quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Pensamento do Dia

 


País não sabe agir diante dos incêndios

O Brasil está em chamas, sofrendo uma amarga mudança em sua relação com a natureza. Uma transformação jamais pensada porque o país era imaginado como “coração do mundo, pátria do Evangelho”, estava protegido dos desastres naturais.

Abrigados por Deus e pela Virgem, estávamos livres para fazer tudo com nossas matas, montanhas e rios. Até que surgiu a tal “mudança climática” — obra de comunistas e malvados capitalistas. Sua última encarnação é o bandoleiro golpista Elon Musk, que abriu o perturbador baú da informação com liberdade — mercadorias funestas porque obrigam a discutir limites, sobretudo para o enraizado elitismo que os rejeita.

Estávamos a salvo e “deitados eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo”. Dormitávamos numa terra açucarada, movida a escravidão africana e baronatos amulatados. Não precisávamos de segregação porque todos os inferiores conheciam seus lugares. Desse modo, a massa de imigrantes-escravos finalizou a modelagem de uma cruel hierarquia social que nosso elitismo de direita e esquerda jamais percebeu.



Hoje, entretanto, nos damos conta de que o governo não tem instrumentos ou capacidade para lidar com os problemas fora de uma esclerosada politicagem personalista, que reduz questões sociais a pessoas.

Nessa velha politicagem, basta um discurso veemente, um churrasco ou um encontro discreto, regado a troca de privilégios em alguma “Bras”, para selar “soluções” que significam adiamentos, porque “mexer nisso dá muito problema”.

O sistema político, a despeito de suas iniquidades, contradições e ineficácia, ganha em estabilidade, tornando-se um fosso de contradições. Ambiguidades que, no plano legal e ético, despertam e lamentavelmente justificam todas as desconfianças, engendrando os aventureiros que podem terminar no seu cume.

O que fazer — perguntam os “povos originais” ao lado de quem tem um mínimo de senso — com um sistema cujo projeto consiste precisamente em confundir progresso civilizatório com derrubada, poluição, contrabando, contravenção e desmatamento?

Tudo se passa como se fôssemos vítimas de nossos costumes. Como se fôssemos dominados por um viés antitransformação que nos obriga a viver a História sem viver as transformações que o devir histórico obriga a realizar. Negamos ou pouco valorizamos nossas conquistas e avanços se eles forem obras de adversários — o que mostra como, na política, o outro conta mais que o Brasil.

Quando um partido político que se pensa como inovador classifica como “herança maldita” um plano que restituiu a universalidade da moeda, como o Plano Real, temos a prova de quanto somos conservadores, senão reacionários. Aliás, seria a Rússia reacionária por ainda ser comunista? E você, meu amigo, não acha que o comunismo de Lênin ficou tão idoso quanto o capitalismo de Rockefeller e Henry Ford, hoje confrontado com o capitalismo digitalizado de Musk e Trump?

Como disse noutra crônica, é preciso não misturar o conceito de polaridade, que faz parte da cognição humana, com polarização, que leva ao assassinato do novo antes mesmo de conhecê-lo. E produz um reacionarismo incapaz de distinguir progresso, desde que esse progresso venha do outro: do bandido suspeito.

O tal solucionar não solucionando que tipifica o sistema em que somos “educados” para concordar com tudo e esperar — porque um dia “tudo será resolvido”— tem marcado nosso viés político. A tal ponto que hoje, além dos confrontos rotineiros entre posicionamentos ideológicos, temos de agir concreta e resolutamente para fazer face às devastações climáticas. Um tipo de problema que nossa cosmologia católico-jesuítica jamais poderia prever. Pois, nela, o mundo não seria feito por nossa ações, mas por artes divinas, e seria imutável. Foi essa relação entre nosso “Brasil brasileiro” e a natureza — esta terra que tudo produz — que mudou e hoje se agrava numa dinâmica que nosso sistema governamental, voltado para si próprio, é incapaz de enfrentar. O Brasil está, pois, em meio a fogos ideológicos e incêndios históricos. Haja Apocalipse...

Bolsonaro está desmoronando?

O bolsonarismo está destinado a perdurar como quadro da extrema direita brasileira, uma mistura de fascismo com conotações nazistas, que tenta se conectar com a nova direita que cresce no mundo, do bizarro ao perigoso, porque questiona os valores da democracia e assassina a essência da política com o seu extremismo.


O Brasil, com o capitão Jair Bolsonaro, que emergiu das trevas dos anos como deputado sem luz nem poder à Presidência da República de uma forma bizarra, uma mistura de messianismo religioso e anseios autoritários e até golpistas, criou uma revolução que ajudou a desenterrar uma direita que esperava por um líder depois dos governos lulistas de esquerda.

Se a pseudo-revolução de Bolsonaro serviu a algum propósito, foi para dar espaço a um direito que estava latente à espera de um líder e que contava com o apoio do grande capital e do desejo de liberalismo face a anos de políticas sociais que libertaram milhões de pessoas do inferno da fome. Hoje Bolsonaro, como ficou demonstrado na manifestação a seu favor e contra o poder do Supremo Tribunal Federal, realizada no mítico cenário da Avenida Paulista, a maior cidade da América Latina com 20 milhões de habitantes – a das grandes concentrações, que já recebeu meio milhão de pessoas no passado -, continua a ser uma referência para a bizarra extrema-direita. O legado da manifestação, vista à luz de alguns detalhes que por vezes apontam para o futuro, foi a crise de um mito em declínio.

Convocada no momento mais grave para Bolsonaro, que enfrenta mais de uma dezena de processos judiciais que podem levá-lo à prisão e que têm gerado dúvidas até entre seus seguidores mais próximos, a manifestação realizada no simbólico aniversário da República revelou alguns sinais de decadência do mito e uma espécie de carreira dos maiores líderes da direita. Para substituí-lo ou encurralá-lo.

Os números nas manifestações de protesto não são tudo, mas acabam tendo um valor simbólico que reflete a força do ídolo exaltado. Nas últimas cinco manifestações a favor de Bolsonaro, a do último sábado ganhou importância extra porque ocorreu às vésperas das eleições municipais que são vistas como o prelúdio das eleições presidenciais de 2026. Nelas, em jogo, a verdadeira força no poder local da extrema direita e o governo de centro-esquerda que luta pela reeleição de Lula.

É verdade que os números das manifestações são relativos, mas por vezes também significativos. A manifestação de sábado foi fundamental porque serviu de termómetro da força ainda viva de um bolonarismo que está em crise, mas não desapareceu.

No dia 25 de fevereiro deste ano, a manifestação a favor de Bolsonaro, acusado de ter tentado um golpe de estado militar, reuniu 185 mil pessoas em São Paulo. Foi uma multidão que impressionou a esquerda. Em 2022, também no dia 7 de setembro, festa da República, 64 mil pessoas participaram de uma manifestação na mítica praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. E agora, o que foi apresentado como contestação ao Supremo acusado de perseguição ao bolsonarismo? Segundo dados oficiais, compareceram apenas 45.700 pessoas, todas, como sempre, envoltas nas cores verde-amarela da bandeira nacional que os ultras de direita assumiram.

Mas talvez o que melhor revele um certo colapso do mito neste momento tenha sido uma série de detalhes que podem parecer insignificantes, mas que concentram um forte significado simbólico. E como dizem, o diabo está nos detalhes. No sábado, Bolsonaro teve que subir à tribuna da Avenida Paulista como vencedor, o “imortal”, como se define na medalha que oferece aos amigos e às autoridades internacionais. E esperava que eles estivessem ao seu lado, não apenas apoiando-o em sua contestação ao Supremo Tribunal Federal, mas também apoiando-o, aqueles que aspiram a sucedê-lo, entre eles um punhado de governadores que se formam para entrar na área como seus sucessores. Não foi assim. Muitos deles preferiram ficar em casa e observar os touros do lado de fora.

E talvez o mais simbólico do evento e o que mais exasperou Bolsonaro foi o fato de Bolsonaro estar prestes a não poder comparecer ao evento. Ele mesmo, o político que costuma exibir seu machismo, sua força, seu desprezo pelo feminino, seu amor por se exibir em grandes motos ou cavalos de corrida como os antigos imperadores, o imbatível que Deus, segundo ele, tirou a salvo da faca recebeu na barriga no meio da campanha que o levou à vitória e que de alguma forma o santificou.

Na verdade, ele acordou na manhã da manifestação sem voz, doente. Ele foi levado às pressas para o hospital enquanto seus seguidores o esperavam como um deus imortal. No final, conseguiu conquistar a torcida, embora ainda quase sem voz e com menos presença do que o previsível. Bolsonaro não escondia sua irritação. Será que não só os milhares de seguidores começaram a abandoná-lo, mas também os possíveis substitutos de uma direita que já existia e espera que alguém levanta a sua bandeira?

Essa direita, nem sempre extremista, liberal, anti-social, lutava há algum tempo para chegar ao poder. Embora a tinta do bolsonarismo esteja sempre em suas mãos, não será mais a do capitão que começa a vislumbrar o fim de seus sonhos de dar um golpe de estado e acabar com uma ditadura que, segundo ele, a brasileira , era muito mole e não sabia como liquidar com todos os “comunistas”.

Mas a manifestação a favor de Bolsonaro e da sua direita esdrúxula e perigosa ainda não acabou. Sua intensidade será medida no próximo dia 4 de outubro, data do comparecimento dos brasileiros às urnas. Do resultado, dependerá também a sorte da possível e desejada reeleição de Lula.

Desfazimentos e omissão

Com autoridade de ministra do Meio Ambiente e símbolo mundial na defesa da natureza e do desenvolvimento sustentável, Marina Silva disse que até o final deste século o Pantanal poderá deixar de existir. A responsabilidade por esse desfazimento não é apenas do Brasil: a crise ambiental é resultado de dois séculos, sobretudo sete décadas, de progresso mundial baseado na produção e consumo desenfreados.

Mas a responsabilidade do Brasil é especial, por termos uma das maiores economias, sermos o maior destruidor de florestas e não usarmos com seriedade nossa força política para defesa e exemplo de desenvolvimento sustentável. Apesar da ECO-92, Rio 20, da COP30, do Proálcool nos anos 1970 e do recente esforço na área de energia solar e eólica, o desfazimento que a ministra denuncia para o Pantanal pode ser percebido também para as demais florestas, inclusive a Amazônica, para os rios e as cidades. No mesmo ano em que organizamos a realização da COP30, comemoramos o aumento na produção de petróleo e estamos caminhando para autorizar sua exploração no mar a pouca distância da foz do Rio Amazonas e da cidade onde essa reunião ocorrerá. A destruição de nosso patrimônio natural é apenas uma mostra dos significativos desfazimentos que ocorrem no Brasil.


A violência urbana mostra o desfazimento do tecido social corrompido pela insegurança que caracteriza a sociedade brasileira, cercada e assustada, ameaçada por balas perdidas, assaltos e altíssimos índices de assassinatos; suas crianças impedidas de irem à escola enquanto bandidos e policiais não adotam trégua entre eles. A desconfiança e o medo são provas do desfazimento da convivialidade em cidades partidas por apartação social, com parcela presa em condomínios e parte jogada em calçadas.

A prática política é demonstração e causa de desfazimento pela corrupção generalizada, gigantescos saques e assaltos dos recursos do povo, apropriados ou roubados sob o título de emendas parlamentares enormes e sem destinação de interesse público, e pela perda de credibilidade e legitimidade na democracia usada para atender aos interesses dos políticos e dos partidos enredados no individualismo, imediatismo, eleitoralismo, sem causas e sem propósitos. O Brasil também se desfaz pela instabilidade das regras e da prática do sistema jurídico, movido muitas vezes por razões políticas, não por justiça. A união da corrupção política com a instabilidade jurídica leva ao desfazimento da democracia.

A impunidade, como o crime é tratado, especialmente, o roubo chamado de corrupção, contribui para desfazer o Brasil. Sobretudo quando se percebe a força das milícias e do crime organizado, em cidades e regiões como a Amazônia. O crescimento da dependência das drogas e a ocupação de cidades por cracolândias demonstram um desfazimento do Brasil. No lugar de reduzir a impunidade, a prisão de quase um milhão de criminosos em condições desumanas, a maioria negros, pobres e analfabetos, aumenta o sentimento de desfazimento. Igualmente indicadores são os milhões de jovens que resistem e não caem na tentação da droga, para o consumo ou o tráfico, mas sobrevivem sem escola e sem emprego, sem sonhos e sem perspectivas. Muitos deles sonhando apenas em emigrar para fugir pessoalmente do desfazimento.

O maior exemplo do desfazimento nacional está na permanência da pobreza e da desigualdade social, que assumem o atual quadro de apartação, com a população tão dividida e segregada em condomínios ou favelas que a ideia de nação parece extemporânea. De tão antigo, esse desfazimento social decorre sobretudo da omissão ao longo de décadas ignorando a necessidade de um sistema nacional robusto de educação de base para todos, independentemente da renda ou do endereço da família. Incinerando patrimônio maior do que o Pantanal: o potencial dos cérebros das crianças deixadas sem a educação de base, despreparadas para a busca da felicidade pessoal e para a construção do progresso econômico, com justiça social e equilíbrio ecológico.

A ministra símbolo mundial da ecologia nos alertou para o caso do Pantanal, mas não deve ficar omissa diante dos muitos outros incêndios que desfazem o Brasil em outros setores, especialmente o maior deles: o desprezo pela educação de base. O Brasil precisa enfrentar e punir os que fazem incêndios de florestas, mas também os que ficam omissos diante do descuido com a educação de qualidade para nossas crianças.