segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Só Deus me tira daqui

- Chamou, chamou?

O presidente se assustou com a aparição repentina. A figura que surgiu na sala do Palácio do Planalto não convenceu muito. Era um tipo alto, moreno, bronzeado, vestindo uma camisa florida em tons azuis, uma bermuda branca e sandálias. A barba era longa, mas bem aparada e os óculos escuros comprados certamente numa ótica parisiense.

- Mas quem é você? perguntou o presidente.

- Ué, você não me chamou? Estava esperando faz tempo esse chamado. Sou deus, mas sou democrático. Preciso atender à maioria da população e eles vivem me pedindo a mesma coisa. Quando você pediu achei que estava na hora.

- Na hora de quê?

- De tirar você daqui. Levar pra outro lugar. Tem gente querendo botar você em cana. Eu espero a justiça dos homens decidir antes aí eu entro.


- Mas a justiça divina não está comigo?

- Não sei o que lhe faz acreditar nisso. Aliás vocês vivem usando meu santo nome em vão. Já estou meio cansado disso. Andei conversando com o Alexandre de Moraes...

- Com o Alexandre, não!!! Ele quer ver minha caveira.

- Justamente. Precisava falar com ele porque essa história de caveira, defunto, etc tem que passar por mim. É minha administração.

- Eu não usei seu santo nome em vão. Achei que eu tinha prerrogativas. Estou fazendo um governo todo família, tradição e propriedade. Achei que seria do seu agrado.

- Quem falou? Quem anda falando em meu nome?

- Quem acredita no senhor.

- Quem acredita em mim ou que acredita no meu poder de persuasão, minha força de marketing, ...?

-Achei que a gente podia escolher. Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.

- Eu estou acima de tudo, seu idiota. Não percebeu que essa frase é um equívoco só? Imagina se o Brasil vai estar acima de mim? Deus é deus e basta. E falando nisso lhe proíbo de continuar falando em meu nome. Vamos indo. Tá ficando tarde e sou uma pessoa muito solicitada.

- É...quer dizer. Eu falei no sentido figurado. Queria dizer que ninguém me tira daqui, só o senhor.

-Pois é. Estou tirando. Ou você acha que eu estou satisfeito com o seu governo? Ninguém está. Vamos indo, anda. Chama a Michelle, os meninos e vamos embora. Estou com um ônibus aí fora da viação Celeste para levar vocês pra casa.

- Mas nós não queremos...

- Eu decido e vai por mim. Melhor sair sob a minha proteção do que esperar que a PF baixe por aqui na operação Familícia.

- Jura? Eles estão vindo?

- Eu não juro por mim mesmo, meu filho. Só digo a verdade.

-Não sei o que é isso.

-Pois é. Se até hoje você não aprendeu não vai ser agora. Vamos indo. O tempo urge.

- Mas eu estava gostando tanto de brincar de presidente.

- O povo não estava gostando nada de você ser presidente.

- Posso fazer uma última pergunta, antes de ir, já que estou na frente de deus?

- Diga.

- Qual é o significado da vida?

- Ora, meu filho, piada velha numa hora dessas? Vamos embora antes que a casa caia.

E no meio dos escombros do palácio, deus foi saindo levando pelos braços o JMB que olhava para os lados com olhar saudoso. Uma lágrima rolou, mas ele logo desmentiu

- Homem não chora.

A economia dos pobres

A pandemia virótica escancarou a pandemia da pobreza e o aumento da desigualdade. Ao lado emergência climática, são os maiores desafios da humanidade no século XXI.

No Brasil e no mundo, não faltaram grandes cientistas sociais, formuladores de políticas que defenderam ideias e participaram de experiências exitosas, porém insuficientes para estabelecer padrões aceitáveis de equidade social.

As dificuldades residem no tamanho e na complexidade do problema. Dimensão: 1bilhão e 100 mil pessoas que dispõem de menos de 1 dólar diário para sobreviver nos Estados Unidos, na Índia, 16 rupias correspondentes a 36 centavos de dólar; anualmente, 11 milhões de crianças morrem antes de completar 5 anos.

No Brasil, em 2019, 51,7 milhões de habitantes estavam abaixo da linha de pobreza (BIRD); entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, 17,7 milhões de pessoas voltaram à condição de pobres (FGV Social).


O panorama atual revela um contraste avassalador e ratifica a percepção de que o mercado pode muito, mas não pode tudo, inclusive, distribuir a riqueza gerada. O capitalismo e a afluência empurram para cume da pirâmide social novos bilionários, ampliando o fosso monumental entre a maioria crescente de excluídos e a ínfima parcela da população que se diverte, investindo no turismo espacial.

Por sua vez, não faltam recursos para financiar guerras e socorrer os trambiques monumentais dos que são “grandes demais para quebrar”.

De outra parte, as políticas públicas de renda são, em grande medida, insuficientes ou ineficazes para ofertar aos cidadãos a possibilidade de emancipação.

O título do artigo “A Economia dos Pobres”, propondo uma nova visão da desigualdade, é o recente livro de autoria do casal Abhijit V. Banergie&Esther Duflo (segunda mulher a receber o Nobel de Economia, 2019).

Durante 15 anos, foram além das formulações acadêmicas e, com “foco nos mais pobres” e procuraram compreender como eles vivem em “becos e aldeias” e a “existência econômica”, privados que são de informações e condições mínimas para tomar decisões sobre o próprio destino.

O livro é extenso: “em última análise – registram ou autores – trata do que a vida e escolhas dos pobres nos dizem sobre como combater a pobreza global”. Destacam o valor do poder comunal e das instâncias locais.

Eles contemplaram a tragédia: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/catando comida entre os detritos […] Engolia com velocidade/O bicho não era um cão/Não era um gato/Não era um rato/O bicho, meu Deus, era um homem” (Manoel Bandeira).

Reconstrução de direitos

O atual presidente da República sempre foi contrário aos direitos humanos. Atacou-os repetidamente durante seus vários mandatos como deputado federal e durante a campanha eleitoral para a Presidência. Para além de ações mais visíveis, tais como seus discursos de ódio e suas tentativas de mobilizar apoiadores de um golpe para botar abaixo a democracia constitucional, seu governo promove antipolíticas de direitos humanos.

Estas são implementadas de diversas formas: por meio de mudanças legais, fechamento de órgãos e colegiados, cortes orçamentários, nomeação de dirigentes ineptos com posições hostis ao funcionamento de conselhos onde tem assento a sociedade civil ou pela inação pura e simples. Desse modo, os programas nacionais de direitos humanos em andamento foram esvaziados, inviabilizados ou desviados de seus propósitos, ao mesmo tempo que outras ações tornaram precária a condição dos grupos vulneráveis protegidos por direitos, ao instigar aqueles que os atacam.


O alvo mais claro do desmonte operado pelo atual governo de extrema direita é a política de Estado de direitos humanos institucionalizada na Secretaria de Estado de Direitos Humanos, pasta criada em 1996. Mais tarde, a secretaria foi convertida em ministério e acompanhada da criação de outros ministérios, secretarias e órgãos voltados à proteção dos direitos humanos, à promoção da igualdade racial e da equidade de gênero, ao combate à pobreza e ao trabalho escravo. O Programa Nacional de Direitos Humanos, começando pelo PNDH 1, de 1996, revisado pelo PNDH2, em 2002, ambos nos governos Fernando Henrique, e pelo PNDH 3, em 2009, no governo Lula, condensaram o conjunto de iniciativas em defesa dos direitos humanos promovidas nos níveis federal, estadual e municipal, com efetiva participação da sociedade civil.

As políticas de direitos humanos desde a redemocratização promoveram mudanças nas práticas políticas autoritárias, oligárquicas, clientelistas e na estrutura desigual e racista da nossa sociedade brasileira. Além de defendê-las contra os ataques e o desmantelamento que vêm sofrendo, é preciso divulgá-las publicamente para que possam servir de inspiração a todos os que resistem atualmente e lutam pela democracia, o Estado de Direito e a justiça social no Brasil.

Esse é o objetivo do primeiro manifesto assinado por 11 secretários e secretárias**, ministros e ministras de Direitos Humanos dos governos FH, Lula e Dilma, que será lançado em evento on-line do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) no próximo dia 1° de outubro, a partir das 14h. O manifesto defende a institucionalidade da política de Estado dos direitos humanos, traz a memória daqueles e daquelas que foram responsáveis por sua operacionalidade e clama por sua reconstrução. É uma mensagem forte e precisa para que a política de Estado de direitos humanos seja central nas campanhas de todos os candidatos e candidatas democratas à Presidência no próximo ano.
**José Gregori, Gilberto Vergne Saboia, Paulo Sérgio Pinheiro, Nilmário Miranda, Mário Mamede Filho, Paulo de Tarso Vannuchi, Maria do Rosário, Ideli Salvatti, Pepe Vargas, Nilma Lino Gomes e Rogério Sottili

O Brasil entre o poder do horror e o horror do poder

Há tempos que eu não via Joca, meu velho amigo privilegiado, morador de casarão em trecho exuberante da floresta. Se não fosse apenas pelo prazer de vê-lo e ouvi-lo, não podia recusar seu convite para “tomar uma cerveja e saber como andam as coisas no Brasil”. Fui intrigado.

Joca conduziu o carro para os limites de uma comunidade e parou diante de um botequim, mais bem tratado que a média dos outros na região. Entramos, com ele à frente, e logo ouvi uma voz grossa e cheia de catarro preso gritar, por trás do balcão do boteco: “Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! É ele, minha gente, é o cara!” E puxou o aplauso pela chegada de meu amigo.

Meu amigo agradeceu os aplausos, assobios e gritos excitados de parte considerável dos fregueses, e me apresentou ao senhor bigodudo e gordo da voz de catarro. “Vamos contar aqui pro meu amigo como anda o Brasil, seu Taco!”, disse ele. Imaginei que Taco fosse uma redução popular para, por exemplo, Eustáquio. E arrisquei: “Boa noite, seu Eustáquio.” “É Otávio. Otávio Costa”, me respondeu jogando fora pela boca o que lhe travava a garganta.

O boteco estava lotado de gente, mesmo para uma noite de sábado. Joca pediu sua cerveja geladíssima, me contentei com uma Coca Zero pequena. Um rapaz, do outro lado do bar, perguntou em voz alta a Joca: “Ouviu o discurso do cara, cara?” Por um desses milagres cariocas de entendimento nas nuvens, compreendi que o rapaz se referia ao presidente e seu discurso em Nova York, na ONU. “Uma merda”, respondeu Joca de bate-pronto, “nem pra eleitor burro serviu”. Quase todo mundo no boteco riu. Um outro rapaz, na mesa ao lado da de Joca, afirmou, sem muita convicção, que “burro vota é no Lula, não vota nele”.

O boteco pegou fogo. Em outra mesa, um trio parecia ensaiado: “Quem come na rua e entra pelos fundos...”, “... transmite doença e todos têm vergonha dele...”, “...só pode ser um rato...”, e os três juntaram suas vozes para encerrar o discurso: “...poderosa ratazana!” Antes que o terceiro homem entrasse no coro, todo mundo já caía na risada. Quando disse que o presidente só podia ser um rato, o boteco quase veio abaixo de tanto riso e palmas, de tanto protesto e vaias.

Ali estava o Brasil que Joca queria me mostrar, dividido ao meio, entre o poder do horror e o horror do poder.

A partir daí, não se podia ouvir mais nada do que se dizia no boteco. Ninguém tocava em ninguém, era só gritaria, acho que só pelo prazer de gritar. Joca ria vitorioso, como se fosse o feiticeiro sábio responsável pela balbúrdia. E eu acompanhava a discussão política derivar, com naturalidade, para acusações pessoais, protestos originados por acontecimentos do dia a dia. Frases agressivas que acusavam a uns e outros, ponteadas por palavrões inéditos que pareciam inventados na hora de tão gostosos de dizer, a boca cheia.

Claro que ninguém ali pensava em nosso presidente, eram apenas discípulos de seu jeito de ser. Ou, melhor dizendo, haviam encontrado em seu comportamento a chave para se comportar igual. Também não era uma imitação barata, todos ali tinham aquele mesmo jeito, desde sempre. Só não sabiam que podiam ser assim, nosso presidente os libertava do temor de serem inconvenientes, sem projeto e sem ideologia. Apenas violentos e capazes de assumir seus modos e ideias assim, daquele jeito barato, sem preço. Não ficariam devendo nada a ninguém e depois se esqueceriam do presidente, não saberiam nem quem foi. Os bolsonaristas iam durar muito mais que Bolsonaro, iam durar para sempre.

Há tempos não tinha tanto medo. Disfarcei, conversei mais um pouco, acho que aos gritos para poder vencer a barulheira. E pedi para ir embora, não me lembro sob que pretexto. Joca me atendeu rindo muito.
Cacá Diegues 

Pau-de-arara generalizado

Concluímos que em mil dias de governo Bolsonaro os brasileiros estão vivendo sem direitos. As pessoas estão sentindo no bolso, no prato, na pele e no corpo as perdas dos seus direitos mais fundamentais
Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil

A aristocracia refém de si mesma

Nada isenta o capitão genocida. Ele é antidemocrático desde criancinha, e há trinta anos bradava isso aos quatro ventos, para quem quisesse ouvir. Mas era apenas visto como um lunático bravateiro. Até mesmo os grupinhos que iam para a avenida Paulista com faixas pedindo a volta da ditadura eram vistos como excêntricos. Como fomos parar aqui? Com um presidente da República que ameaça o STF e a democracia em comício, sem que lhe aconteça nada de mais grave?

Pois é, após as reações no mínimo covardes dos presidentes da Câmara e do STF, temos que nos perguntar. Será mesmo apenas frouxidão? Medo do Bolsonaro? Será realmente que estão apequenados porque acreditam que o capitão seria capaz de aglutinar apoio para uma sublevação contra a democracia? Quando todos aqueles que circulam nos meios do poder indicam que ele não tem apoio para isso? Será que, como sustentam alguns, estamos menosprezando a força do golpe que Bolsonaro sorrateiramente prepara? Acredito que a resposta não está propriamente no Bolsonaro.


Há uma questão que sempre vale lembrar: quem começou com essa história de destruir a democracia, não foi Bolsonaro. Quem duvidou do resultado da penúltima eleição presidencial, insinuou fraude, lançou ameaças ao governo que recém vencia, não foi Bolsonaro. Foi Aécio Neves. Quem começou a subir, semana sim semana não, mais um degrau no desmonte da democracia, não foi Bolsonaro, mas um juiz que decidiu, à luz do dia e sem reação de ninguém, virar justiceiro e desrespeitar a lei. Quem iniciou um impeachment sem crime não foi Bolsonaro, foi o MDB associado ao PSDB.

Pois bem, há uma aristocracia poderosa e discreta que decide os destinos deste país. A imagem folclórica, embora haja testemunho de gente que presenciou, é que se reúnem de vez em quando em salões aveludados para discutir a conjuntura e os rumos do país. São grandes banqueiros, gigantes da indústria, donos das mídias, ex-mandatários, empresários de peso, e alguns políticos, mas não todos (escrevi este artigo antes do vídeo do jantar do Temer na casa do Naji Nahas, com todos os barões reunidos. Não poderia haver uma ilustração melhor do que essa). Pois desconfio que muito da inépcia das reações aos delírios de Bolsonaro deve ser buscado no meio dessa turma, e não no meio da família de dementes que eles deixaram, por um lapso, chegar ao poder. A explicação está em outro lugar. Está no impasse em que essa gente se meteu, por conta própria.

A questão é a seguinte: a aristocracia que manda cedeu à força democrática ao aceitar engolir Lula, convencidos pela “Carta aos brasileiros”. Deu até mais certo do que eles pensavam, mas, quando o caldo começou a entornar, porque Dilma mostrou-se mais à esquerda do que o desejado, porque enfrentou sem sucesso uma crise econômica que não era mais nenhuma “marola” (como havia prometido Lula), quando Dilma resolveu endurecer com os bancos, e quando viram que a brincadeira democrática podia perpetuar o PT no poder por décadas, resolveram que a brincadeira já não tinha mais graça. Prepararam-se com tudo – com a mídia e todo seu poder econômico – para tirar Dilma do poder nas eleições, mas não conseguiram. Restou-lhes questionar o pleito e iniciar um paulatino, mas seguro, processo de erosão da democracia.

O que não esperavam é que seus potenciais representantes políticos iriam cindir-se e, com mais de um candidato, todos sem nenhum carisma, iriam afundar-se eleitoralmente. Alkmin, Meirelles, Amoedo e, em certa medida, Marina, dividiram os votos do “centro esclarecido”, um eufemismo para uma direita aristocrática montada em seus privilégios, mas que se quer progressista, e se afundaram nas urnas. Seu inimigo naquele momento não era Bolsonaro, vale lembrar. Era o PT, de quem tinham medo que voltasse ao poder e ali ficasse.

Por isso, não se importaram em apostar naquele que havia gritado “Viva Ustra” poucos meses antes. Nem Ciro, nem FHC, ninguém. Todos aceitaram igualar dois candidatos incomparáveis, e ajudaram a parir o monstro, a acordar não um gigante, mas uma massa de brasileiros toscos, individualistas, racistas, xenófobos, machistas, egoístas, intolerantes, violentos, que de repente viram que lhes tinha sido dado espaço para se manifestarem sem vergonha. Pior, com orgulho.

Com Bolsonaro no poder, entraram – ou acharam que entraram – no clubinho dos poderosos novas figuras que na verdade não foram aceitos. Empresários do comércio de varejo, vaqueiros do agrobusiness, gente mais tacanha, focada no seu lucro imediato, habituada às burlas e falcatruas, à sonegação de impostos, às malas de dinheiro. Pastores das igrejas da enganação, tosqueadores do dinheiro dos mais pobres. Essa gente começou a falar alto. Ah, e também, é claro, as milícias.

Jair Bolsonaro vive, ou melhor, sobrevive da sua popularidade com esses setores. E só. Nenhum militar de mais alta patente com algum neurônio (e seria muito simplismo achar que eles não têm nenhum neurônio) iria se embrenhar em uma aventura golpista com um fanfarrão na liderança. As PMs podem até apoiá-lo, mas precisaria de muita coordenação entre forças estaduais desconectadas para que constituíssem uma força armada capaz de sustentar uma aventura militarista. Nenhum empresário, banqueiro, industrial, está interessado em ver o país virar um faroeste dominado por milicianos e aventureiros novos ricos. Sabem que seria o pior cenário para seus lucros. Aliás, nem mesmo o centrão parece disposto, pois sabe que isso seria o fim de sua fonte de clientelismos, seriam rapidamente substituídos por outras forças bem piores, milicianos e afins.

Mas ai, o que fazer? O problema é esse. Nessa dinâmica toda, essa elite aristocrática perdeu a mão da política. Ela é, no fundo, profundamente antidemocrática. Talvez mais até do que o próprio Bolsonaro, pois o é de maneira mais sofisticada. Sua estratégia é vencer legitimamente nas eleições, desde que ganhe quem eles queiram. Só que, desta vez, eles têm a frente um fanfarrão que tem o poder, e do outro lado, mais forte do que nunca, a possibilidade da volta do PT. Podem dizer o que quiserem, mas Lula é o que é, gostem ou não. Carrega caminhões de apoiadores legítimos. E a expressão mais acabada do modo antidemocrático de ser dessa gente surge quando algum jornalista ou político sugere que Lula deveria renunciar à candidatura, “em nome do país”. Vamos colocar em outras palavras: Lula deveria desistir porque ele impede que tirem o Bolsonaro para por no lugar alguém que eles queiram, “em nome e para o bem do país”.

Eles bem que tentaram: Moro, Huck, Mandetta e até mesmo um idiota como aquele humorista, foram testados para a tarefa. Mas aí que está o problema, ninguém “pega”. Nem mesmo o Ciro, que está disposto a tudo, até a se assumir de vez como representante dessa aristocracia. Eles todos até poderiam tirar o Bolsonaro, mas o problema não é bem esse: não tiram o Lula. E então estão se desesperando em busca de uma “terceira via”, um eufemismo para dizer que não aceitam a vontade democrática se ela confirmar que a escolha popular será Lula.

Então, por ora, aceitam as bravatas. Assim como ocorreu nas eleições, Bolsonaro, um oportunista profissional, aproveita o espaço. E sobe o tom. Se não conseguir um golpe, ao menos sairá atirando com uma base intacta de 25%, assim como Donald Trump. O STF e Artur Lira sustentariam uma reação à altura que as provocações de Bolsonaro merecem? Mas para dar no que? Em um impeachment que colocará Mourão à espera de uma eleição aparentemente já decidida? A solução não serve. O andar de cima deve estar fervendo. Urge achar uma saída, antes que percam de vez o pé da aventura bolsonarista.

Temos que entender que o DNA antidemocrático não é uma exclusividade de um louco que deixou o país à deriva e à morte em nome de seus projetinhos pessoais tacanhos, e que clama por um golpe desde que existe. O DNA está em quem deixa ele agir impunemente porque, do alto das instituições democráticas que deviam servir, não tomam as atitudes que se impõem.

Lembremos que Dias Toffoli, quando presidente do STF, colocou um militar para assessorá-lo, em um gesto para conciliar com Bolsonaro. Disse que a ditadura havia sido um movimento. A alta corte calou-se quando um general a emparedou caso seguissem a lei e soltassem o Lula. Porque tamanha condescendência? Porque estão perdidos, sem achar um caminho que tire o fanfarrão de onde não deveria estar, mas lhes garanta o poder. Se quisessem, têm dinheiro para pôr o centrão no bolso. A questão é que ser democrático, hoje, no Brasil, significa aceitar as eleições. E eles não querem do jeito que está. Então vão empurrando o capitão até algo novo surgir. Não se espantem se esse “algo novo” não venha a ser de novo o Moro: como a Folha já mostrou, a absolvição de Lula e a condenação do ex-juiz no STF não significa nada, para eles são só arranjos. O problema é que, nessa brincadeira, o fanfarrão pode acabar dando-lhes novamente um olé, e conseguir o que quer: um golpe de verdade.