendo bombom trufado aqui no Amapá e tem me ajudado muito a sua ajuda”, ela fala se dirigindo ao presidente. Conta que é evangélica. No encerramento do vídeo, Guimarães, em voz bem alta, em local público, para confirmar com quem está falando, diz: “E aí presidente tudo bem?” Tudo foi filmado por um outro celular, talvez de um assessor de Guimarães. Bolsonaro postou o vídeo com o texto: “Auxílio de R$ 600 salvando vidas.”

Dona Maria José está gerando renda com o auxílio que recebeu, ao fazer o bombom trufado. Um caso realmente interessante, mas Bolsonaro e Guimarães mostram que estão interessados em propaganda eleitoral, em tirar proveito da história dela. O uso político da CEF supera os abusos do passado.

O país precisará de uma ampliação do Bolsa Família. E seria bom que ele ocorresse dentro de um planejamento técnica e fiscalmente bem feito, para continuar sendo sustentável. O palanque, contudo, vai desvirtuar o programa. A pesquisa do Datafolha mostra que o auxílio emergencial, que era de fato necessário, reduziu sua rejeição e aumentou a aprovação.

Bolsonaro é um populista. E tem um projeto autoritário. Como no chavismo, que distribuía o dinheiro do petróleo para se perpetuar. Bolsonaro esqueceu o que dizia do Bolsa Família e usará qualquer programa social que for formatado como alavanca eleitoral. Não é possível deixar os pobres sem proteção. Não é aceitável ver um candidato a ditador usando recursos públicos como se fosse dinheiro dele doado aos pobres, como Bolsonaro e Pedro Guimarães quiseram fazer crer à dona Maria José.

Esta crise das lideranças é dramática

É claro que quem nunca viveu senão em ditadura, quem pouco sabe do que se passa no mundo ou quem nunca viajou, dificilmente terá termo de comparação.


Se olharmos para a actividade política quase só encontramos ditadores declarados ou travestidos de democratas como Duterte, Putin, Lukashenko, Órban, Xí Jìnpíng ou Maduro, já para não falar em África ou na América Latina em geral. Depois temos outros, de perfil autoritário, que tentam passar por cima do estado de Direito, mas vão encontrando obstáculos a tal intenção, como Trump ou Bolsonaro, os quais, como se sabe há muito, mentem todos os dias nas suas declarações públicas e distorcem os factos sem qualquer pudor.

 E se falarmos de incompetência, basta o testemunho de um dos principais organizadores da campanha eleitoral de Bolsonaro em SP, Major Olímpio, que conta que o candidato não se preparava para debates: “Nos dava agonia.” Dizendo-se desiludido com a política, após romper com Jair Bolsonaro, confirmou à imprensa que terminada a eleição “nós não tínhamos um projecto para o país”.

Mesmo na velha Europa o que vemos são indivíduos muito pequeninos, em dívida para com a ética política, a moral pessoal e desprovidos de sentido de estado. A corrupção ronda estas figuras e contam-se pelos dedos das mãos as que conseguem manter uma postura decente. Temos ainda os grupos extremistas de direita e de esquerda que ameaçam os regimes democráticos, os quais por sua vez se vão deixando colapsar aos poucos por dentro.

Mas se formos para o campo religioso deparamo-nos cada vez mais com lideranças obsoletas, que não sabem comunicar, com uma visão estreita do mundo e de tendências autocráticas. À semelhança do terreno político, as lideranças mais conhecidas hoje são os populistas religiosos, em especial os de tipo neopentecostal que ousam lançar mão de quaisquer meios para atingir os fins que pretendem, incluindo a manipulação das notícias ou a criação e difusão de notícias falsas.

Apesar de tudo, Trump é fervorosamente apoiado por sectores cristãos para quem os fins justificam os meios. Recentemente tentou mentir de forma descarada em entrevista à FOX News, uma televisão habitualmente subserviente para com esta Administração, mas foi contraditado pelo jornalista, o que o deixou extremamente desconfortável e furioso por não ter conseguido passar mais uma falsidade em forma de ataque desvairado ao seu adversário político nas próximas eleições.

No Brasil está a ser investigada pela justiça uma gigantesca campanha de notícias falsas, ao que parece forjada por círculos familiares ou próximos da presidência, com o fim de denegrir os adversários políticos ou de enganar o país. Ainda agora o presidente se gloriou nas redes sociais pela aprovação do Fundeb quando a verdade foi o congresso que aprovou a lei contra a vontade do governo, que fez tudo para cortar as verbas para a Educação, e os únicos a votar contra a nova lei foram sete deputados seus parceiros políticos.

Por outro lado surgem nos meios intelectuais e artísticos figuras de referência que tendem a não respeitar o sentir profundo, a história, a cultura e as convicções da maioria da população, e se arvoram em vanguardas das massas que se encontram fora de tais círculos, o que provoca não apenas uma rejeição dessas ideias fracturantes, mas também uma reacção por vezes extremada, o que explica a emergência dos populismos de extrema-direita.

Mesmo na vida financeira e empresarial são escândalos atrás de escândalos, com acusações de fraude e corrupção, seja na banca (Ricardo Salgado-BES, João Rendeiro-BPP, Oliveira Costa-BPN) e ou nas empresas (Mexia, Manso Neto, Joe Berardo).

Se nos países do hemisfério sul e nas regiões mais pobres do planeta a corrupção tende a ser endémica, como forma de sobrevivência nuns casos e de deslumbramento do poder noutros, ela faz-se presente de forma progressiva no mundo ocidental, quando nenhuma destas explicações deveria fazer sentido, a não ser pela constatação de que os seres humanos são feitos da mesma massa onde quer que vivam.

No caso português e na Europa não se pode alegar que esta crise de liderança se origina em qualquer questão de défice educativo ou de falta de formação. Pelo contrário, é mesmo um problema de ética social. Mas o evangelho adianta uma explicação: “Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, Os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem” (Marcos 7:21-23).

Esta crise global das lideranças tornou-se dramática num tempo em que a boçalidade, a manipulação e a irresponsabilidade imperam nas televisões e nas redes sociais. Para quando uma nova geração de verdadeiros estadistas como o mundo já conheceu no passado?

Pensamento do Dia

 

A metamorfose do mito

Se a frase não tivesse uma conotação tão negativa para ele e seus seguidores, diria que Bolsonaro saiu do armário. Melhor então dizer que mostrou sua face e, se quiserem imagem mais antiga, rasgou a fantasia.

Creio que um marco temporal da metamorfose foi a prisão de Fabrício Queiroz. Uma dose de criptonita na veia do mito de milhões de brasileiros que contavam com sua força para derrubar o velho regime e acabar com a corrupção.

Naquele manhã, Bolsonaro despertou não como o personagem de Kafka, sentindo-se uma barata. Percebeu que era apenas mais um animal na floresta de Brasília. Não era do mesmo tipo dos que se financiam com dinheiro de empresas. Mas sabia que seu esquema ficaria evidente para qualquer analista político, independentemente do grau de miopia.

Vários mandatos na família, pouco mais de uma centena de funcionários, uma boa parte fantasma, e estava resolvido o problema financeiro de campanha e melhoria de vida, capitalizando em negócios imobiliários. Era preciso reencontrar o Centrão, um grupo do qual nunca esteve distante. Seus partidos ao longo dos 28 anos de mandato sempre foram fisiológicos. E o Centrão não significa apenas garantia contra impeachment. Há ali toda uma sabedoria de como se dotar de uma pele de elefante para se escudar das críticas.


Bolsonaro sempre foi um combatente ideológico. Ele só adotou o tema da corrupção quando percebeu que essa era a grande fragilidade da esquerda. Nesse ponto, tentei até dizer a ele nas entrelinhas de uma entrevista, Bolsonaro não difere do movimento militar de 64. Eles falavam em combater a subversão e a corrupção. Mas terminaram apoiando Paulo Maluf, numa tentativa de derrotar Tancredo Neves. É um tipo de pensamento onde existem os nossos corruptos e os deles.

A investida contra Moro por não conseguir intervir na PF do Rio era destinada exatamente a evitar que sua família e amigo fossem incomodados. Não adiantou, Fabrício Queiroz foi incomodado no refúgio de Atibaia em junho.

Agora não há mais mistério. Bolsonaro abandona a fantasia e sabe que perde também uma fração de eleitores que acreditava em seu programa e consegue constatar que foi para o espaço. Somadas às perdas com o desastroso negacionismo diante do coronavírus, era preciso buscar outro norte, ou outro Nordeste para sobreviver. É uma fórmula consagrada pelas pesquisas de popularidade.

Um instrumento sempre denunciado pela direita como uma forma de compra de eleitores, o Bolsa Família ressurge como tábua de salvação. Por que não inventar um Bolsa Família para chamar de seu?

E lá se vai Bolsonaro com um chapéu fake de boiadeiro cavalgando seu novo destino. Aparentemente, um caminho sem pedras. O Congresso dando apoio em troca de cargos, eleitores agradecidos ao seu novo benfeitor. Mas há nuvens no horizonte. Onde conseguir dinheiro para financiar esse projeto de reeleição que, na aparência, é um projeto social? Pedaladas no Orçamento podem resultar em impeachment. Mas nem sempre.

Será preciso jogar fora duas importantes bandeiras: a racionalização da máquina e a venda de estatais improdutivas. Esta semana já foram para o espaço os responsáveis por elas no governo. Os pilotos saltaram do avião. Como supor que seja possível ratear cargos nas estatais e, simultaneamente, pedir que as forças políticas aceitem sua passagem para a iniciativa privada?

Um presidente apoiado no Centrão não será novidade. Bolsonaro não se interessa tanto pelo Líbano quanto pelas fórmulas do MDB de Temer para manter a fidelidade de deputados em caso de processo. A tendência será a de um governo como os outros, apoiado no toma lá dá cá, e estourando o teto de gastos para sobreviver politicamente.

O perigo não é só a bancarrota. A própria classe média pode de novo se enfurecer e surgir por aí um novo salvador para implodir o sistema e acabar com a corrupção. Conheço esse filme desde as últimas décadas do século passado. Collor, o caçador de marajás, fracassou; Lula, prometendo introduzir a ética na política, acabou se desvencilhando dela.

Não eximo ninguém de sua responsabilidade pessoal. Mas essa armadilha histórica da qual não conseguimos escapar merecia uma reflexão. Nossas elites são intrinsecamente desonestas ou também há algo errado com nosso sistema político?

A sucessão de salvadores da pátria não é um fenômeno qualquer. Com Bolsonaro, ela nos jogou nos perigosos limites da democracia.

'Estado' moral

A pobreza é um estado moral, um sentido das coisas, uma forma de honestidade desnecessária. Uma renúncia a participar no saque do mundo, é isso a pobreza para mim. Talvez não por bondade ou por ética ou por um qualquer ideal elevado, mas por incompetência na hora de saquear.
Nem o meu pai nem eu saqueámos o mundo. Fomos, nesse sentido, frades de uma qualquer ordem mendicante desconhecida
Manuel Vilas

Plágios e fakes

Numa conversa com James Whistler, Oscar Wilde confessou que gostaria de ter dito uma certa frase. Whistler, conhecendo o amigo, lhe consolou: “Vai dizer, Oscar. Você vai dizer”. Em alguns casos, temos só acidente. Por exemplo jornais atribuem, a Edmar Bacha, a frase “O câmbio foi feito por Deus para humilhar os economistas”. Como ele próprio. Inútil insistir não ser o autor. E nem é sua primeira vez com problemas assim. Antes escreveu, no Jornal do Brasil, que “Recessão é quando sobra cada vez mais dias no fim do salário”. Millor reivindicou a autoria. E Bacha, com o bom humor de sempre, acabou propondo variante para sua máxima: “Recessão é quando sobra cada vez mais plágio no fim da originalidade”.


Millor também foi telhado. Começou coluna, em Veja, dizendo: “Uma coincidência saiu a passeio. E encontrou uma explicação. Uma velha explicação. Uma explicação tão velha que mais parecia uma charada”. No dia seguinte lhe mandei cópia da primeira frase de "Silvie and Bruno", romance de Conan Doyle. Junto, uma observação: “Como Doyle nasceu em 1859, de quem será essa frase?”. Resposta engraçada: “Dele, claro. Pior é que uso faz mais de 30 anos. E até considero uma das minhas melhores”. Prima do plágio é o fake. Como um poema lastimável ("Depois de Tudo") que circula, na internet: “De tudo ficaram três coisas/ A certeza de que estamos sempre a recomeçar/ A certeza de que é preciso continuar/ A certeza do que podemos ser interrompidos antes de terminar” – e por aí vai, em autoajuda piegas. Com foto do suposto autor, Fernando Pessoa. Que deve estar se rebolando, indignado, no mausoléu dos Jerônimos. Para sua sorte é de outro Fernando. O Sabino. E está em seu livro "Encontro Marcado". Ainda bem.

Outro fake foi esclarecido, agora, pelo querido Cristovam Buarque. Ao lembrar que esse horror do "Gabinete do Ódio" nasceu, no “Governo Lula, dos radicais a serviço do PT”. Sendo, ele, uma das primeiras vítimas. Depois de votar pelo impeachment de Dilma, passou a receber ácidas e mal-educadas críticas de amigos e desconhecidos. Até suas netas sofreram, na escola, com cartazes dizendo “Seu avô é golpista”. Nosso governo de hoje está se especializando em copiar o pior dos que vieram antes. Tanto que, em 08/07, Facebook e Instagram cancelaram “uma rede de contas e páginas do PSL”. E WhatsApp antes, em 25/6, também 10 do PT. Pagas com grana da cota parlamentar de Gleisi Hoffman, presidente do partido. Dinheiro de nossos impostos a serviço do mal. Só mesmo rindo. Para encerrar lembro Lavoisier, autor da famosa "Lei da Conservação da Matéria" que disse: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Só para ver adaptada, por Chacrinha, em mistura de plágio e fake: “Na televisão, nada se cria, tudo se copia”. E na política também, é o que parece.

Os vivos e os mortos

Mais de cem mil mortos. Como uma bomba atômica, em Hiroshima. Não são mera estatística. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas, dizem os médicos. Não se trata então de mortes, e sim de crimes. Há responsáveis que um dia terão que responder por elas. Eles sabem o que fizeram. Ninguém fala pelos mortos, eles falam por si. Resta saber quem vai ouvi-los.

Convivemos com o horror esterilizado em estatísticas diárias, mesmo se a mídia combate a epidemia com informação e mantém viva a indignação. Todos perdemos a existência real, não só os mortos transformados em números e enterrados em covas rasas.

Também os sobreviventes, uma população incorpórea, bustos que se encontram no zoom encenando uma falsa normalidade. Essa vida imaterial cria uma distância entre nós e a realidade, improviso de sobrevivência que, por um lado, nos salva, uma salvação precária que logo se esfuma, por outro, amplia a dor da perda do convívio e a nostalgia do momento em que, passado o perigo, reencarnados, cairemos nos braços uns dos outros.


O preço da sobrevivência será nunca mais escamotear a existência da morte, assim como a urgência e o valor da vida. Ninguém sairá ileso desse mundo virado pelo avesso. Cem mil mortos marcam para sempre a história de um país como a sua maior tragédia e, como uma cicatriz, as gerações que estão vivendo esse pesadelo. A menos que tenhamos nos transformados todos em robôs de nós mesmos.

Não podemos mais ser quem éramos e, ainda não podendo ser outra pessoa, hoje habitamos uma terra de ninguém. Vai passar, sairemos desse território psíquico inóspito.

No fim do túnel brilha uma vacina. Essa promessa pede resiliência e cuidados redobrados. É o mínimo que devemos aos cientistas. Não vamos morrer na praia. A ciência, ao contrário das religiões que se apoiam em dogmas e certezas, trabalha com autocorreção, ensaio e erro — exceto, é claro, na Rússia que faz milagres — e assim progride. Seus tempos não são os das nossas urgências. Que sejam então os das nossas esperanças.

O exemplo de Moçambique

Regressei a Moçambique na semana passada. Foi a primeira viagem longa que fiz após o início da pandemia. Em Lisboa, o aeroporto funcionava normalmente, com muita gente circulando, as lojas abertas, os restaurantes servindo refeições rápidas. No chek in pediram-me uma autorização do Ministério do Interior de Moçambique, mas não o teste ao Covid-19, que eu fizera dois dias antes, e que, felizmente, deu negativo.

O voo de dez horas decorreu sem o menor incidente, com os passageiros respeitando as orientações da tripulação — manter a máscara e nunca sair do lugar, excepto para ir ao banheiro.



Contudo, assim que abriram as portas começou o tormento. Ao invés das mangas de acesso, que nos deveriam conduzir aos salões confortáveis do aeroporto, fomos recebidos na placa, sob um vento gelado, por dezenas de “astronautas”, vestidos de plástico branco da cabeça aos pés. Os “astronautas” separaram os passageiros: os que já tinham feito o teste avançaram mais alguns metros; os restantes foram deixados para trás, entregues à fúria da intempérie. Tive de explicar várias vezes os motivos da minha visita, mostrar o teste, as cartas e as autorizações, medir a temperatura corporal e preencher diversos formulários antes de, finalmente, alcançar a última das fronteiras, conseguir um carimbo no passaporte e entrar oficialmente no país.

Nas ruas de Maputo testemunhei o rigor com que os moçambicanos encaram a epidemia. Há cartazes por toda a parte, alertando para as medidas de higiene necessárias para travar o avanço do vírus. Nas rádios, os apelos são constantes. A maioria das pessoas que circulam nas ruas usam máscara. Algumas destas máscaras, produzidas com tecidos africanos (capulanas) são espantosamente bonitas, tão elegantes que parece terem feito parte, desde sempre, da indumentária local. Comecei a colecioná-las esperando que, num futuro próximo, possam servir de testemunho, raro e estranhamente harmonioso, de um tempo sombrio. Vejo nas máscaras de capulana uma metáfora perfeita para o espírito de resistência dos africanos: a demonstração de que é possível transformar em beleza até a pior das tragédias.

Em Moçambique, país com 30 milhões de habitantes, morreram até ao momento em que escrevo esta coluna 17 pessoas por covid-19. A vizinha África do Sul, com 57 milhões de habitantes, já conta mais de dez mil mortos.

As rápidas medidas de contenção, incluindo o fechamento das fronteiras, explicam, em parte, o sucesso de Moçambique no combate à pandemia. O povo moçambicano vem cumprindo as instruções do governo com a famosa “disciplina revolucionária” instituída nos primeiros anos após a independência. Em todas as lojas, mesmo nas mais humildes, os clientes são convidados a lavar as mãos com álcool-gel. Nas estradas, à entrada de cada província, há brigadas responsáveis pela lavagem dos veículos. Os passageiros têm de sair do carro para medir a temperatura e lavar as mãos.

Ao mesmo tempo, Moçambique optou por não impor regime de lockdown. O comércio nunca fechou as portas, e os mercados ao ar livre continuam tão animados e coloridos como antes do fim do mundo. É um modelo que tem permitido conter a pandemia sem castigar demasiado uma população já muito sofrida. Até agora está dando certo.