segunda-feira, 1 de julho de 2019

Brasil vai mudar!


Cuidado com Moro, capitão!

O ex-juiz Sérgio Moro ameaça tomar do presidente Jair Bolsonaro a posição de o maior líder da direita brasileira neste momento. As manifestações de ruas, ontem, em pelo menos 70 cidades do país, mostraram que organizações de direita de todas as tendências foram capazes de se unir em defesa de Moro, mas já não se unem com tanto entusiasmo em defesa de Bolsonaro e do seu governo.

Pixulecos, faixas, cartazes e discursos traíram a escalada do tom raivoso dos protestos. Os alvos preferidos foram o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a imprensa e, naturalmente, o PT que não poderia ter ficado de fora. Pela primeira vez desde a posse de Bolsonaro, um ministro de Estado, o general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, discursou para a multidão.


E o que ele falou, com pequenas diferenças aqui e ali, foi o que se ouviu em São Paulo, no Rio e em outras grandes cidades. Recém-chegado do Japão, onde participou da reunião da cúpula das 20 maiores economias do mundo, Bolsonaro disse no Twitter o que até Lula pensaria melhor antes de dizer: “Respeito todas as instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade".

Populismo em grau puríssimo? Nada estranho. No último sábado dia 15, em uma celebração militar no Rio Grande do Sul, Bolsonaro já afirmara que “mais do que o Parlamento”, precisa do povo ao seu lado para “impor uma política que reflita em paz e alegria” E pregou que a população se arme não só para se defender, mas para evitar que grupos radicais voltem a assumir o poder.

O general-agitador foi mais brando do que o capitão. Segundo ele, com o objetivo de libertar “um bando de canalhas”, tenta-se pôr Moro contra a parede, o que seria uma “calhordice”. Ao seu lado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o Zero Três, aproveitou para provocar a turba: "Alguém aí gosta de bandido, alguém aqui é amigo de bandido? Bolsonaro já disse que Moro não sai”.

O destino do ex-juiz não está nas mãos do capitão. Por ora, Bolsonaro segue sem poder demiti-lo mesmo que quisesse. O ex-juiz virou político. E é mais popular do que o capitão. O destino de Moro também não está nas mãos dos seus milhões de seguidores. Depende mais do que venha a ser revelado por suas conversas travadas com procuradores da Lava Jato para condenar Lula.

A política do confronto permanente deu mais uma prova de que subiu a rampa do Palácio do Planalto no dia em que Bolsonaro por ali passou pela primeira vez, e que só a descerá no dia em que ele a descer pelo bem ou pelo mal. Pelo bem, para dar lugar a um novo presidente legitimamente eleito. Pelo mal, por meio de um impeachment caso seu governo desmorone antes de chegar ao fim.

'Esquecimento'



O mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu
José Saramago

A festa do estado-espetáculo

Há, na sociologia política, uma hipótese que pode explicar certos fenômenos sobre o estado d’alma da população. A sobrecarga das demandas sociais aumenta as frustrações com o poder público, levando grupos a procurar uma recompensa psicológica. Imensos contingentes nacionais são atraídos por eventos diversionistas, que funcionam como compensação em momentos de crise.

É jogar na loto, ir aos estádios de futebol ou mesmo rir com programas populares na TV. Os olimpianos, perfis que o sociólogo Edgar Morin descreve como figurantes do topo da cultura de massas, chamam a atenção, abrem portas da esperança, “inventam milagres” em templos suntuosos, acenam para a plateia, encarnam o perfil de xerifes contra a corrupção e capricham na imagem de heróis “salvadores da Pátria”.


Quanto menos grana no bolso, maior o sucesso desses personagens: artistas de novelas, bispos reunindo multidões, jogadores (as) de futebol, juízes, ex-juízes, procuradores e até políticos de visibilidade midiática etc.

À fragilidade do Estado contrapõe-se o Estado das Estrelas Individuais, com seu teatro, promessas e elementos ficcionais. E o que está por trás disso? Entre outros fatores, instituições frágeis, conteúdos sociais amorfos, banalização da violência, descrença na política e na justiça, carência de cidadania, um conjunto festejado pela mídia. São visíveis os sintomas da crise, da deterioração de programas sociais nos capítulos da segurança, educação, saúde e habitação. A polícia não cumpre seu papel de preservar a ordem. Exércitos privados se multiplicam. A marginália cresce e o medo se espraia.

Nesse vazio, abrem-se espaços para mecanismos catárticos. A “marcha para Jesus” e a Parada Gay são exemplos de eventos de grande mobilização. De um lado, o encontro místico, de outro, a liberação de identidades. Ninguém grava o que se ouviu nos palanques, mas a estética dos espetáculos (o meio é a mensagem, McLuhan) é a própria mensagem. Todos se recordam das cenas. O efeito teatral sobre milhares de pessoas e a alienação cívica são provocados por esses ritos, signos e ensaios coletivos.

A liturgia do evangelismo cria animação social, coisa típica do Estado-Espetáculo, maneira de jogar o anzol para “pescar” a fé de multidões. A estampa dos credos nada mais é que retrato acabado de um tempo em que o essencial cede lugar ao acessório.

O resultado é a dormência da cidadania. Cidadão que vive na ficção transforma versão em verdade e o meio em fim. Sem serviços essenciais básicos eficientes, as pessoas se fragilizam, perdem autonomia. Rebanhos famintos à procura de pasto, sem noção de direitos.

O debate das ideias dá lugar ao ludismo. Líderes das massas já não são figuras política portando valores essenciais, como decência, respeitabilidade, honra, moral, ética, compromisso. Esse acervo se perdeu. O que vemos hoje são atores expressando promessas de salvação, elementos canhestros dramatizando o cotidiano, ancorando-se na miséria para aumentar seus cofres.

Paisagem social lúgubre. Remete-nos ao poeta Manuel Bandeira, que assim cantava: “que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que vejo é o beco”.
Gaudêncio Torquato

Um governo que namora com a morte

Acabara de escrever um artigo sobre esses estranhos seis meses em que o Brasil é conduzido pela direita. Pensei em mudar de assunto, mas surgiu a notícia da prisão de um sargento da Aeronáutica em Sevilha.

Trinta e nove quilos de cocaína num avião de apoio à comitiva presidencial. Segundo os jornais, o sargento Manoel Silva Rodrigues fez várias viagens oficiais, inclusive com outros presidentes. Aparentemente, era uma prática antiga. Mas foi descoberta na viagem de Bolsonaro. Isso significa um arranhão em sua imagem internacional. É inevitável.

Internamente, a repercussão num país polarizado transforma-se logo numa troca de acusações que dificulta uma abordagem mais séria do problema. Sem dúvida, por partir também de um ministro da Educação, a frase de Abraham Weintraub foi a mais infeliz. Ele sugere que os aviões de Dilma e Lula eram mais pesados.


Além de não se basear em nenhuma evidência (portanto, uma acusação falsa), Weintraub passa uma terrível impressão ao mundo exterior. Um ministro sugere que os aviões do passado levavam mais cocaína, e o Brasil conseguiu reduzir a carga para 39 quilos. Uma ética medida em peso.

Tudo isso acontece no momento em que Bolsonaro, à frente de uma política ambiental desastrosa, afirma que o Brasil pode dar lições à Alemanha.

Nós sabemos que Bolsonaro ignora os esforços que a Alemanha faz nesse campo, seu avanço tecnológico, e jamais visitou as florestas do país. Mas e os outros, o que pensarão dessa abordagem agressiva e tosca? Num tema que obriga à cooperação, internacional, Bolsonaro quer competir.

Na conclusão do artigo em que analisava alguns pontos dos seis meses de governo, afirmei que Bolsonaro está inspirando uma oposição que envolve mais que a democracia. Uma frente pela vida.

As pesquisas já indicam como o capital político de Bolsonaro escorre pelos dedos. Ele está longe de perceber como a extrema direita é minoritária.

No momento, sua agenda espontânea já indica uma linha condutora. É um flerte com a morte: das armas ao agrotóxicos, estradas sem radares, leis mais frouxas no trânsito.

Na Espanha da Guerra Civil, os adeptos de Franco expressavam essa tendência de uma forma mais nítida: “Viva la muerte.”

É uma luta inglória, um programa sob o signo de Tânatos. Suas manifestações não se limitam à destruição das espécies. Mas também da diversidade humana.

Na Rio-92 houve dois focos: a defesa da diversidade das espécies e, num outro palco, da diversidade cultural. São interligadas.

Para completar a semana, a notícia de que, recuando de nossas posições internacionais, o Brasil deixa de reconhecer as pessoas que se sentem mulheres, apesar do órgão sexual masculino, ou homens, apesar do órgão feminino. É uma visão de mundo que despreza a felicidade humana em nome de suas rígidas regras de vida.

Nosso consolo é que Tânatos, o deus da morte, inspira apenas uma política de governo. A sociedade é cheia de vida, diversa; dentro das limitações, centenas de experiências ambientais se desenvolvem no Brasil.

De fato, temos uma grande floresta em pé, por razões históricas e econômicas. Parte da destruição de nossas matas conseguimos conter com a legislação. Isso talvez seja uma conquista.

Bolsonaro deveria se lembrar de que foi contra muitas dessas leis. Participei delas, sinto desapontá-lo: em vários temas, nos inspiramos na Alemanha e outros países europeus aos quais ele quer dar lições.

Finalmente, o caso da cocaína merece uma investigação profunda e transparente. É uma questão nacional. O que o general Heleno disse também é um espanto: foi falta de sorte a droga ter sido descoberta numa viagem para a reunião do G-20. Segundo o jornal “El País”, a mala de cocaína sequer estava escondida junto à roupa. Droga nua. Não era falta de sorte, mas de controle.

Em qualquer circunstância que uma carga dessas fosse descoberta num avião presidencial, seria um grande azar para o Brasil. Em matéria de sorte, a gente vai levando, mas a fase, francamente, é de fechar o corpo, enquanto ainda temos nossos pais e mães de santo.

Os músicos de metrô já perdemos por inspiração de um dos filhos de Bolsonaro. Gostava de ouvi-los na Praça Nossa Senhora da Paz tocando “There Will Never Be Another You”.

Pensamento do Dia


Chegou o fim do liberalismo?

Os liberais vivem em choque. Aturdidos pelo impacto de uma realidade política que não assimilam. O século XXI está lhes caindo mal. Não compreendem por que foram golpeados tão intensamente no rosto da confiança que tinham em si mesmos. Sobretudo depois de terem contribuído de forma decisiva para ganhar as guerras mundiais que acompanharam a marcha da liberdade durante o século passado.

Nos últimos 30 anos, sua importância sofreu uma guinada radical. Em 1989, a promessa era de felicidade. As pessoas se encarapitaram no muro de Berlim, e uma primavera liberal se apropriou da história proclamando seu fim. Não durou muito o verão dessa hegemonia. A história voltou com maiúsculas. Trouxe consigo um duro inverno populista que lhes faz tiritar e com a dúvida de se não estaremos no início de uma glaciação totalitária.


De fato, se pudéssemos retroceder uma década, alguém acharia possível ver na Casa Branca um presidente empenhado em levantar um muro supremacista ao sul do rio Grande? E o que dizer do mapa político da Europa? Acaso se poderia imaginar, após a queda da Cortina de Ferro, que os defensores da chamada democracia iliberal governariam em 11 países da União e representariam mais de uma quarta parte do eleitorado do Velho Continente?

Com este panorama que se repete no conjunto do Ocidente, os liberais confrontam uma época que parece empenhada em prescindir deles. Quantos secundariam hoje em dia Václav Havel quando afirmava, durante a Revolução de Veludo, que poderia mudar o mundo esgrimindo a verdade, o espírito livre, a consciência e a responsabilidade; sem armas, nem vontade de poder ou arbitrariedade? Melhor não fazer o teste de contabilizá-los. Basta dizer que se apalpa no ambiente que o desencanto e a decepção com os valores liberais são intensos. Algo que impulsiona aqueles que, das fileiras populistas, consideram que a democracia deve se despojar do liberalismo se quiser sobreviver e defender eficazmente os interesses nacionais. Uma crítica que fundam na incapacidade dos liberais na hora de lidar com a excepcionalidade permanente a que o mundo se vê submetido desde a virada do milênio. A razão está em que não pode desenvolver um "decisionismo" liberal a partir da liberdade, da lógica deliberativa, da tolerância, da igualdade de oportunidades, do pluralismo e da defesa de um mercado não protecionista.

Esta suposta debilidade sistêmica do liberalismo frente às urgências "decisionistas" que nosso tempo apresenta é o que confere ao populismo uma vantagem narrativa que lhe faz ganhar espaço e progredir como um vetor de mudança arcaizante e autoritária, capaz de mobilizar milhões de pessoas sob slogans neofascistas. E assim, como aconteceu no período do entre-guerras, os liberais estão em xeque e na defensiva. Retrocedem diante do mal-estar de multidões radicalizadas em sua rejeição à democracia liberal e os valores que a tornaram possível, como uma esperança de mudança e progresso para a humanidade.

Os dados parecem confirmar isso. Roger Eatwell e Matthew Goodwin os analisam em National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy(“Nacional-populismo, a revolta contra a democracia liberal”). Em suas páginas se radiografa o pano de fundo moral de sociedades ocidentais que se sentem declinantes e destruídas. Vítimas de um futuro cheio de pessimismo e incerteza que faz desejarem grandes doses de ordem e segurança por todos seus poros geracionais e de classe. Aqui é onde devemos pôr nosso foco se quisermos detectar as causas da crise do pensamento liberal e do choque que paralisa seus defensores. Falamos de motivos que batem sobre o inconsciente coletivo da democracia e que ativam sua psicologia reptiliana ao propiciar um vetor populista que muda, combinado com o nacionalismo, para uma ressignificação pós-moderna do fascismo.

Este revival de seu antípoda mais intenso e direto é o que desconcerta os liberais e os deixa fora do jogo, mergulhados numa crise de identidade muito profunda. Sobretudo porque compromete a própria viabilidade da democracia liberal, o principal produto de suas ideias. Contra todos os prognósticos, o fascismo abre caminho, escala e ganha posições. Renasce de suas cinzas, confirmando as suspeitas de que está firmemente enraizado no coração emocional do Ocidente. Não por acaso, depois da brutalidade da Segunda Guerra Mundial ele volta vigoroso, rejuvenescido, vestindo um traje que o dissimula, embora gritando o mesmo discurso antiliberal de sempre.

Denuncia-o com valentia Rob Riemen, um dos poucos filósofos liberais que restam. Em To Fight Against This Age (“lutar contra esta época”), ele nos lança uma advertência e nos pede que, independentemente dos traços populistas, autoritários ou cesaristas que o escondam, chamemos o fascismo por seu nome. Algo que exige sua denúncia e seu combate. Atitudes que o liberalismo deve confrontar depois de atacar um esforço de autocrítica que lhe faça pensar que coisas fez de ruim e, sobretudo, o que deixou pelo caminho quando venceu na Guerra Fria e todos os povos do mundo pós-soviético abraçaram suas ideias com entusiasmo.

Para isso, é preciso retroceder no tempo e compreender que o liberalismo nasceu como uma trincheira contra o medo. Uma linha vermelha da qual protegeu a heterodoxia dos dissidentes religiosos e o patrimônio destes frente ao todo-poderoso soberano. O primeiro se fez mediante a tolerância, e o segundo, com a propriedade. Algo que os liberais abordaram quase ao mesmo tempo em que Hobbes edificava o Estado moderno sobre os alicerces, justamente, desse medo que o leviatã utilizava para instaurar o governo da ordem. Daí que James Simpson sustente em Permanent Revolution (“Revolução permanente”) que a aparição do liberalismo foi basicamente uma estratégia das minorias puritanas para proteger seu catecismo calvinista em meio às guerras religiosas que sacudiram o continente europeu. Uma iniciativa que logo se tornou revolucionária e que, pela mão do iluminismo, desenvolveu um compromisso universal com a maioridade política dos homens frente aos poderes políticos, econômicos e sociais.

O liberalismo adotou, portanto, um compromisso institucional a favor da razão, do governo limitado e do progresso humano, através da democracia deliberativa e do reformismo social. Empreendeu uma luta pelos direitos que, das revoluções atlânticas à Declaração Universal das Nações Unidas de 1948, foi configurando uma civilização baseada neles. A originalidade do liberalismo, como explica Helena Rosenblatt em The Lost History of Liberalism (“A história perdida do liberalismo”), consistiu justamente em dotar a pessoa de uma blindagem de direitos invioláveis frente aos dispositivos de dominação que podiam projetar sobre ela o poder e a maioria social. Daí que os pensadores liberais influíram nas Constituições e introduziram em seus textos um somatório de liberdades. Umas, positivas ou de socialização, e outras, negativas ou de preservação da subjetividade e suas escolhas individuais. Deste modo, o medo foi contido e marginalizado como um dispositivo a serviço do poder. Além disso, este último teve que admitir que sua legitimação só podia ocorrer numa democracia que se vertebrasse dentro de uma institucionalidade liberal, baseada em direitos.

Dois séculos e meio depois do seu nascimento, o liberalismo parece estar abatido perante o ressurgimento do medo que tão eficazmente soube desativar no passado. Abre-se a seus pés uma crise de fundamentação devido ao tsunami de incerteza que leva as sociedades democráticas a desprezarem a cultura liberal dos direitos e ansiar por uma ordem autoritária. Inclusive são cada vez mais os que desejariam encerrar-se dentro de um bunker reacionário onde se refugiar da insegurança que lhes assedia emocionalmente. A própria democracia parece inclinada a deslocar seu eixo de legitimação do liberalismo para o populismo. Um fenômeno sem aparente explicação porque talvez não tenha sabido detectar adequadamente a origem dos sismos que nos desestabilizam e que transformam o pensamento liberal em papel molhado.

Procuramos explicações no passado quando teríamos que buscá-las no futuro. Em causas que têm a ver diretamente com ele. É preciso começar a assumir que a revolução digital está remexendo os alicerces da arquitetura analógica do mundo, devido ao desenvolvimento de um capitalismo cognitivo sem regulação, nas mãos de monopólios intocáveis, profundamente desigual e que substitui a liberdade humana por algoritmos. Uma revolução que inquieta sem ruído, porque se leva a cabo desprovida de controles democráticos ou debate públicos. Mas uma mudança profunda de paradigmas que está liberando mal-estares que têm um denominador comum: uma ansiedade não explícita que, entretanto, percute sobre a pele de mamífero que recobre a experiência coletiva e individual da democracia e libera deslocamentos como a mencionada reaparição do fascismo.

E é aqui onde o liberalismo capitula ante um medo ressignificado tecnologicamente. Um medo que não se desenha com precisão, mas que localiza seu olhar em um futuro sem trabalho, habitado por ciborgues e governado por uma inteligência artificial que neutralizará a espontaneidade da ação humana. Talvez seja aqui onde teríamos que identificar as causas mais secretas do colapso liberal: em que a ideia de progresso pode deixar de ser um aliado da liberdade para se transformar no tapete narrativo que nos leve a uma distopia totalitária por aclamação.
José María Lassalle, ex-secretário de Estado de Cultura e Agenda Digital da Espanha

A máquina de madeira e o cordão de nióbio

Creio eu que poucos jovens hoje saberiam dizer o que é ou era uma máquina de datilografia, um equipamento enormemente utilizado antes da chegada dos computadores em nosso meio.

Poucos sabem, inclusive os mais vividos, que tal apetrecho fora inventado por um brasileiro, nascido na Parahyba em 1814.

Com apenas um canivete e uma lixa ele criou a máquina de madeira, feita em jacarandá.

Este equipamento foi considerado revolucionário para o século 19, onde discursos, sermões, sentenças, cartas puderam ser escritos com uma agilidade até então desconhecida por qualquer mortal; essa invenção foi um avanço para as ciências nacionais.


Antes mesmo de a norte-americana Remington lançar seu primeiro modelo, um padre e maçom paraibano chamado Francisco João de Azevedo, que hoje dá o seu nome a uma das ruas da capital da Paraíba, havia descoberto como mecanizar a escrita, sonho de muitos inventores mundo afora.

Inicialmente denominada de máquina taquigráfica, foi apresentada pela primeira vez na sala de Exposição Universal dos Produtos Naturais e Industriais das províncias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará em novembro do ano de 1861, no Recife.

Naquele mesmo ano acontecia na então capital do País, Rio de Janeiro, na Escola Central, no bairro da Glória, uma exposição nacional, que seria visitada pelo imperador D. Pedro, onde aportou em oito de dezembro o Padre Azevedo, com a sua nova invenção, que o fez ganhar uma medalha de ouro das mãos do próprio monarca.

No ano seguinte o invento foi enviado para Londres para a Exposição Universal.

Segundo o escritor Ataliba Nogueira, o artefato foi roubado por um agente de negócios americano cujos desenhos foram repassados a um tipógrafo, também norte-americano, chamado Christopher Lathan Sholes, que o aperfeiçoou, patenteou e tornou-se reconhecido como o inventor da máquina de datilografia.

Esta semana o presidente Jair Bolsonaro, em uma live no Japão pelo Facebook, expôs para o mundo um cordão de nióbio, destacando as suas utilidades e orgulhando-se de ser o elemento, existente em grande quantidade apenas aqui no nosso país, o que irá, com certeza, despertar ainda mais a cobiça de outras nações pelo precioso metal.

Portanto, é preciso ter cuidado para que não aconteça com o “nosso” nióbio o mesmo que aconteceu com o invento do padre João Azevedo.

Tertuliano

Veja as conclusões sobre os atos deste domingo

O pedaço da sociedade leal a Jair Bolsonaro voltou às ruas neste domingo. O país vai se habituando a um fenômeno novo: o protesto a favor. Dessa vez, a favor de Sergio Moro, da Lava Jato e de pautas que interessam ao governo no Legislativo —sobretudo a reforma da Previdência e o pacote anti-crime.

Foi o segundo ato organizado por simpatizantes do governo em 35 dias. O primeiro, em 26 de maio, veio em resposta a um protesto de estudantes e opositores do governo contra o congelamento de verbas para a Educação. Agora, a mola propulsora foi a divulgação de mensagens tóxicas atribuídas a Moro e aos procuradores da Lava Jato. O temor da anulação da condenação de Lula enviou ao asfalto os defensores do combate à corrupção.



Vão abaixo quatro conclusões que ajudam a compreender as consequências da nova manifestação:

1) A base social de Bolsonaro: Em termos nacionais, a manifestação deste domingo foi equiparável à de 26 de maio, talvez ligeiramente menor. Nenhuma das duas foi monumental. Nada comparável aos atos pró-impeachment de Dilma Rousseff. Mas ambas estão longe de ser inexpressivas. Ao contrário, revelam que Bolsonaro mantém uma base social sólida e fiel, a despeito da queda dos seus índices de popularidade.

2) As instituições sob pressão: Os refrões, os figurinos e as alegorias do ato não deixam dúvida. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal continuarão enfrentando uma pressão de fora para dentro. Hostilizaram-se congressistas, entre eles o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Foram atacados também ministros do Supremo. Gilmar Mendes foi o alvo mais evidente.

Embora congressistas e magistrados digam neguem a influência do asfalto nas suas decisões, é improvável que Brasília ignore o tamanho do meio-fio ao programar os seus passos. Isso já está acontecendo. O fenômeno ajuda a explicar a disposição do Congresso para entregar uma reforma da Previdência tão indispensável quanto impopular. Deputados e senadores não querem ser responsabilizados pela crise.

Compreende-se melhor também por que a Segunda Turma do Supremo adiou para depois das férias o julgamento do pedido de suspeição de Moro, indeferindo por 3 a 2 a abertura antecipada da cela do presidiário petista. Uma das bandeiras do asfalto é justamente a ressurreição da CPI da Lava Toga, arquivada no Senado apesar de dispor de apoiadores na quantidade exigida pelo regimento.

3) O presidencialismo de trincheira: Bolsonaro enxerga nas ruas respaldo para manter a corda esticada nas suas relações com o Legislativo. No Twitter, o capitão anotou neste domingo: "A população brasileira mostrou novamente que tem legitimidade, consciência e responsabilidade para estar incluída cada vez mais nas decisões políticas do nosso Brasil".

Há na ótica do presidente uma distorção e um quê de miopia. Não foi a "população brasileira" que saiu às ruas, mas um pedaço dela, eis a distorção. Bolsonaro foi eleito porque os votos das pessoas que pensam como ele foram reforçados pelo apoio dos eleitores que não queriam de jeito nenhum a volta do PT ao poder. Esse pedaço do eleitorado antipetista mudou de faixa. Está no acostamento. Já não existe unidade nem mesmo no bloco bolsonarista.

De resto, o déficit de interlocução política empurra o Legislativo para uma pauta própria, nem sempre coincidente com a do Executivo. A queda de braço já começou e será intensificada depois da aprovação da reforma previdenciária. Nessa briga, o interesse público só está presente até certo ponto. O ponto de interrogação.

4) Os limites da tática do confronto: Quando os partidários de Bolsonaro foram às ruas em 26 de maio, a previsão de crescimento da economia captada no mercado pela pesquisa Focus, do Banco Central, era de 1,24% para o ano de 2019. Na última segunda-feira, a mesma enquete resultou numa estimativa de evolução do PIB de ridículos 0,87%.

O flerte com a volta da recessão e a presença de 13 milhões de desempregados no olho da rua intima o governo de Bolsonaro a apresentar resultados. Sob pena de levar às ruas não os apologistas do governo, mas os brasileiros que estão de saco cheio da polarização eterna.

Ou seja: num ponto o governo de Bolsonaro é igualzinho às administrações anteriores: seu futuro depende do desempenho. Sem prosperidade não há popularidade.

Paisagem brasileira

Paisagem rural, Jonas Matos

'Bolsonaro é um dos populistas mais próximos do fascismo que já vi'

"Eu a aguentei durante um tempo, até que não pude mais e lhe disse que seu marido não governava com os votos do povo, e sim com a imposição de uma vitória [militar]. A gorda não gostou nada". A gorda era Carmen Polo, esposa do ditador espanhol Francisco Franco. A autora da frase é Eva Perón, a totêmica Evita, esposa do presidente argentino Juan Domingo Perón (1946-55 e 1973-74). O caso, ocorrido durante uma visita da primeira-dama argentina à Espanha, em 1947, aparece no livro Del Fascismo al Populismo en la Historia, o ensaio recém-publicado do historiador argentino Federico Finchelstein, e ilustra uma de sua tese centrais: que o populismo está na raiz do fascismo, mas o primeiro é intrinsecamente democrático.

"Não há fascismo sem ditadura, nem populismo sem eleições. E isto não é uma definição teórica, tem a ver com uma experiência de democratização histórica que surge sobretudo logo depois da Segunda Guerra Mundial e vai chegando a outros países. Não há ditadores populistas. Quando deixa de haver eleições reais, deveríamos falar de ditadura, não de populismo", afirma ao EL PAÍS o historiador Finchelstein (Buenos Aires, 1975), professor da New School for Social Research e do Eugene Lang College, de Nova York, e autor de várias obras sobre fascismo, populismo e o Holocausto.

Para apresentar seu livro nesta sexta-feira na Casa América de Madri, Finchelstein cruzou o Atlântico em sentido inverso ao das suas ideias oito décadas antes. Logo após a Segunda Guerra Mundial, com uma Europa abrindo os olhos para o alcance do horror nazista, e com a África e Ásia majoritariamente imersas no colonialismo ou sob regimes de partido único autoritário, a América Latina era o berço natural dessa "reformulação" do fascismo que é o populismo, argumenta. "Era o único lugar onde os fascismos não tinham perdido a legitimidade e havia um marco democrático. Não há nada de especial na América Latina naquele sentido", observa. Primeiro foi o peronismo, em 1946. Pouco depois, o regime de Getúlio Vargas (1951) no Brasil. Ambos percorreram um caminho similar: chegar ao poder a partir da ditadura e a destruíram por dentro para criar uma democracia. "O fascismo, nos casos mais paradigmáticos, que são a Alemanha e a Itália, chega ao poder através da democracia e cria uma ditadura. O populismo faz o contrário", observa, sobre seus inícios.

A situação se tornou mais complexa nas décadas seguintes, com populismos em diferentes continentes – tanto de esquerda como de direita – articulados em torno dos mesmos elementos: a identificação entre líder e povo, o culto semirreligioso ao dirigente, a substituição das categorias ideológicas clássicas pela dicotomia entre os de cima e os de baixo ("meus sujinhos", como os chamava Evita), o menosprezo pelos opositores e a imprensa crítica... Finchelstein cita os casos, com modelos neoliberais, de Carlos Menem na Argentina, Silvio Berlusconi na Itália e Fernando Collor de Mello no Brasil. Ou, da esquerda ou com estampa social, dos Kirchner, de novo na Argentina, e de Hugo Chávez na Venezuela. Entretanto, opina o especialista, "o que havia de populismo na Venezuela se perdeu, e estamos falando de formas que estão mais próximas de uma ditadura".

Em alguns casos, o populismo significou ao mesmo tempo "uma ampliação e uma limitação de direitos". Um "pacote", nas palavras do especialista, pelo que "os pobres são menos pobres e os ricos menos ricos", mas o líder "é o único dono da verdade, e aqueles que não estão de acordo passam a ser definidos não só como opositores políticos, mas também como o antipovo. Isto soa muito fascista porque tem origens fascistas", acrescenta.

Ao longo do livro o nome de Donald Trump aparece com frequência como exemplo de uma tendência que preocupa Finchelstein: a emergência de "um novo populismo que combina o neoliberalismo com ranço fascista". "Não é uma volta do parafuso nem um círculo completo, mas, embora a história do populismo, à esquerda ou à direita, sempre tenha a ideia de reformular a democracia em termos autoritários sem voltar à tradição fascista, estes novos populistas fazem uma tentativa explícita de voltar a elementos centrais da tradição fascista: racismo, violência política e, em casos como o de Bolsonaro e Trump, elogios teóricos da ditadura". O presidente brasileiro é, acrescenta, "um dos populistas mais próximos ao fascismo que já vi".

O racismo foi justamente uma das diferenças entre os populismos de esquerda e os de direita. Os primeiros "têm uma visão de povo que é autoritária, mas que permite ser aceito se a pessoa estiver de acordo. Nos de direita, o povo também é construído por coisas que a pessoa não decide, como a cor da pele".

Arrogância para plateia

Eu estava na presença do presidente da Rússia e eu vi que não era o momento de ser um pouco mais agressivo
Jair Bolsonaro

Enfim, pode ser que o acordo com a UE consiga civilizar o Brasil...

Jair Bolsonaro foi para a Europa vociferando – ia torcer o pescoço da Merkel, para começar. Explica-se. Antes da viagem, ele foi informado que o acordo Mercosul-União Europeia estava pronto pra ser assinado. E tinha de ser assinado, pois trará benefícios ao Brasil e aos três outros membros do Mercosul.

Só que um acordo desse é a quintessência do globalismo, que Jair odeia. Mas não tem jeito, tem de engolir um acordo essencialmente globalista.


E tem muito mais. A União Europeia impõe salvaguardas em seus acordos. O tratado firmado tem um capítulo específico sobre desenvolvimento sustentável. Quer dizer, o acordo com a UE obriga os países do Mercosul a:
*Serem signatários do Acordo de Paris sobre a Mudança do Clima. (Foi por isso que Macron deu um cocorote em Jair: “Se sair do Acordo do Clima, não tem acordo com o Mercosul”).
*Manterem os cuidados com a biodiversidade e a conservação das florestas.
Garantirem a livre atuação de organizações sociais (leia-se ONGs), que ajudarão a fiscalizar o acordo.
*Respeitarem os direitos trabalhistas dos trabalhadores nacionais.
Preservarem os direitos das populações indígenas.
Garantirem a preservação plena dos direitos humanos, tal como são conceituados na Europa.

É por isso tudo que Jair estava tão zangado quando desembarcou. Não dá mais pra desmatar a Amazônia. Nem pra detonar as ONGs. Nem pra extinguir os direitos trabalhistas. Nem pra liquidar os índios.

Vai ter de cumprir as metas de emissão de carbono. Rigorosamente. Vai ter de entubar o Acordo do Clima. Sem chiar. E ainda vai trafegar na contramão do Trump.

Enfim, pode ser que o acordo com a UE civilize o Brasil.