quinta-feira, 19 de março de 2020

Quem fala o que quer...

As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando a amizades entre os nossos povos.
Lamentavelmente, você é uma pessoa sem visão internacional nem senso comum, sem conhecer a China nem o mundo. Aconselhamos que não corra para ser o porta-voz dos EUA no Brasil, sob a pena de tropeçar feio 
Yang Wanming, embaixador da China no Brasil, sobre as declarações de deputado Eduardo (Dudu Embaixador) Bolsonaro, culpando chineses pelo Corona

Bolsonarismo testa positivo

“Quero agradecer em nome da saúde do Brasil”. Foi com essas oito palavras que Luiz Henrique Mandetta transformou a puxada de tapete do presidente da República numa escada. Na guerra de sobrevivência política em que se transformou o combate à pandemia, o ministro da Saúde convocou o “partido sanitarista”, comunidade de profissionais da saúde que, 50 anos atrás, se uniu para montar o SUS e hoje o mantém acima das rixas partidárias. Apesar dos agrados sucessivos ao presidente, o ministro o colocou na condição de quem presta serviços a este partido.

Em contrapartida, o ministro prestou-se ao papel de médico avalista de uma encenação destinada a mostrar que o presidente não está isolado. Com máscaras sob a coreografia de tira-e-bota-deixa-ficar e sentados a centímetros de distâncias uns dos outros, parecia um trupe de sobreviventes depois de anunciada a segunda baixa, do ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia), um dia depois de noticiado contágio de Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).

O presidente convocou a encenação dois dias depois de Mandetta reunir-se com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, numa tentativa de mostrar que não é a criança irresponsável que desce a rampa para brincar com manifestantes enquanto os adultos adotam medidas para evitar que o país sucumba à pandemia.


O capitão montou o palco horas antes do panelaço contra seu mandato. Estava disposto a ofuscar Mandetta e se mostrar no comando desta nau doente e desgovernada. Só que não. Bolsonaro abriu a entrevista justificando-se pelos cumprimentos aos manifestantes do domingo dizendo que, em todo o Brasil, não excederam 1 milhão de pessoas - “equivalente a 20% da população que usa o transporte coletivo em São Paulo diariamente”. Esqueceu de explicar que se ainda há muitos se expondo ao risco de entrar no metrô é porque não têm alternativa. Disse saber dos riscos que corria mas havia optado por descer a rampa porque, pela “índole militar”, ele “nunca abandonaria o povo brasileiro”.

Disposto a provar que não convocou manifestações a seu favor, na contramão dos fatos, fez a propaganda de outra, o panelaço a seu favor. Uma tentativa de se apropriar de uma expressão que, até aqui, serviu para demonstrar rechaço político, a começar pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, de onde partiu em sua marcha para Brasília. Errático, entre as estocadas na imprensa e a busca de uma autoridade perdida, Bolsonaro mostrou-se incapaz de desmontar a imagem de presidente que fez pouco caso da saúde dos brasileiros com a ideia de que o coronavírus não passa de fantasia ou guerra de panelas.

Coube a Mandetta cruzar os braços e olhar para o outro lado quando o almirante Antonio Barra Torres, diretor da Agência de Vigilância Sanitária, que falou imediatamente depois do ministro da Economia, Paulo Guedes, começou a enumerar as portarias que havia assinado. Em seguida, vieram os ministros da Justiça (Sergio Moro), da Defesa (Fernando Azevedo), da Infraestrutura (Tarcísio Freitas), do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e da Casa Civil (Braga Netto) para só então o titular da Saúde ter vez.

Mandetta, em compensação, falou mais do que todos os seus anteriores juntos. Sentiu-se tão seguro na abertura que derrapou na respostas aos jornalistas. Avançou destemido, porém, contra o escanteio para o qual o presidente tentou jogá-lo porque parece convencido de que tomou o lugar de Guedes como âncora deste governo. O ministro da Economia agiu como um condenado a rasgar todos os dogmas do estado mínimo pelos quais sempre rezou ao anunciar o socorro aos ‘uberizados’.

O ministro da Saúde entrou na guerra com as armas da propaganda: o SUS está em todas as cidades, quilombos e aldeias indígenas do país e “estará ao lado dos 215 milhões de brasileiros”. Foi destemido na comparação com outros países que, na sua contabilidade, começaram a perder pacientes com 80 casos, enquanto o Brasil registrou o primeiro óbito quando já contava 290 doentes, e propagou, como quem é capaz de encher um balde para apagar um incêndio, o lançamento de serviços de telemedicina para a orientação de pacientes à distância.

Não é o gerente do comitê de crise, hoje nas mãos do ministro da Casa Civil, mas agiu como tal ao recomendar cautela nas decisões dos Estados de fechar estradas, que poderiam vir a prejudicar a logística no trânsito de alimentos e medicamentos. E, finalmente, tratou como parte do campo de batalha o stress, a notícia enviesada, as opiniões de especialistas e até a ansiedade daqueles que não percebem que o momento é de calma. Só faltou dizer que faz parte lidar com um presidente como Bolsonaro, mas limitou-se a dizer que ele é o grande timoneiro. A saudação, àquela altura, quando o presidente havia se ocupado a falar mais da imprensa do que do futuro do Brasil, mostrava que o menino levado continuava no quintal enquanto os adultos se ocupavam com as decisões.

Mandetta retribuiu a menção feita por Fernando Azevedo e Silva. O discurso do ministro da Defesa - “Isso é uma guerra contra um inimigo invisível, feroz e dedicado” - coincidiu mais com o tom do titular da Saúde do que com aquele usado pelo comandante-em-chefe.

Aparentemente deslumbrado com seu próprio desempenho, o ministro da Saúde derrapou ao descredenciar a recomendação da Organização Mundial de Saúde de que todos sejam testados.

Mencionou o que imaginava ser a população da Coreia do Sul - “Uma coisa é vacinar 4 milhões de pessoas” - país que tem 51 milhões de habitantes, para dizer que não dava para fazer o mesmo num país de 215 milhões. Também se atrapalhou ao justificar o atrapalhado uso de máscaras.

O panelaço que se seguiu mostrou que o esforço de Bolsonaro não convenceu. Aquele convocado pelo próprio presidente não teve volume de desagravo. O placar das redes sociais dava 7 x 1, mas no balanço do dia parecia mais apropriado falar em 529 infectados e quatro mortes. Isolado na República, ontem Bolsonaro se mostrou tolhido em seu próprio governo. O vírus ainda não o derrubou, mas já feriu de morte o bolsonarismo.
Maria Cristina Fernandes

Prazo de validade de Lula está vencido e o de Bolsonaro já está perto de se esgotar

Já comentamos aqui na Tribuna da Internet que Jair Bolsonaro é um paciente cujos atos nem mesmo Sigmund Freud conseguiria explicar, mesmo se tivesse ajuda de outros grandes nomes da Psicanálise e da Psiquiatria, como Carl Jung, Jacques Lacan, Philippe Pinel e Nise da Silveira. Num dia ele aparece na TV dizendo que há pouco risco de contaminação do Brasil, dois dias depois aparece usando uma máscara de proteção. Parece brincadeira, mas não tem graça.

Com o coronavírus entrando pela porta principal do Planalto, as coisas pareciam ter mudado de figura, pois Bolsonaro adotara uma postura mais séria e condizente, apesar do ridículo da máscara cirúrgica, ao lado do ministro da Saúde, Luiz Henrique, que tem dado entrevistas normalmente, de cara limpa, mas sempre com conteúdo adequado.

Na vida tudo tem seu lado positivo e seu lado negativo. A contaminação de Fábio Wajngarten (que há meses já deveria ter sido afastado do Planalto, devido ao claríssimo conflito de interesses), serviu de justificativa para Bolsonaro pedir o cancelamento das manifestações deste domingo, que saíam como um tiro pela culatra, porque a primeira reação dos parlamentares foi derrotar o governo em três votações seguidas, na Comissão Mista de Orçamento e no plenário da Câmara.a

Mas no último domingo, lá estava Bolsonaro no meio da rua, sem máscara, interagindo com mais de 270 pessoas, quando já se sabia que 12 companheiros de voo estão contaminados.

Não foram realizadas manifestações massivas, mas ficou claro que os protestos foram contra um suposto “boicote” do Congresso e do Supremo às reformas pretendidas pelo governo, uma alegação que era e ainda é uma grotesca fake news, pois até agora a única reforma encaminhada ao Legislativo foi a previdenciária, que era muito ruim e foi aperfeiçoada e aprovada pelos parlamentares.

O fato é que Bolsonaro adora os holofotes da imprensa, procura por eles, raramente se contém e sempre acaba dando alguma declaração inconveniente. Por exemplo: ao pedir o adiamento das manifestações, ao invés de procurar reduzir o enfrentamento e possibilitar um novo acordo com o Congresso, ele fez o contrário, dizendo que a simples movimentação para os atos públicos já tinha dado um “tremendo recado para o Parlamento”.

Ainda não satisfeito, no próprio domingo voltou a provocar os dirigentes do Congresso, ao desafiar Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre a “sair às ruas.

É óbvio que o objetivo de Bolsonaro é enaltecer seu governo e demonizar os outros poderes da República, e isso já foi até alcançado. Parte considerável da população já estaria convencida de que Congresso e Supremo querem boicotar os programas de recuperação da economia que o governo ainda nem redigiu em fase final.

O texto da reforma administrativa foi concluído por Paulo Guedes no dia 27 de fevereiro. Mas o presidente e os ministros generais acharam tão ruim que até hoje estão sentados em cima, sem coragem de enviar a proposta ao Congresso – esta é a realidade, distorcida e falseada pelas fake news do Planalto e agora encoberta pelo coronavírus.

Quem saiu prejudicado no Congresso e no Supremo foi o pacote Anticrime do ministro Sérgio Moro. Acabou sendo esvaziado pelos parlamentares, que aprovaram uma legislação às avessas, a favor do crime, denominada Lei do Abuso de Autoridade, para imobilizar juízes, delegados e procuradores da Lava Jato etc. E Bolsonaro não disse uma palavra a respeito, fez olhar de paisagem, porque ele próprio e os filhos são beneficiados pela manutenção da impunidade.

Da mesma forma, o Supremo também esvaziou o Pacote Anticrime, ao mudar a jurisprudência sobre segunda instância, soltar Lula e Dirceu, e depois remeter para a Justiça Federal os crimes cometidos por parlamentares com uso de dinheiro em Caixa 2. E o presidente, mais uma vez não deu uma palavra e voltou a fazer olhar de paisagem.

Agora o coronavírus encobre essa disputa institucional, porque outro valor mais alto se alevanta, como dizia Camões, mas debaixo das cobertas dos hospitais improvisados a crise política, econômica e social se agiganta.

Acabou, Bolsonaro

Jair Bolsonaro tem um longo mandato, mas no coração de parte da população seu governo acabou, como sentenciou o haitiano em frente ao Palácio da Alvorada. O presidente, que disse que a pandemia de coronavírus era "fantasia", talvez deva se preocupar com outra epidemia mais contagiosa, o de gente insatisfeita, que começa a gritar de suas janelas que "acabou".

Acabou, Bolsonaro. Políticos e personalidades já dão as costas ao governo. A última foi Janaína Paschoal, autora do pedido de impeachment de Dilma e quase vice da chapa Bolsonaro. Da tribuna da Assembleia paulista, a deputada disse ter se arrependido do voto e defendeu que o presidente seja afastado.

Acabou, Bolsonaro. Ídolo máximo do presidente, Donald Trump recuou, admitiu que a crise de saúde pode durar meses, anunciou ajuda financeira aos americanos e seu atual discurso é o de que previu que o coronavírus seria uma pandemia, deixando Bolsonaro isolado na retórica negacionista.


Acabou, Bolsonaro. Os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal parecem cada vez mais unidos para combater as aspirações golpistas de Jair. Juntar-se a manifestações que pediam o fechamento dos Poderes e AI-5 e depois dizer que valoriza as instituições não cola mais.

Acabou, Bolsonaro. Até o empresário Luciano Hang, bolsonarista apaixonado, cansou de bater palma para maluco. Recomendou que o presidente não fosse à manifestação e cobrou "serenidade".

Acabou, Bolsonaro. O tiozão do pavê e a tia do zap já demonstram incômodo frente ao desempenho do governo, às irresponsabilidades do presidente, à quantidade de tretas desnecessárias e de piadas sem graça até para os padrões pavê e zap.

O governo vai até o final de 2022, mas a gritaria que vem das janelas é altamente contagiosa e pode tomar as ruas. Anote aí, Bolsonaro: acabou. Mesmo que seja só o sossego.

Brasil dos miseráveis


Espetáculo patético

Foi deprimente assistir ao presidente da República, fantasiado com uma máscara medicinal que lhe caía a todo o momento da face, tentar distorcer a realidade, transformando sua irresponsabilidade em ação para tranquilizar a população.

Diante deste quadro dantesco da pandemia do Covid-19, vem o presidente Bolsonaro dizer que sempre se preocupou com o povo, e por isso foi apertar as mãos de seus correligionários. Não é possível aceitar tamanha desfaçatez, sobretudo porque ele mente em várias dimensões.


Disse que sabia que não estava infectado, quando o exame de contraprova só foi feito no dia seguinte à manifestação. Garantiu que não há vídeo mostrando que convocara a reunião, quando sua fala em Roraima foi mostrada em jornais televisivos e circula pela internet.

Jair Bolsonaro aproveitou a coletiva de imprensa sobre coronavírus para fazer não uma autocrítica, mas um auto-elogio de seu governo, pedindo aplausos para si mesmo, o “técnico” de “um time que está ganhando de goleada”. E insistiu no erro, ao alertar: “Não se surpreenda se você me ver (sic), nos próximos dias, entrando no metrô lotado em São Paulo ou na barcaça Rio-Niterói”.

Mesmo admitindo que a pandemia é grave, disse que o país já enfrentou problemas mais graves no passado sem tanta repercussão na mídia, mas não deu exemplos. Para todos os líderes mundiais, a pandemia do Covid-19 é a mais grave de uma geração.

“Minha obrigação de chefe de Estado é antecipar os problemas e levar a verdade que não ultrapasse limite do pânico”, alegou desajeitadamente.

O panelaço de ontem à noite nas principais cidades do Brasil, que fora precedido por outro, na terça-feira, mostra que o presidente Bolsonaro já perdeu uma parte razoável de seu eleitorado na classe média.

O sinal que essa manifestação nos dá é de que o apoio ao presidente hoje é apenas de uma minoria radical. O panelaço foi parte fundamental para a criação do clima favorável ao impeachment da ex-presidente Dilma, e é uma demonstração de protesto da classe média, que começa a considerar que o governo não está atendendo às necessidades do momento.

Com as atitudes que tomou em relação ao coronavirus, Bolsonaro demonstrou claramente que não é preparado para a presidência da República. Na hora em que ele coloca o país em risco porque demora a tomar providências, fingindo que é tudo fantasia da grande mídia, chega-se à conclusão de que o presidente está fora da realidade.
Tanto assim que minimizou panelaços, e convocou outro a seu favor, mais uma vez para tentar confundir. Ao distorcer a realidade para mitigar a frustração que vem provocando em vasta parte do eleitorado que já se arrepende de tê-lo como presidente, que já se reflete nas redes sociais e nas pesquisas de opinião, Bolsonaro mostra que tem apego apenas a seus interesses eleitorais.

Esse cinismo facilmente desmascarado nos tempos atuais, em que tudo é registrado em qualquer lugar do mundo pelos novos meios, só faz aumentar o repúdio a um tipo de político que usa o povo em seu benefício. Ele é um péssimo exemplo, e se transforma num perigo à saúde pública além de ser agressivo, polêmico e ter dividido o país.

É de dar engulhos ouvirem-se seguidas mentiras da boca daquele que deveria representar o respeito às leis e a responsabilidade social, especialmente neste momento em que, além dos problemas inerentes à pandemia, vemos escancarada nossa desigualdade social extrema, que nos traz mais graves dificuldades para cuidar da saúde pública.

A rápida disseminação do vírus Covid-19 ameaça a todos, mas principalmente aos mais pobres, que moram amontoados em comunidades sem esgotamento sanitário ou limpeza pública. Esses precisam, além do dinheiro que o governo acertadamente vai distribuir, do exemplo do presidente da República para resistirem a esses tempos muito duros que temos pela frente.

Não precisamos de um espetáculo patético de ministros mascarados sem necessidade, só para fazer fotos.

A crise que definirá nossa geração

Nesta semana, recebi um email profundamente triste. Uma antiga colega jornalista havia falecido. Nenhuma relação com o coronavírus. Mas o mesmo email trazia uma segunda notícia dramática: a cerimônia prevista para seus obséquios estava cancelada. Desta vez sim, a culpa era do coronavírus. Um enterro solitário.

Não faltaram casamentos adiados, ampliando por alguns meses a vida de solteiro de alguns. Todos eles serão remarcados? As cortinas de milhares de teatros caíram, derrubando milhares de empregos. Todos eles voltarão aos palcos?

O que parecia uma história exótica de uma região da China ganhou, de forma silenciosa e invisível, o resto do mundo. Por semanas, nos corredores da OMS, eu ouvia de dirigentes e técnicos: “Acordem, isso tudo é muito grave”.

Agora, depois de muita hesitação, o continente europeu e o resto do Ocidente começaram a entender a dimensão do problema. Descobrimos um mundo vulnerável e dependente.


A partir dessa semana, quase 200 milhões de pessoas estão em quarentena completa ou parcial pela Europa. O vírus colocou uma parte importante do mundo em isolamento. Um exílio em suas casas, um exílio do contato social.

Sempre cauteloso com suas palavras, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, foi claro nesta segunda-feira sobre a dimensão da crise. “Ela definirá nossa geração”, afirmou. Ela testará nossa confiança na ciência e coloca em xeque a relação entre lideranças políticas e seus cidadãos, justamente no momento em que essa relação está corroída.

Dramático é folhear nos últimos dias os jornais italianos e descobrir que a seção de óbitos conta com dez páginas. O coronavírus só é invisível para quem não quer vê-lo.

A pandemia também traz o pior e melhor da sociedade. Descobrimos a falta de escrúpulos de quem usa tal situação politicamente. E aqueles que, ignorando os cientistas, colocam uma população em risco em nome de um egoísmo que flerta com o crime. Na França, apesar do vírus bater à porta, eleições municipais foram mantidas, obrigado as pessoas a se encontrar em locais de votos. No Brasil, Jair Bolsonaro deu uma clara demonstração de que não sabe o papel de um presidente ao convocar as pessoas às ruas.

Nas filas dos supermercados ou de serviços essenciais, descobrimos quem é quem. Na espera para comprar botijão de gás, enquanto uma senhora que estava sendo atendida buscava suas moedas e sua idade a levava mais tempo para encontrá-las, alguém tentou furar a fila sob a justificativa de que não tinha a vida toda para esperar.

Mas também presenciei como mães e pais se organizavam numa farmácia para dividir as fraldas ainda existentes no tamanho que precisavam. A solidariedade deve ser mais contagiosa que o vírus.

Ficamos aliviados quando ouvimos histórias de como vizinhos saíram às suas sacadas para cantar juntos na Itália e na Espanha. Um sentimento de uma comunidade real surgido às sombras do mundo virtual?

Mas a quarentena também impõe perguntas desconfortáveis ao mundo. Como é que certos governos gastam mais em armas que em remédios? Em 2018, o mundo destinou 1,8 trilhão de dólares de seus orçamentos públicos para o setor militar. A OMS estima que precisa de 7 bilhões de dólares para lidar com o vírus.

Outra pergunta inconveniente se refere ao destino dos mais pobres nessa crise. Para uma classe privilegiada do mundo, nunca foi tão fácil vencer uma pandemia. Fechados, temos as janelas abertas ao mundo graças às dezenas de conexões e possibilidades tecnológicas. Para aqueles em campos de refugiados, estão mais presos do que nunca.

Curioso como, num momento de agonia coletiva, a mão invisível do mercado parece não ter poderes para lidar com um inimigo. Resta apenas a ironia de ver ultraliberais perguntando: onde está o estado? A constatação é simples: a dificuldade em dar uma resposta ao vírus é o preço que o planeta está pagando por décadas investindo pouco no serviço público.

Desconcertante também é a pergunta sobre onde foram parar os líderes. Aqueles que deveriam chamar para si a responsabilidade pelo destino do mundo optaram pela miopia de uma disputa política por mandatos e influência.

Inquestionável por décadas, a abertura de fronteiras também foi suspensa e a Europa, por algumas semanas, voltará a manter a desconfiança sobre seus vizinhos. O fechamento, agora, pode servir como uma insurreição das consciências de que os luxos do século 21 foram conquistas sociais que o século 20 nos deixou. E conquistas que envolveram o sangue de muitos.

As mesinhas nas calçadas pela Europa não são apenas um hábito de lazer. Trata-se de uma parcela do contrato social de democracias vivas. A garantia da segurança pública, a garantia da renda, a garantia do tempo de lazer, a garantia de participação. Ao vê-las vazias, recolhidas e empilhadas, fica a sombra da possibilidade de que nada é irreversível.

E se usássemos essa quarentena para desenhar um modelo para ampliar a democracia e garantir que a ocupação dos locais públicos seja um direito universal? E se o isolamento fosse usado como incubadora de uma nova geração de líderes? E se o isolamento fosse aproveitado para ajudar nossos filhos sem escolas por semanas a desenhar a letra A? A de ágora.

Em seu livro A peste, Albert Camus conta como a doença que se espalhava pela cidade de Orã gerava em cada um dos moradores um sentimento diferente de exílio e isolamento. Distância daqueles que amamos, de nosso país de origem e até de uma amante.

No começo, todos queriam acelerar o tempo para decretar o fim da peste. Com o passar do tempo, alguns desistiram e outros criaram fantasias paralelas para manter a razão. Todos eram vítimas da mesma epidemia. Todos estavam em um exílio de seus universos. Mas se isso os unia, todos viviam a profunda desconfiança mútua. O resultado: estavam isolados em seu sofrimento.

O nosso exílio que começa nesta semana pela Europa e que pode chegar a outras partes do mundo não pode ser desperdiçado. Uma oportunidade única para a sociedade, fechada, olhar para si mesma e se examinar. Temos como construir uma geração fincada na responsabilidade social?

Entre as milhares de mensagens que circulam pelo Velho Continente nos últimos dias, uma delas tocava no coração do orgulhoso povo europeu, repleto de batalhas. “Nossos avós foram convocados a sair de casa para lutar por sua sobrevivência. Nós, desta vez, estamos sendo convocados a ficar em casa”.

A OMS garante que há como vencer o vírus. Mas ele deixará como legado uma necessidade real de repensar nossa existência.

COVIDiário. Menina, estás à janela

Dia 4

Um ecrã dividido em quatro partes, do lado de lá colegas empenhados em, apesar de todos os contratempos, fechar revistas e meter edições na rua (ou num telemóvel, tablet ou computador perto de si). Nas novas reuniões digitais, uma grande diferença: de quando em vez aparecem nas janelas umas cabeças pequenas – as dos filhos agitados a correr lá atrás ou curiosos a tentar perceber o que estão os pais a fazer. Principal desafio do teletrabalho: gerir (e nalguns casos, como o meu, por vezes mesmo afugentar) os novos habitantes do escritório: os familiares e animais domésticos. Felizmente, como alguém dizia com graça, o trânsito para chegar ao trabalho agora é muito pouco: é só da cozinha para a sala.


Confesso-me antiquada: sou aquela pessoa que detesta o teletrabalho. Sempre resisti à ideia com todas as forças. Desincentivava-o ao máximo na redação, porque nesta área específica, trabalhar em equipa e cara a cara só tem vantagens. Na informação as coisas acontecem ao minuto e é preciso agilmente trocar ideias, debater ângulos, acertar planos. Esta conversa para o lado, que acontece a toda a hora, acrescenta valor. Os melhores trabalhos são os que são pensados em conjunto, os melhores títulos normalmente não saem à primeira, são pensados em voz alta. O facto de paginarmos uma revista também aconselha presença física – é muito mais fácil de dar indicações e testar caminhos quando vimos, juntos, o que está a acontecer.

E de, repente, um bicho chamado coronavírus obrigou-me a enfiar esta ideia no cesto das convicções de outros tempos. A descobrir as múltiplas vantagens do Teams e do Zoom (as apps mais descarregadas na sexta-feira), a falar (ainda mais) pelo WhatsApp, a mandar recados rápidos pelo Skype for Business.

E não é que, mal ou bem, é possível? Os primeiros tempos foram de sensação de esquizofrenia multiplataforma, com o cérebro em “tilt” com tanto bombardeamento e solicitação.

E depois, como em tudo, acabamos por nos habituar e ir levando a coisa – com muito empenho e sentido de responsabilidade de todos. Primeira regra a aprender nesta novidade do teletrabalho: quando um “burro” fala, o outro baixa as orelhas. Falarem todos ao mesmo tempo numa reunião virtual é caótico, porque o ecrã vai mostrando os que têm a palavra. Segunda regra: nos grupos de trabalho não pode haver memes nem piadas nem partilhas de histórias irrelevantes. Caso contrário ficam perdidas as mensagens realmente importantes. Faça-se outro só para a galhofa.

Amanhã testaremos um encontro virtual com 12 pessoas para a rotineira reunião de planeamento semanal. É à distância, mas “tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”, como dizia o povo quando, na primeira invasão francesa, Junot se instalou na cidade do distrito de Santarém. O inimigo agora é o Covid-19, e as armas para o combater a ciência e a tecnologia. Aproveitemo-las ao máximo.

Pensamento do Dia


Com os nervos à flor da pele

Num gesto espontâneo, cidadãos foram à varanda de seus apartamentos na noite de terça-feira em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília e outras cidades para protestar contra o presidente Jair Bolsonaro.

São brasileiros cansados de um presidente cujo único talento parece ser a capacidade de ampliar as crises que deveria administrar e conter. O valor simbólico dessa manifestação, independentemente de sua dimensão, é muito maior do que o ato golpista de domingo passado, em que grupos bolsonaristas, insuflados pelo presidente, foram às ruas em algumas cidades para pedir o fechamento do Congresso e a prisão de políticos e de ministros do Supremo Tribunal Federal.


No domingo, Bolsonaro festejou o que chamou de manifestação “espontânea” de seus apoiadores, e disse que lá estava o “povo”. Esse devaneio populista começou a ser desfeito na noite de anteontem, quando o presidente experimentou a exasperação sincera de quem está cansado de suas patranhas e resolveu demonstrar publicamente essa insatisfação.

Além disso, Bolsonaro vem perdendo popularidade de forma acelerada nas redes sociais, segundo a percepção do próprio entorno do presidente, como informou o Estado. Como se sabe, a única coisa que Bolsonaro leva a sério são os cliques e as interações do mundo virtual, que ele toma por real. Ante a perspectiva de perder o controle no ambiente em que até agora navegava soberano – por ter menosprezado uma epidemia letal e que está causando imensos transtornos e incertezas para todos os brasileiros –, Bolsonaro tentou parecer mais cordato. “Superar esse desafio depende de cada um de nós”, escreveu no Twitter, pregando “serenidade” e pedindo que “população e governo, junto com os demais Poderes”, somem “esforços necessários para proteger nosso povo”. Vindo de quem até horas antes se dizia vítima de um “golpe”, denunciava a “disputa de poder” por parte “desses caras”, em referência aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, e criticava as medidas sensatas dos governadores para conter a pandemia, foi um avanço. Resta saber até onde irá a “moderação” de Bolsonaro.

Na mesma frase em que pregava a união de todos para enfrentar a crise, o presidente disse que “o caos só interessa aos que querem o pior para o Brasil”. Ou seja, mesmo quando precisa demonstrar que governa para todos e no interesse coletivo, continua a valer-se de suas fantasias conspirativas para propagar sua mensagem divisionista e de ódio, com a qual construiu sua carreira política e chegou à Presidência. O lobo pode até perder o pelo, mas jamais perderá o vício.

Se estivesse realmente empenhado em se emendar e agir como presidente da República, e não como chefe de facção, Bolsonaro teria condenado categoricamente a convocação, pelas redes bolsonaristas, de uma nova manifestação governista, marcada para 31 de março, aniversário do golpe de 1964, explicitamente destinada a defender um novo golpe. Até agora não o fez. Pior: pelo Twitter, informou que ontem haveria um “panelaço” a favor de seu governo, como resposta aos protestos daqueles que, presos em suas casas por causa da quarentena imposta pela pandemia e com os nervos à flor da pele, não suportam mais um governante que tudo faz para politizar a epidemia, agravando uma situação que já é crítica.

Assim, de nada vale o mise-en-scène patético de um presidente que agora aparece com seus ministros, todos com máscaras, para tentar mostrar serviço, pois a presença de Bolsonaro já foi dispensada por aqueles que estão à frente dos esforços contra a pandemia, inclusive no próprio governo. Hoje, está claro que Bolsonaro não é um presidente, mas um estorvo. Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem feito até aqui um bom trabalho, corre o risco de perder o emprego para o diretor da Anvisa, Antonio Barra Torres, um médico bolsonarista que, para agradar ao chefe, não viu nenhum risco de contaminação da covid-19 numa manifestação governista da qual participou o presidente.

Até aqui, Bolsonaro viveu de inventar crises. Na primeira crise real de seu governo, mostrou do que é feito.

Pobreza debaixo do tapete

A rede de proteção social tem de ser aberta agora para que os mais pobres não caiam no abismo da pobreza. Emergências têm de ser levadas a sério
Marcelo Medeiros, professor na Universidade de Princeton

O pastelão e as panelas

A cena de Jair Bolsonaro tapando os olhos com uma máscara cirúrgica, em tentativa desastrada de cobrir o nariz e a boca, produziu uma boa alegoria do drama brasileiro. Assombrado pela pandemia do coronavírus, o país se vê nas mãos de um sujeito que não consegue proteger o próprio rosto.

O pastelão do Planalto lembrou um quadro dos Trapalhões. A pretexto de mostrar preocupação com a doença, o capitão e seus ministros se fantasiaram de médicos. O uso cenográfico das máscaras contrariou as normas sanitárias. Em outro momento Didi Mocó, Bolsonaro desistiu do teatro e pendurou sua peça na orelha.


O presidente dedicou a maior parte da entrevista a atacar a imprensa e provocar adversários. Um dos alvos foi o governador do Rio, que pediu ao povo que evitasse a praia. O capitão também insistiu no discurso de que a mídia fomenta a “histeria”. Uma afronta a jornalistas e profissionais de saúde que tentam informar a população e reduzir a velocidade do contágio.

O jogo de Bolsonaro é outro. Ontem ele mentiu diante das câmeras ao negar que tenha incentivado as manifestações do último domingo. Para seu azar, a farsa foi derrubada em tempo real. Além de distribuir convocações pelo WhatsApp, ele usou uma solenidade militar para estimular a participação nos atos.

Ao comentar as marchas, que contrariaram o esforço para evitar aglomerações, o capitão disse que “sabia dos riscos que corria”. Esqueceu de dizer que também pôs a saúde dos outros em xeque. Ao furar a norma de isolamento, ele ainda não tinha a contraprova do exame para saber se estava infectado.

Num surto de sinceridade, Bolsonaro admitiu a falta de estrutura para enfrentar a pandemia. “Nosso sistema de saúde não tem condições de atender uma quantidade considerável de pacientes”, disse.

Em seguida, voltou a fazer propaganda de si mesmo. “Nosso time está ganhando de goleada. Então vamos fazer justiça, vamos elogiar seu técnico, que se chama Jair Bolsonaro”, pediu. Pelo volume dos panelaços em diversas capitais, faltou combinar com a torcida.

Retorno à Idade Média?

O coronavírus começa a causar estragos na Espanha. Ou, melhor dizendo, o espanto causado por esse vírus proveniente da China ocupa todos os noticiários e rádios e jornais, escolas e universidades, bibliotecas e teatros foram fechados, as Fallas de Valência foram paralisadas, as sessões plenárias das Cortes foram suspensas, os eventos esportivos serão realizados sem público, apesar de os distribuidores dizerem que haverá reposição as prateleiras dos supermercados são vistas semivazias, o que indica que as pessoas carregam produtos de primeira necessidade para o que entendem que será um longo isolamento, e, claro, nas conversas privadas não se fala de outra coisa.

Tudo isso, em termos práticos, é muito exagerado, mas não há nada a fazer: a Espanha tem medo, e os Governos, o nacional e os regionais, fazem frente à pavorosa doença com medidas cada vez mais rigorosas, que, de uma maneira geral, os espanhóis aprovam e, inclusive, exigem que sejam mais extensas e intensas. Estatísticas oficiais dizem que até o dia de hoje, 18 de março, há 309 mortes por culpa da pandemia e que é por gosto que, por exemplo, a simples gripe seja mais assassina que ela porque causa pelo menos 600 mortes anuais, e que são muitos mais os que se recuperam do coronavírus que os que perecem por culpa dele, que a Espanha tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo —acima da média europeia— e que o trabalho que os médicos e profissionais sanitários vêm realizado em todo o país é eficiente e está à altura do desafio etc.


Jamais as estatísticas foram capazes de tranquilizar uma sociedade corroída pelo pânico, e esta é uma boa ocasião para comprovar isso. Em meio à civilização reapareceu a Idade Média, o que significa que muitas coisas mudaram desde então, mas muitas outras, não. Por exemplo: o medo da peste. E, a propósito, a literatura tem um renascer inevitável nestes períodos de medo coletivo: quando não entende o que acontece, uma sociedade vai aos livros para ver se eles o explicam. O pior romance de Albert Camus, A peste, tem um súbito renascimento e tanto na França como na Espanha são feitas reedições, e esse livro medíocre se transformou em um best-seller.

Ninguém parece notar que nada disso poderia estar ocorrendo no mundo se a China Popular fosse um país livre e democrático, e não a ditadura que é. Pelo menos um médico prestigioso, e talvez fossem vários, detectou esse vírus com muita antecipação e, em vez de tomar medidas correspondentes, o Governo tentou ocultar a notícia, silenciou essa voz ou essas vozes sensatas e tratou de impedir que a notícia se difundisse, como fazem todas as ditaduras. Assim, como em Chernobyl, perdeu-se muito tempo para encontrar uma vacina. Só se reconheceu a aparição da praga quando esta já se expandia. É bom que ocorra isto agora e o mundo saiba de que o verdadeiro progresso está mutilado sempre que não está acompanhado de liberdade. Entenderão isso de uma vez esses insensatos que acreditam que o exemplo da China, ou seja, o mercado livre com uma ditadura política, é um bom modelo para o Terceiro Mundo? Não existe tal coisa: o ocorrido com o coronavírus deveria abrir os olhos dos cegos.

A peste foi ao longo da história um dos piores pesadelos da humanidade. Sobretudo na Idade Média. Era o que desesperava e enlouquecia os nossos velhos ancestrais. Encerrados por trás das robustas muralhas que tinham erigido para suas cidades, defendidos por fossos cheios de águas envenenadas e pontes levadiças, não temiam tanto esses inimigos tangíveis contra os quais podiam se defender de igual para igual, enfrentá-los com espadas, facas e lanças. Mas a peste não era humana, era obra dos demônios, um castigo de Deus que recaía sobre a massa cidadã e golpeava por igual pecadores e inocentes, contra a qual não havia nada a fazer, salvo rezar e se arrepender dos pecados cometidos. A morte estava ali, todo-poderosa, e depois dela as chamas eternas do inferno. A irracionalidade eclodia em qualquer parte, e havia cidades que tratavam de aplacar a praga infernal oferecendo-lhe sacrifícios humanos, de bruxas, bruxos, incrédulos, pecadores não arrependidos, insubmissos e rebeldes. Quando Flaubert viajou ao Egito, ainda viu leprosos que percorriam as ruas tocando sinos para advertir às pessoas para que se afastassem se não quisessem ver (e se contagiar com) suas chagas purulentas.

Por isso, a peste quase não aparece nas novelas de cavalarias, que são outro aspecto, mais positivo, da Idade Média: nelas há proezas físicas extraordinárias, Tirante, o Branco, derrota sozinho gigantescos exércitos. Mas os adversários dos cavalheiros andantes são seres humanos, não diabos, e o que o homem medieval teme são os diabos, esses demônios que, escondidos no coração das epidemias, golpeiam e matam sem discriminar culpados e inocentes.

Esse velho terror não desapareceu de todo, apesar dos extraordinários progressos da civilização. Todo mundo sabe que, como ocorreu com a AIDS e com o ebola, o coronavírus será uma pandemia passageira, para a qual os cientistas dos países mais avançados logo encontrarão uma vacina para nos defender contra ela, e que tudo isto terminará e será, dentro de algum tempo, uma notícia murcha da qual as pessoas mal se recordarão.

O que não passará é o medo da morte, do além, que é o que se aninha no coração destes terrores coletivos que são o temor em relação às pestes. A religião aplaca esse medo, mas nunca o extingue, sempre fica, no fundo dos crentes, esse mal-estar que aumenta às vezes e se transforma em medo pânico, do que haverá uma vez que se cruze aquele limiar que separa a vida do que há além dela: a extinção total e para sempre? Essa fabulosa divisão entre o céu para os bons e o inferno para os malvados de um deus brincalhão, que as religiões prognosticam? Alguma outra forma de sobrevivência que não foram capazes de notar os sábios, os filósofos, os teólogos, os cientistas? A peste de repente traz estas perguntas, que na vida cotidiana normal estão confinadas nas profundezas da personalidade humana, para o momento presente, e homens e mulheres devem responder a elas, assumindo sua condição de seres passageiros. Para todos nós é difícil aceitar que tudo de belo que tem a vida, a aventura permanente que ela é ou poderia ser, é obra exclusiva da morte, de saber que em algum momento esta vida terá ponto final. Que se a morte não existisse a vida seria imensamente chata, sem aventura nem mistério, uma repetição cacofônica de experiências até a saciedade mais truculenta e estúpida. Que é graças à morte que existem o amor, o desejo, a fantasia, as artes, a ciência, os livros, a cultura, ou seja, todas aquelas coisas que tornam a vida suportável, imprevisível e excitante. A razão nos explica isso, mas a injustiça que também nos habita nos impede de aceitá-lo. O terror à peste é, simplesmente, o medo da morte que nos acompanhará sempre como uma sombra.

Mario Vargas Llosa

Contaminação e isolamento

O contato entre sociedades com culturas diferenciadas produz um processo complexo. Há o lado terrível da dominação causado por diferenças tecnológicas, mas uma dimensão importante ocorre implicitamente. Refiro-me, invocando o que aprendi com Darcy Ribeiro, ao plano biológico, responsável invisível e perturbador por contaminação porque o povo que se julga superior além dos seus navios, canhões e missionários carrega germes desconhecidos do povo contatado.

Muitas dessas sociedades foram extintas no processo irônico de sua “civilização”.


Temos hoje — debaixo da égide de um supercapitalismo global — uma imensa comunicabilidade entre países, culturas e sociedades, e o resultado é uma formidável contaminação. Uma inesperada pandemia, a despeito de todos os nossos avanços científicos.


Como um hóspede não convidado, o coronavírus repete outros surtos mortais que foram uma tática para dizimar populações “selvagens”. É o feitiço contra o feiticeiro? Não sei. Apenas remarco que há sempre o inesperado.

Hoje, o mortal agente patológico não é um poder colonial. É muito mais complicado porque um vírus não tem ideologia ou propósito: ele atinge países ricos e pobres; e culturas com os costumes mais diferenciados. Num nível crítico, ele desafia a onipotência moderna. Se tudo sabemos, como não fomos capazes de prever algo tão trivial como uma mera gripe?

Uma gripe cujo ponto-chave para cura é o isolamento, o que, por outro lado, obriga a ver costumes com um problema. Como mudar hábitos enraizados e automáticos, se a quarentena e o controle do contato físico são, em muitos lugares, sinônimos de uma sofrida solidão? Como evitar estender a mão quando “não dar a mão” é um ato de desprezo e uma ofensa mesmo em sociedades nas quais os contatos corporais não são costumeiros?

Aliás, na América dos livres e solitários o presidente Trump recusou rudemente “apertar a mão” de Nancy Pelosi, líder dos democratas, em pleno Congresso Nacional. O gesto de Trump é um exemplo acabado do que nós, brasileiros, chamamos de “desfeita”ou “má-educação”. Fosse aqui, tal ato resultaria num oficial “bate-boca”. Lá houve um controle completo por parte da ofendida (um valor da cultura americana) e, como resposta, o seu gesto recíproco de, em largos gestos, rasgar (algo impensável no Brasil) o discurso presidencial...

Aqui, fizemos a independência com um grito que afasta e liga, pois mantivemos tanto a realeza quanto a escravidão. O “bate-boca” constrói laços. Ele faz e qualifica pessoas.

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Descobrimos as doenças transmissíveis, mas até hoje não vemos claramente como somos seres da contaminação. Contaminamos por palavras e pelos gestos, com beijos ou vírus, pois o que nos torna humanos — nem sempre “sapiens”— é a necessidade vital de nos comunicarmos uns com os outros.

Comunicar é a chave do humano. Seja para trocar palavras — quando damos um “bom dia!” ou um “vá pro o inferno!” ou um “foda-se” —, a palavra da moda; seja para trocar dinheiro por objetos naquilo que os economistas chamam significativamente de “bens”. Ou quando contratamos serviços, pois não há hoje no mundo (exceto em coletividades tribais) quem possa ser caçador, pescador, agricultor e compadre ao mesmo tempo!

No Brasil, fazemos como o Cristo Redentor: abrimos os braços para quem nos visita. Abraçar e pegar são atos constitutivos das nossas vidas. Quando rompemos, porém, empurramos. Ficamos “longe”.

Neste conjunto cultural, é obvio que o isolamento não é somente uma questão de prevenção. É um problema social e psicológico profundo quando uma doença obriga a realizar o contrário do que somos e procedemos.

Não deve ser por acaso que na Espanha e na Itália haja virulência. São povos que se abraçam e beijam a cada encontro. São sociedades relacionais como a nossa. Nelas, as relações importam tanto quanto nossas individualidades.

O vírus obriga a disciplinar manifestações “naturais”. Convenhamos que essa aparição dos hábitos costumeiros como um problema não é pacífica. Contra o vírus não há lei ou polícia. Há a necessidade de uma reconsideração das formas de vida o que, como meu filho biólogo indicou, é um programa contrário a hábitos queridos e realizados — como tudo o que é cultural — sem pensar.

Deus nos ajude quando o presidente diz que isso é uma fantasia.