terça-feira, 27 de abril de 2021

Em busca do ouro

Uma das afirmativas do presidente Jair Bolsonaro na conferência do clima foi a de “eliminar o desmatamento ilegal da Amazônia até 2030”. O combate às práticas ilícitas na região incluem as queimadas e o garimpo. A intenção presidencial foi considerada “encorajadora” pelo presidente Joe Biden, e “construtiva” por John Kerry, mas ambos dizem aguardar medidas concretas e “sólidas” nesse sentido.

O governo Bolsonaro poderia iniciar o cumprimento dessa promessa com ações para reprimir a exploração de ouro e diamantes, uma das atividades mais lucrativas e que mais prejuízos trazem à floresta e às comunidades indígenas. A busca pelo ouro na Amazônia está enraizada em práticas ilegais, que hoje respondem por cerca de 16% da produção do País, com a extração em áreas proibidas e sem nenhum tipo de controle. Essa ilegalidade pode ser muito maior, já que não há como contabilizá-la com exatidão. Cerca de 320 pontos de mineração ilegal foram identificados em nove Estados da região. A área para a pesquisa de ouro já ocupa 2,4 milhões de hectares. Desde 2018 houve um aumento no número de solicitações nesses territórios, com um recorde de 31 registros em 2020.


Em unidades de conservação, os pedidos para a pesquisa de ouro já ocupam 3,8 milhões de hectares. No total são 85 territórios indígenas afetados pelos pedidos de pesquisa para o ouro e 64 unidades de conservação. Só na Terra Indígena Yanomami, entre os Estados do Amazonas e de Roraima, são 749 mil hectares sob registro. Na Terra Indígena Baú, no Pará, a segunda em extensão de processos, 471 mil hectares estão registrados, ocupando um quarto de seu território.

Os municípios da Amazônia Legal arrecadaram em 2020, pela extração de ouro, 60% mais do que em todo o ano de 2019 e 18 vezes acima do valor registrado há dez anos. Em Rondônia acaba de ser aprovada lei que legaliza 200 mil hectares de terras griladas em duas unidades de conservação, Jaci-Paraná e Guajará-Mirim.

Os Institutos Escolhas e Igarapé acabam de divulgar importantes estudos sobre a exploração do ouro na Amazônia. Os resultados desses trabalhos mostram corrupção, desmatamento, violência, contaminação de rios e destruição de vidas, sobretudo de populações indígenas. A extração desses minérios não é capaz de transformar a realidade local no longo prazo e manterá a região pobre, doente e sem educação. Ao não trazer desenvolvimento econômico, a exploração de ouro e diamantes abre a discussão sobre as alternativas econômicas que poderiam gerar riqueza e bem-estar duradouros.

O trabalho do Escolhas foi enviado à Comissão de Valores Mobiliários e ao Banco Central, que lançou um conjunto de ações de responsabilidade socioambiental, para responder à pressão de investidores e instituições financeiras no Brasil e no exterior por incentivos que favoreçam negócios sustentáveis e combatam o desmatamento. Esse compromisso do setor financeiro nacional pode ajudar a limpar o setor de mineração de ouro no Brasil e fazer que esse metal ilegal não consiga ingressar no mercado. Exigir lastro de origem legal e de conformidade ambiental é um imperativo constitucional e deve ser um compromisso ético e moral do setor financeiro nacional.

De acordo com a Constituição federal, pelos artigos 176 e 231, a mineração em terras indígenas só pode ser feita mediante lei do Congresso Nacional e com consulta às comunidades, mas hoje não existe legislação que regulamente a atividade dentro dos territórios. Por iniciativa do senador Fabiano Contarato, o Projeto de Lei 836/2021 prevê a criação de um sistema de validação eletrônica para comprovar a origem do ouro adquirido pelas instituições financeiras e permitirá o cruzamento de informações com outras bases de dados, como a de arrecadação de impostos e de produção da Agência Nacional de Mineração (ANM). Pretende-se que, para efetivar a transação, seja exigida a comprovação de que o ouro tenha sido extraído de área com direito de lavra concedido pela ANM e que a pessoa física ou jurídica que estiver fazendo a comercialização seja titular do direito de lavra ou portadora de contrato com quem tenha esse direito. Além disso, o vendedor terá de apresentar a licença ambiental da área.

A criação de um marco de controle sobre a atividade de exploração de ouro ganha ainda mais urgência quando se observam tentativas de regulação da atividade contrárias à Constituição, como é o caso da Lei 1.453, de 8 de fevereiro de 2021, sobre o licenciamento para a atividade de lavra garimpeira no Estado de Roraima, ou a aprovada em Rondônia. A norma estadual dispensa a apresentação do estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima), em violação de preceitos constitucionais (artigos 23, 24, 223), para favorecer a continuidade das atuais práticas danosas à sociedade, aos povos indígenas e ao meio ambiente em geral.

O Brasil tornou-se o centro das ramificações criminosas e das facilidades da lavagem de dinheiro com o ouro ilegal. As terras indígenas e as unidades de conservação na Amazônia Legal estão ameaçadas pela busca do ouro, apesar de a atividade ser proibida. O ilícito na Amazônia tem de ser coibido pelos governos federal e estadual e o Congresso tem de fazer a sua parte.

Bolsonaro pisa no barro

Uma pintura de Hendrick Pot, de 1640, mostra as deusas das flores passeando com bêbados que pesam dinheiro, seguidas por uma multidão louca para ficar com o grupo. É a representação do “efeito manada”, que o pintor flamenco captou durante a “tulipomania” holandesa ocorrida naquele ano. Essa foi uma das primeiras bolhas econômicas de que se tem conhecimento nas economias capitalistas, estudada por Charles Mackay, em 1841 (Ilusões populares e a loucura das massas, Faro Editorial). Foi o primeiro a tratar do assunto.

As tulipas de Constantinopla se tornaram populares na Alemanha e, principalmente, na Holanda, no começo do século 17. Provocaram uma febre em Amsterdã, onde eram muito apreciadas pela classe média, como acontece hoje em dia com as orquídeas. As espécies raras chegaram a ser negociadas na Bolsa, mas quando os ricos cansaram das tulipas exóticas nos arranjos florais e jardins, seu efeito na classe média passou, e os que investiram suas economias no seu cultivo foram à breca. Desde então, periodicamente, o fenômeno se repete na economia, sendo inúmeros os estudos sobre isso.


O “efeito manada” também ocorre na política. Gera a formação de bolhas de opinião cristalizadas, que hoje se propagam mais rapidamente, por causa das redes sociais. Na pandemia de covid-19, por exemplo, a automedicação em massa com o uso continuado e indiscriminado de ivectromicina, hidroxcloroquina e anticoagulantes é um “efeito manada”. O principal beneficiário dessa bolha é o presidente Jair Bolsonaro, que virou garoto propaganda desses medicamentos, e os utiliza como uma espécie de “vacina” contra as acusações de ser responsável pela falta de controle sobre a epidemia de covid-19 e a morte das pessoas, além da falta de vacinas propriamente ditas.

Na sexta-feira, o país havia registrado 2.866 mortes pela covid-19, nas últimas 24 horas, e 386.623 óbitos, desde o início da pandemia. O grande número de mortes por covid-19 derreteu a aprovação do governo e confinou o presidente Bolsonaro à bolha de apoiadores fanatizados que mantém nas redes sociais. O que pode reverter essa tendência de queda acelerada é o controle da pandemia, que dá sinais de queda neste fim de mês. Na sexta-feira, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos sete dias era de 2.514. As medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos funcionaram: a variação foi de -17%. Foi a maior queda desde 11 de novembro, quando a média móvel de mortes apresentou queda de -27%.

Bolsonaro é contra as medidas restritivas, mas delas está se beneficiando também, por uma dessas ironias da política. Não por acaso, na sexta-feira passada, desembarcou em Manaus, para inaugurar um centro de convenções, participar de uma reunião com grupos de evangélicos e distribuir cestas básicas. Foi a primeira vez, desde o começo da pandemia, que visitou a cidade. A capital do Amazonas já foi o epicentro da covid-19 por duas vezes: no começo da pandemia, em 2020, quando os hospitais e cemitérios colapsaram; e, em janeiro passado, quando faltou oxigênio nas UTIs. Em nenhuma delas o presidente da República deu o ar da graça; ao contrário, manteve-se distante, encastelado no negacionismo que o levou a ter quatro ministros da Saúde.

Responsável pelo grande atraso na vacinação em massa da população, Bolsonaro apostou na “imunização de rebanho”, na qual os mais fortes e os que fizerem o chamado “tratamento precoce” sobreviveriam, e na resiliência ideológica de sua base eleitoral, cujo núcleo mais combativo é formado por corporações embrutecidas pelas atividades que exercem e grupos de extrema direita, além DS maioria dos evangélicos. Ontem, como em todo fim de semana, passeou por Brasilia: fez um tour sem máscara por Ceilândia, um reduto nordestino com 400 mil habitantes, e Sol Nascente, que disputa com a Rocinha a condição de maior favela do Brasil.

Como sempre, provocou aglomerações, indiferente aos riscos de transmissão da covid-19. Daqui para a frente, tentará permanecer “na rua”. O presidente da República “pisa no barro”, como se diz no jargão político. Está em campanha para a reeleição. Bolsonaro aposta na resiliência de sua base e no “efeito manada” da radicalização ideológica que promove, anabolizado pelas redes sociais, para se reeleger. Toda a estratégia eleitoral de Bolsonaro está focada na utilização dos meios de que dispõe no governo federal, com objetivo de ter um lugar garantido no segundo turno das eleições de 2022.

Pensamento do Dia

 


Há dois mundos sob Bolsonaro:o dele e o nosso

Como se sabe, Bolsonaro abdicou da prerrogativa de presidir a crise sanitária. Optou por exercer na pandemia não o papel de presidente, mas o de estorvo. Essa decisão criou dois mundos: o dele e o nosso.

No mundo dele, a pandemia era uma "gripezinha" que estava no "finzinho". E a segunda onda não passava de "conversinha". No nosso mundo, a realidade não deixa de existir porque Bolsonaro a ignora.

No mundo dele, as Forças Armadas irão às ruas se houver o "caos". No nosso mundo, os militares estão abraçados à Constituição e o caos é ultrapassado diariamente pela elevação da pilha humana prestes a bater a marca de 400 mil cadáveres.


No mundo dele, há um capitão expurgado do Exército por indisciplina brincando de Forças Armadas para animar seus seguidores nas redes sociais. No nosso mundo, há um Bolsonaro apavorado com uma CPI, que já não tem certeza se as pessoas o seguem ou perseguem.

No mundo dele, há no Planalto uma vítima de governadores e prefeitos que trancam as ruas em casa e passam a chave no comércio para derrubar a economia e o presidente da República. No nosso mundo, há estados e municípios compelidos pelo vírus a trocar medidas restritivas pela abertura de vagas nas UTIs.

No mundo dele, há um presidente que oferece ao universo exemplo de como lidar com a pandemia. No nosso mundo, há uma hedionda escassez de vacinas e uma criminosa sobra de cloroquina.

No mundo dele, há um contrato de escambo com o centrão. Prevê a troca do engavetamento do impeachment pela chave do cofre. No nosso mundo, há o desgoverno.

No mundo dele, há uma língua que fala dez vezes antes de encontrar um cérebro capaz de domá-la. No nosso mundo, há um país de saco cheio.

A ave na Ilha

O canto é o mesmo de manhã, de tarde e, às vezes, à noite também. Um baixo de tecla preta e duas notas altas, se não me engano uma atrás da outra, bem claras e pousadas. Ela não é lá muito de aparecer, mas também não vive se escondendo de propósito. Poucas pessoas veem constantemente a ave porque ela costuma frequentar o pico das árvores mais altas e secas de uma região tão verde, de vastos palmares sempre ao vento.

Quando ecoa seu canto tão simples quanto de usura, devem estar todos trabalhando; ou então descansando do trabalho, num justo e alheio fim de semana. Ninguém se lembra de vigiá-la. Mesmo porque, todo mundo sabe, no fim da tarde a ave fará, com sua companheira, um voo baixo pelo lugar em que nos encontramos, seja ele qual for, suando certamente sob o sol, doidos para que o dia termine logo e bem. Nunca vi um sol se pôr tão devagar.


A ave voa sem pompa, um mergulho que ela deseja solene mas é apenas um mergulho no ar abafado, como minha prima adolescente costuma fazer quando aparece por aqui para visitar o fundo do oceano nas costas da Ilha, costas largas e rochosas, em que acaba por não recolher rigorosamente nada. A não ser aquele misterioso sorriso de quem viu a Terra nascendo.

A ave nunca pousa, não é para isso que ela voa. Pode até passar de novo diante de nossos narizes, mas não espere saudação ou homenagens, será apenas para cumprir sua sina de mais um mergulho na falta de ar, que ela passa a vida aperfeiçoando. Nem cantará — a ave não é um passarinho para ficar por aí a encher nossos ouvidos de chilreios, trinados e sussurros, em notas musicais desconexas, sem grandeza ou conveniente harmonia. A ave é uma ave, passarinho é outra coisa.

A Ilha da ave nunca foi dela. Foi “descoberta” pelos ingleses que chegaram lá antes dos espanhóis, franceses, holandeses ou portugueses, gente que também andava pela vizinhança. Os ingleses eram tão poucos e precisavam trabalhar tanto que tiveram que inventar a escravidão para povoar e cultivar a Ilha. Traziam de África um povo bonito, que não se deixava misturar. Ou eram eles mesmos que, morrendo de ciúmes do que não podiam tocar, proibiam qualquer intimidade.

(Hoje são 85% de afrodescendentes que trabalham no que der. Jardineiros de piscinas plantando enfeites naturais em torno delas, por exemplo. Gente que inventa uma língua do inglês, para que ninguém tome conhecimento de seus sonhos. Na Ilha, são apenas 12% de eurodescendentes, empresários e burocratas muito brancos, os que têm direito a histórias do passado. Bem, deve ter algum brasileiro no meio dos 3% que restam. Um de família pernambucana que iludiu a Inquisição; outro, um bisneto de bandeirante que fez de escravos os índios locais). De índios locais, aliás, nunca ouvi falar nesses dias na Ilha, ouvindo o canto irritado da ave.

Quando a ave não tem mais para quem cantar ou à frente de que gosto voar, parte ao fundo da Ilha, se exibe frenética diante dos animais domésticos. A garupa da vaca era palustre e bela, não era para ser ocupada por um animal qualquer com penas de mata noturna. Mesmo sem a noite, nada brilha em suas asas desbotadas. Nem seu canto, que já não surpreende mais. A ave, às vezes, muda as notas selecionadas, faz sumir o baixo da tecla preta e espera, decide esperar. Mais ninguém se importa quando o negro corvo canta sua melodia fraturada, um esforço de três notas que ninguém precisa ouvir. O corvo era somente um corvo, nada mais.

A 'sinalização do povo'

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, disse o presidente da República na cidade de Itapira, em agosto de 2019. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal [sic] fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afiançou ele, na segunda quinzena de abril de 2021, também em Brasília.

Não é a linha de continuidade entre essas três afirmações, pronunciadas no período de um ano e oito meses, que chama atenção. É, isto sim, o enviesamento político e antidemocrático subjacente a elas. Afinal, respeitar as instituições não é concessão, como reitera Bolsonaro. É, também, uma obrigação prevista pela Constituição que ele solenemente jurou respeitar ao assumir o cargo. Além disso, a lealdade de que fala não tem de ser devida apenas ao “pessoal” (ou seja, a turma dos cercadinhos) ou ao “povo” (um conceito amorfo), mas à democracia, a suas instituições e suas regras. Como se não bastasse, ao personificar a Constituição, incorporando a normatividade desta em si próprio, como se suas opiniões a respeito do texto constitucional tivessem força de lei, o presidente erode a força normativa da Carta Magna, na qual se baseia o regime democrático. Por fim, quando diz que está esperando uma sinalização do “pessoal”, Bolsonaro se esquece de que, na democracia representativa, tal sinalização é dada formalmente em eleições livres e periódicas disputadas por candidatos devidamente registrados e homologados pela Justiça eleitoral.


As três falas, portanto, não têm fundamento jurídico nem legitimidade política, uma vez que entreabrem um desprezo às instituições e afronta ao império da lei, confundindo o que são simples palavras de ordem de apoiadores com o interesse geral da sociedade. Perigosa do ponto de vista da ordem constitucional, essa é estratégia de Bolsonaro para corroê-la, submetendo-a a sucessivos testes de estresse. Quando afronta o Poder Judiciário e exige que ministros do Supremo Tribunal Federal sejam objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito do Legislativo, ele sabe o que faz. Quer, deliberadamente, gerar tensões institucionais para aproveitar a insegurança e uma eventual desordem com o objetivo de se apresentar como o único homem capaz de restabelecer a ordem — e de modo voluntarista, sem estar sujeito a qualquer lei e à própria Carta Magna.

Não há coerência, mas somente um torpe maquiavelismo de almanaque e uma vocação despótica — numa única palavra, embuste. Quando assina decretos para tratar de matérias que só podem ser disciplinadas por projetos de lei ou quando edita medidas provisórias que não atendem aos requisitos de relevância e urgência, Bolsonaro também segue um script conhecido. Ao ultrapassar deliberadamente os limites do processo legislativo estabelecidos pela Constituição, o presidente sabe que esses decretos e MPs serão derrubados pelo Supremo Tribunal Federal. É justamente o que deseja — um pretexto para alegar que a corte não o deixa governar e que somente conseguirá gerir o país sem ela, situando-se assim acima das leis. Como consequência, o “pessoal” é estimulado então a bater bumbo na Praça dos Três Poderes ou na frente do Quartel General do Exército, pedindo um ato institucional que suprima direitos e garantias fundamentais, como ocorreu em 1968.

Todas as vezes em que fala que a Constituição lhe confere o título de “comandante em chefe” e lhe atribui a prerrogativa de decretar estado de sítio ou estado de defesa, Bolsonaro a interpreta conforme suas conveniências mais imediatas. No caso do estado de defesa e do estado de sitio, por exemplo, ele releva que ambos somente podem ser decretados com aval do Congresso. Quando o Supremo Tribunal Federal aplica uma norma constitucional detendo suas iniciativas autocráticas, ele não apenas o afronta, mais vai além, desdenhando da tripartição dos Poderes.

Também aplaude os áulicos de seu entorno que afirmam que o Poder Judiciário deve “compreender o tamanho de sua cadeira”. Esquecem-se, contudo, de duas regras constitucionais básicas. Em primeiro lugar, os tribunais só podem agir quando provocados. E, em segundo lugar, não podem deixar qualquer provocação sem resposta. No mesmo sentido, o presidente não entende que as razões de decidir de uma corte suprema não se confundem com as razões de decidir de uma casa legislativa ou de um governo. Com isso, despreza o fato de que julgamentos são realizados com base em normas jurídicas constitucionais ou infraconstitucionais, e não em fatores conjunturais, resultados acordados e alianças que se fazem e desfazem ao sabor de concessões, vantagens pessoais ou mesmo de intimidações. Todavia, quando a mesma corte aplica uma norma constitucional dando ganho de causa a ele, a narrativa de que a Justiça está tomando decisões que seriam próprias de outros Poderes e de que os juízes deveriam “entender suas responsabilidades” é convenientemente engavetada.

Em seus discursos, como o de Itapira, em agosto de 2019, e os de Brasília, em 2020 e 2021, o presidente ignorou a divisão de direitos e de competências assegurada pela Constituição. Trata-se de um mecanismo que, se por um lado libera os conflitos com todas suas contradições e dilemas, por outro viabiliza um entendimento que lima arestas e abre caminho para a construção de soluções politicamente negociadas no âmbito do Executivo ou do Legislativo.

Bolsonaro e seu entorno não entendem que a democracia é método e procedimento de negociação, gestão de conflitos e de neutralização de tensões institucionais. Igualmente, não compreendem que, ao demarcar direitos e deveres, a ordem constitucional baliza um exercício consequente e equilibrado da palavra e da ação no espaço público. Decorrem daí as bobagens que falam. Ao refutarem o entendimento do Supremo de que a regra de maioria fundamenta o regime democrático ao mesmo tempo em que garante o direito das minorias, o presidente e seu entorno enfatizam a necessidade de respeitar o “projeto de Nação” endossado pelos eleitores em 2018 — projeto esse que afronta abertamente as minorias e recorre à Lei de Segurança Nacional da ditadura militar para processar críticos e intimidar opositores.

Na realidade, ao alegar que só é “leal ao povo”, ainda que respeite as instituições, Bolsonaro está defendendo uma retração na capacidade configuradora da democracia. Falta-lhe formação histórica para atinar que as transformações estruturais da sociedade podem ser feitas de modo mais eficiente por meio de diálogos e compromissos do que pela força bruta. Desse modo, ele acaba desprezando o fato de que, no regime democrático, soberania não se expressa por meio de plebiscitos ou consultas populares, mas pressupõe uma contínua construção coletiva com base no diálogo.

Na dinâmica do jogo político, o presidente continua confundindo adversários com inimigos. Adversários contrapõem-se politicamente, mas respeitam o princípio da alteridade. Ou seja, sabem não apenas se colocar no lugar dos outros, mas, também, entendem que existem situações-limite — aquelas para além das quais as regras do jogo implodiriam com prejuízo para todos. Na visão bolsonarista, há uma simples caricatura do que dizia um dos juristas do regime nazista, o constitucionalista Carl Schmitt (1888-1985): quem não é amigo é inimigo; por isso, se o amigo não destruir o inimigo, corre o risco de ser destruído por ele. Nesse caso, não há jogo político, só há violência física, que leva a atentados e assassinatos. Ou, então, a violência simbólica, por meio do discurso do ódio, da difamação, da mentira como estratégia de destruição de reputações implementada com base nas redes sociais.

Em 2019, ano em que fez o discurso de Itapira, dizendo que respeita a democracia, mas só obedece ao povo, o saldo foi de desesperança e medo. Em 2021, embora ainda estejamos em pouco mais da metade do primeiro semestre, tudo indica que, após a fala de Bolsonaro no sentido de que “aguarda uma sinalização do povo para tomar uma providência”, esse saldo pode ser ainda mais trágico.