sábado, 27 de abril de 2019

Paisagem brasileira


A chance da educação

A chance de uma pessoa se tornar um Machado de Assis ou um Einstein é menor do que a probabilidade de ganhar sozinho na loteria com apenas uma aposta. Mas quem não tiver comprado o bilhete antes do sorteio não tem probabilidade de ganhar, quem na idade certa não aprendeu a escrever bem e a entender matemática não terá chance de se fazer um grande escritor ou cientista . Por isto, negar educação com a máxima qualidade a uma criança é como negar a algumas pessoas o direito de comprar bilhete de loteria.

É isto que fazemos no Brasil: a quase totalidade das crianças pobres brasileiras estão impedidas da chance de usar o talento pessoal para tentar ser um novo Machado ou Einstein. Dificilmente conseguirão chegar a este nível de sucesso, mas sem o bilhete da escola não terão chance.

O grave é que na loteria quem perde é a pessoa que não joga, até porque ela não cria riqueza, apenas concentra as apostas e entrega a soma ao vencedor, na educação perde o país inteiro. Não pelos gênios, que serão sempre rarissimos, mas pelas multidões de bons profissionais, artistas, escritores que ajudariam a criar um Brasil mais rico, eficiente, justo, sustentável, se tivessem tido a chance de estudar.

Apesar disto, ninguém se rebela contra a prática histórica no Brasil de impedir milhões da chance de receber uma boa educação. Imagine a revolução violenta que ocorreria se os pobres brasileiros passassem em frente de uma casa lotérica sem direito de entrar nela e fazer uma aposta. Mas eles passam docilmente e até sem desejo nem sonho em frente às boas escolas onde seus filhos não entram. Aceitam isto tranquilamente porque está incutido no Brasil que educção não é o caminho para a riqueza e o bem estar de um povo, que a educação de qualidade é um direito apenas dos que podem pagar e, além disto, estudar é muito mais difícil do que jogar na loteria.

Estes são nossos desafios: convencer ao Brasil que educação é o caminho, que uma criança fora da escola é um desperdício de potencial para o País, que também podemos ser campeões com os cérebros de nosso povo, e não só com os pés no futebol, e que vale a pena apostar em uma loteria que é jogada todos os dias, com esforço diário, para um prêmio que só vem décadas depois. 

Pátria envergonhada

Vivo envergonhado de ser nesta (pátria) contemporâneo de alguns dos mais notórios compatriotas e, por sê-lo, responsável moral de todas as patifarias que nela cometem
Miguel Torga

Um delírio ambiental

Não tem risco de dar certo a intervenção policial-militar do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com a nomeação de um coronel, dois tenentes-coronéis e dois majores da Polícia Militar de São Paulo para comandar a instituição. A transformação do tema da sustentabilidade num caso de polícia, por capricho pessoal do ministro, não tem precedentes na história das políticas públicas ambientais do país, inauguradas no governo José Sarney, quando foi lançado o programa Nossa Natureza, do qual resultou a fusão de vários órgãos e a criação do Ibama.


Nada contra os militares individualmente, até porque são homens que atuaram intensamente no policiamento florestal. Entretanto, a área exige interdisciplinaridade para uma boa gestão, o que a formação policial simplesmente não garante, embora seja importante para combater os crimes ambientais. Como diria o falecido astrofísico norte-americano Carl Sagan, é o tipo de decisão que somente pode ser atribuída ao “analfabetismo científico”, que está em alta em razão dos conceitos estapafúrdios do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, com repercussão mundial desde a saída do governo norte-americano do Acordo de Paris.

A propósito de um comentário de Platão sobre o ensino de matemática às crianças do Egito Antigo, Sagan dizia que a ignorância em ciência e matemática nos dias atuais é muito mais danosa do que em qualquer outra época. A raiz dos problemas ambientais brasileiros é uma cultura atrasada, que estimula e protege agressões ao meio ambiente, muitas vezes insanáveis, tanto no meio urbano como no rural. É por isso que muitos ignoram e negam o aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo e o desflorestamento da Amazônia.

É óbvio que a linha adotada pelo governo em relação aos problemas ambientais provocará novos desastres, como os já ocorridos em razão de ações governamentais realizadas na marra, contra pareceres originais dos órgãos ambientais, como é o caso da Usina de Belo Monte, no Pará. Sem falar das licenças ambientais, da fiscalização e do controle que deveriam ter evitado as tragédias de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, nas bacias do Rio Doce e São Francisco, respectivamente. A agenda ambiental do governo está com sinal trocado; em vez da busca de soluções em base científicas, a opção é pela truculência administrativa contra pesquisadores e cientistas.

Há inúmeros exemplos históricos de resultados desastrosos em consequência de políticas que, por razões ideológicas e religiosas, trataram a ciência como caso de polícia, como a perseguição do Colégio de Roma aos matemáticos italianos, porque consideravam uma heresia o cálculo infinitesimal, que foi fundamental para o desenvolvimento da Ciência e a Revolução Industrial na Inglaterra. O mesmo aconteceu com a medicina europeia na Idade Média, com a perseguição aos médicos seculares e o desprezo pela cultura judaica e islâmica por parte da Inquisição espanhola. O fundamentalismo ideológico preside decisões como a tomada na intervenção policial-militar no ICMBio.

Bolsonaro é o seu pior adversário

O problema não é Bolsonaro meter-se em tudo e em qualquer coisa. Lula chegou a opinar sobre o cardápio de comidas servidas pelo Itamaraty em recepções oficiais. E Dilma em campanhas de propaganda do governo.

O problema é Bolsonaro vetar a exibição de um comercial de TV do Banco do Brasil só porque a maioria dos personagens ali mostrados era negra, jovem, e dançava rap. O diretor de marketing do banco perdeu o emprego por isso.

O presidente do banco, não. Havia aprovado o comercial. Mas ao receber um telefonema de reclamação de Bolsonaro, concordou com ele, proibiu o comercial e pôs a culpa no diretor demitido em seguida.

Essa foi só mais uma trapalhada das tantas protagonizadas pelo presidente da República desde que tomou posse. Cada uma delas subtrai ao governo mais um naco de popularidade, conforme atestam as pesquisas.

No campo do comportamento, chamemos assim, Bolsonaro, ontem, cometeu outra atrapalhada. Perguntaram-lhe sobre turistas estrangeiros atraídos pela liberalidade dos costumes brasileiros. Então Bolsonaro respondeu assim:
"Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro."



Ouviu de volta do escritor Paulo Coelho: “Mulheres brasileiras não são uma commodity. Turismo sexual não é razão para visitar o Brasil.

Racismo “é a discriminação social baseada no conceito de que existem diferentes raças humanas e que uma é superior às outras”.

Homofobia significa “aversão irreprimível, repugnância, medo, ódio, preconceito que algumas pessoas, ou grupos nutrem contra os homossexuais, lésbicas, bissexuais e transexuais”.

Misoginia “é a repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres”.

Com essas e outras, Bolsonaro dá razão aos seus adversários que o acusam de ser racista, homofóbico e misógino

Brasil do 'taokei'


Recruta Zero

São mesmo outros tempos. Hoje, pode-se dizer qualquer coisa do Exército sem que nada aconteça. Mas, nos anos 60, quando houve o que Jair Bolsonaro afirma que não foi ditadura, era diferente. Estudantes, jornalistas ou simples cidadãos, tínhamos de andar na ponta dos pés. Uma referência aos militares como “gorilas”, feita de passagem para um amigo na porta do seu prédio, podia ser ouvida pelo porteiro e relatada ao general de pijama que morava no seu andar. Sei disso porque meu vizinho general, aliás, de pijama, veio me cobrar no hall do elevador.

Em 1966, Nara Leão, a musa do protesto, disse a um jornal que os militares “podiam entender de canhão e metralhadora, mas não ‘pescavam’ nada de política”. E que, mesmo assim, no dia do golpe, tinham usado “veículos com pneu furado”. Costa e Silva, ministro da Guerra, quis enquadrar Nara na Lei de Segurança Nacional. O que motivou Ferreira Gullar a escrever: “Moço, não se meta/ Com uma tal de Nara Leão/ Que ela anda armada/ De uma flor e uma canção”.

Dois anos depois, quando o deputado Marcio Moreira Alves, em discurso para as cadeiras vazias da Câmara, exortou as moças brasileiras a se recusarem a dançar com os cadetes nos bailes do dia 7 de setembro, o governo tentou processá-lo, no que foi barrado pelo Congresso —e, por isso, decretou o AI-5, que nos asfixiou por dez anos.

Hoje, o astrólogo Olavo de Carvalho pode tachar os militares de “covardes”, “pústulas”, “incultos”, “preguiçosos”, “um bando de cagão”, e chamar o general e vice-presidente Hamilton Mourão de “idiota” e até acusá-lo de pintar o cabelo.

Como minha carreira militar, de reles reservista de terceira categoria, limitou-se a namorar a filha de um coronel, por acaso cassado em 1964, não concordo nem discordo. Mas o presidente Bolsonaro, cuja passagem pelo Exército lembra a do Recruta Zero, parece concordar com as opiniões de seu mestre.
Ruy Castro

Matemática rende uma reforma da Previdência por ano

Já escrevi aqui sobre o valor material da matemática. Da otimização de redes de produção e distribuição ao desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação, o conhecimento matemático é protagonista na economia mundial da era da internet. Quanto vale isso em dinheiro?


No início da década, quatro países —Reino Unido, França, Holanda e Austrália— realizaram estudos técnicos para quantificar a contribuição da matemática às suas economias. As conclusões foram análogas e impressionantes: de 10% a 11% dos empregos estão em profissões com forte conteúdo matemático, e essas atividades geram de 13% a 16% do PIB (produto interno bruto) desses países.
Traduzido para o Brasil, significa que a matemática pode somar R$ 1 trilhão (por ano!) à nossa economia. É o que o governo federal pretende economizar, em dez anos, com a reforma da Previdência. Como realizar esse potencial?

Mais um país europeu, a Espanha, acaba de publicar um estudo desse tipo. Por ser um caso um pouco mais próximo do nosso, as conclusões são especialmente interessantes para o Brasil. Os números são menores, mas ainda assim impressionantes. Atividades com forte incorporação da matemática criam 6% dos empregos e geram 10,1% do PIB da Espanha, ou seja, 103 bilhões de euros (R$ 455 bilhões) por ano.

Incluindo impactos indiretos, sobe para 19,4% dos empregos e 26,9% do PIB. As atividades mais impactadas são a informática, as telecomunicações, as finanças e a indústria de energia.

A produtividade dessas profissões matematizadas é comparável à dos países mais avançados: 47,20 euros (R$ 208,40) por hora. Segundo o estudo, "a diferença de impacto se explica pela estrutura produtiva espanhola, que está mais orientada para atividades com menor presença de profissões que requerem certa intensidade matemática".

O estudo contém diversas recomendações para sair desse relativo atraso, todas relevantes para o Brasil: tornar a matemática protagonista no sistema educacional, melhorar o diálogo entre o meio acadêmico e o empresariado, promover a pesquisa e as aplicações da matemática.

Há anos, a comunidade científica brasileira insiste que gasto em ciência não é custo, é investimento. Não conheço outro com retorno de R$ 1 trilhão por ano. Você conhece?

Aceitar o desmatamento é desistir do meio ambiente

A cada minuto, se perde o equivalente a cerca de 30 campos de futebol em florestas. Ou seja, até que você, caro leitor ou cara leitora, tenha lido este texto até o final, uma área florestal de cerca de 100 campos de futebol terá sido destruída – às vezes, para sempre. Esses números não vêm de cálculos abstratos, mas se baseiam na avaliação de imagens de satélite e foram compilados e publicados pelo projeto Global Forest Watch.

Enquanto isso, toda criança sabe da importância das florestas globais para o equilíbrio ecológico do nosso planeta. Um detalhe: em todo o mundo, somente as florestas tropicais absorvem cerca de um terço das emissões humanas de gases do efeito estufa. Não é por acaso que elas são consideradas os pulmões verdes do nosso planeta. O fato de que essas áreas estão encolhendo ano a ano deveria nos alarmar.

Não se trata aqui de fenômenos temporários, como incêndios florestais ou agricultura itinerante, nos quais as áreas destruídas são reflorestadas mais tarde. Aqui se fala em desmatamentos permanentes: as florestas – sobretudo na Ásia e na América Latina – se tornam pastagens e plantações. As florestas tropicais são derrubadas para satisfazer nossa fome não apenas por madeira tropical barata, mas sobretudo por carne, soja, biocombustíveis e óleo de palma.


É muito fácil se limitar a apontar o dedo para governantes distantes, como o presidente de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, mesmo que ele diga abertamente não estar preocupado com a proteção ambiental e climática. No entanto, o comportamento individual do consumidor também exerce influência sobre o desmatamento permanente de florestas que estão a milhares de quilômetros de distância de seu próprio local de residência – com consequências graves.

No Brasil, comunidades indígenas são expulsas violentamente de suas aldeias para dar lugar a fazendas. Na Indonésia e na Malásia, os orangotangos estão ameaçados de extinção. Mas para além destas implicações locais, a perda de áreas de floresta traz consequências para cada pessoa no planeta. Em outras palavras: quem aceita pacificamente o desmatamento florestal está a um passo de jogar no lixo as metas climáticas nacionais e internacionais.

Não somente o recente movimento #FridaysForFuture prova que a proteção climática já chegou à consciência de muitas pessoas. Muitos estão dispostos a se envolver e a questionar seus hábitos de consumo: as lâmpadas antigas são substituídas por lâmpadas LED modernas, e a geladeira antiga é substituída por um modelo mais eficiente em termos energéticos – e que, além disso, é bem mais bonito.

Mas de que servem todos esses novos e modernos produtos se não se agir mais resolutamente a nível mundial contra o desmatamento das florestas? Para nós, os consumidores, seria melhores se houvesse informações claras sobre a destruição de florestas para a produção de um produto. Mas isso está longe de se tornar realidade.

Pelo contrário: até mesmo as frutas de smoothies orgânicos seriam originárias de cultivos feitos em áreas desmatadas ilegalmente, de acordo com um relatório da organização ambientalista Amazon Watch. Então, se não podemos ter certeza de que nossos produtos são provenientes de produção sustentável ou de áreas desmatadas, deveríamos limitar seu consumo. Isso pode soar como uma renúncia, mas ajuda a proteger as florestas. Porque não importa onde a árvore esteja e possa continuar crescendo: ela protege nosso clima não importa onde moremos.
 

Pensamento do Dia


O 'mártir' governa

Olavo de Carvalho, o guru do antipresidente Jair Bolsonaro, segue apostando na estratégia de falsificar a realidade para criar realidades. Desde que seu mais famoso olavete assumiu a presidência, o escritor tem tentado plantar a mentira de que Bolsonaro estaria sendo impedido de governar. São várias as afirmações neste sentido ao longo dos mais de 100 dias do Governo. Em vídeo divulgado no canal de Bolsonaro no YouTube, no final de semana, o guru repetiu mais uma vez seu repisado mantra: “Bolsonaro é um mártir”.

Explicou: “Obviamente ele é um homem bem intencionado, limpo, ele quer fazer as coisas direito, mas como é possível com essa turma em volta?”. Em seguida atacou os militares e os “novos” políticos, em seguida o vídeo foi apagado “por pressão da ala militar”, em seguida o porta-voz de Bolsonaro fez uma declaração afagando seu guru por um lado, criticando-o por outro, em seguida o filho zerodois, que obviamente é a voz do pai nas redes sociais, disse o contrário... E lá se foi o Brasil discutir o Governo da situação e o Governo da oposição, a ala militar, supostamente a menos ideológica, e a ala “olavista”, supostamente a mais ideológica, com particular atenção para o romance caliente entre o vice Hamilton Mourão e o filho zero dois, até agora entre tapas e nenhum beijo.

O general da ativa Otávio Santana do Rêgo Barros, coitado, parece cada vez menos um porta-voz de presidente e cada vez mais uma espécie de louro José de Bolsonaro. Aos 58 anos, uma carreira militar exitosa, e vai dizendo coisas assim: "De uma vez por todas o presidente gostaria de deixar claro o seguinte: quanto a seus filhos, em particular o Carlos, o presidente enfatiza que ele sempre estará a seu lado. O filho foi um dos grandes responsáveis pela vitória nas urnas, contra tudo e contra todos". Sério. Enquanto o novelão se desenrola, capturando e desviando a atenção do país, o “mártir” governa. E como governa. O projeto autoritário que Bolsonaro representa avança a cada dia sobre o Brasil com velocidade assombrosa.

Os milhares de indígenas que desde 2004 ocupam Brasília em abril para o Acampamento Terra Livre, uma tradição que Bolsonaro chamou de “encontrão de índios”, neste ano estão sendo “recepcionados” pela Força Nacional. O Mártir decidiu com seu general favorito, Augusto Heleno. Seu ministro de estimação, Sergio Moro, assinou. Por 33 dias a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios serão defendidas do povo por uma força especial. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

O Mártir quer abrir as terras indígenas para soja, gado, mineração e grandes obras. Em vez de floresta amazônica um lindo pasto, uma soja a perder de vista, uma ferrovia gigante, uma cratera de mineração ainda mais fabulosa, com artísticas montanhas de resíduos tóxicos como legado para a posteridade. O planeta agradece e frita como resposta, mas aquecimento global, segundo o chanceler do Mártir, é “complô marxista”. Para os sábios do governo do Mártir, qualquer pessoa sensata pode perceber que o clima está como sempre foi, o Rio de Janeiro que o diga. Por isso Ricardo Salles, aquele que atende pelo nome de ministro do Meio Ambiente, mal entrou e já foi extinguindo a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas. Não precisa, né? Ele também já explicou de cara que “a discussão sobre aquecimento global é secundária”. Isso com os cientistas mais importantes do mundo afirmando que temos apenas 11 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Mas o Brasil segue sendo uma democracia.

Porque é muito magnânimo, o Mártir assegurou aos indígenas que eles são humanos como ele
Na semana passada, o Mártir promoveu um encontro transmitido em uma “live” nas redes sociais, com indígenas escolhidos a dedo, onde assegurou, mais uma vez, que eles são humanos como ele. “Com todo o respeito, alguns querem que vocês fiquem na terra indígena como se fossem um animal pré-histórico. Não é pré-histórico não, vocês são seres humanos. Na minha cabeça tem exatamente o que tem na tua cabeça, o teu coração é igual ao meu coração”, garantiu. Aparentemente os indígenas tinham dúvidas sobre se eram humanos ou não até o Mártir, magnânimo como todo Mártir, esclarecer.

Antes do início da “live”, os indígenas foram orientados a “evitar usar a palavra garimpo e usar mineração”, palavra muito mais palatável para os propósitos de derrubar a floresta para explorar o subsolo. Os escolhidos foram apresentados como lideranças, mas o povo yanomami já enviou uma carta avisando que o indígena que apareceu por lá não representa nenhuma comunidade. Da boca do Mártir só saíram pérolas. Como esta: “Por exemplo. Tem uma terra indígena aí que possa fazer uma usina hidrelétrica. Se vocês concordarem, é coisa rápida! A decisão tem que ser de vocês, sem intermediários. (...) Não tem problema nenhum. Faz o negócio, faz o preço, faz seguro. E toca o barco. (...) Vocês têm bastante terra. Vamos usar essa terra. (...) Nós queremos a liberdade de vocês”. No meio da conversa, lembrou : “Tem que mexer em leis, lógico, vai depender do parlamento, a gente vai buscar leis para mudar isso aí”. “Isso aí” é a Constituição. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

Com um canetaço, o Mártir decidiu deletar centenas de conselhos sociais com participação popular. Estes conselhos – formados por representantes da gestão e representantes da sociedade civil, gente com experiência nas respectivas áreas, entidades com atuação reconhecida – acompanhavam, debatiam e influenciavam as políticas públicas. São especialmente importantes em áreas invisibilizadas, como as relacionadas à população de rua, indígenas e LGBTI. Sem serem remunerados para isso, os conselheiros só recebiam transporte e diária. Eram a voz da sociedade no Governo. E a voz da sociedade foi silenciada. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

A reforma da Previdência é apresentada como a salvação do país. Tudo indica que o Armageddon pode ser antecipado caso a reforma não for aprovada. Mas quando é exigido que o Governo apresente os dados técnicos em que se baseou para construir a proposta levada ao legislativo, o Mártir, pelas mãos do Posto Ipiranga Paulo Guedes, decreta sigilo sobre o material até a aprovação. A lei altera a vida de todos os brasileiros, mas aos brasileiros é negado o direito de conhecer as informações que poderiam justificar a lei. São informações públicas, obtidas por funcionários públicos com dinheiro público, mas o Mártir determinou que nem os legisladores nem o povo podem vê-las. Aprova primeiro, prova depois. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

Até quando...?

Quosque tandem abutere patientia nostra?
Cícero, cônsul romano em 63 a.C. denunciando a conspiração pretendida pelo senador Lúcio Sérgio Catilina

Um país dividido

O Brasil está dividido, mal-humorado e turbulento. O governo tem a ala dos militares, a ala da economia e a ala dos ideológicos. O Legislativo ensaia uma guerra contra o Judiciário, que, por sua vez, ameaça o Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Ministério Público (Procuradoria-Geral da República) entram em confronto aberto e medem forças à luz do dia. Nas ruas, simpatizante de um lado aplica mata-leão em manifestante do lado oposto. A base de apoio do governo não se entende nem a respeito das prioridades da pauta de votação na Câmara dos Deputados.

Existe também uma nítida divisão quanto ao que se percebe do desempenho do governo. Existem dois Brasis: um, que é veiculado nos grande meios de comunicação (ainda que com nuances), de cunho marcadamente contrário a Bolsonaro e ao governo; o outro, da opinião contundente e aparentemente majoritária espalhada nas redes sociais, que endeusa o presidente da República, aplaude com entusiasmo as ações governamentais e os arroubos presidenciais no Twitter.


No plano mais raivoso-ilustrado, as visões antagônicas se digladiam. A turma capitaneada por Olavo de Carvalho, alguns ministros da República incluídos, enxerga a esquerda como frequentadora de uma espécie de submundo das ideias. O que esquerdistas dizem não vale e nunca valeu nada. O subalterno ideário marxista e seus princípios não deveriam frequentar nem os livros de história do pensamento político moderno, pois não teriam atingido o status de pensamento, muito menos mereceriam o epíteto de moderno.

A esquerda, por sua vez, não economiza adjetivos. Seus inimigos são tachados de fascistas para cima. Um bando de insensíveis, sem nenhuma preocupação social, neoliberais a serviço do que existe de mais abjeto no imperialismo capitalista. São indivíduos racistas, que não aceitam a diversidade sociocultural-sexual e nas horas vagas se deliciam tecendo loas ao regime militar e lembrando nostalgicamente as façanhas dos torturadores da época. São sombrios semeadores de trevas. Nesse clima, tentar entender os argumentos do outro se transforma na mais absoluta perda de tempo.

Temos também a divisão entre a velha política e a nova política. A velha política é representada pelos partidos e políticos tradicionais, que debatem, mas nada resolvem, um time de desajustados que só pensam em se corromper. Embora amplamente majoritários e ocupando cargos de comando, não merecem o pão que os alimenta. O ideal seria que fossem exterminados, já que provocam ojeriza na sociedade e infectam a vida pública.

A nova política, essa, sim, promoverá o avanço institucional de que o Brasil precisa. Parlamentares novos, desintoxicados dos vícios do cambalacho e desinteressados de cargos, seriam a locomotiva das mudanças que o Brasil anseia e necessita. Para que o diálogo, a busca de articulação política, a formação de maiorias via partidos? Como num sonho, a agregação ocorreria de forma natural e os 25% de inexperientes e algo folclóricos deputados eleitos pela primeira vez dariam uma lição de moral e de eficiência num Congresso que chafurda no lamaçal do “toma lá dá cá”.

No âmbito dos partidos, a divisão chegou ao paroxismo. A fragmentação partidária nunca foi tão grande. Foi-se o tempo em que poucos partidos garantiam a maioria e a governabilidade. Hoje, para aprovar uma emenda constitucional, se excluirmos as agremiações oposicionistas, seriam necessários 11 partidos para alcançar os 308 votos – isso se os deputados votassem em bloco. Esses 11 partidos somaram 312 deputados nas eleições do ano passado, ou seja, 28 parlamentares por partido na média. Dá para intuir a dificuldade para organizar opiniões e vontades nessa verdadeira Torre de Babel...

O governo ajuda a turbinar a barafunda com seus ministros-bomba. A turma do barulho – formada por Ernesto Araújo, Damares Alves e Vélez Rodríguez (que recentemente deixou o governo) – não mede esforços para revirar os traumas mais recônditos da sociedade. Isso atiça a reação da esquerda, que de acuada e desmoralizada começa a exercer um protagonismo desproporcional ao respeito que angaria na sociedade. E dá-lhe pancadaria!

Na ausência de articulação política, o Congresso cria sua própria agenda. Ameaça limitar o número de medidas provisórias que podem ser editadas pelo governo, votar contra matérias de interesse do Executivo, atrasar a reforma da Previdência, enfim, dificultar ao máximo o andamento das coisas. Da Virgínia (EUA), Olavo de Carvalho dispara seu fuzil AR-15 de aleivosias contra os militares, o que provoca reação de Bolsonaro, que, por sua vez, vê com desconfiança a movimentação de seu vice, general Mourão. Ninguém se entende.

Por tudo isso, não surpreende a pesquisa do Instituto Ipsos divulgada pelo Estado em 14/4. O levantamento mostra uma grande polarização política no País. Para 32% dos brasileiros, não vale a pena conversar com quem tem uma visão diferente. Esse índice fica acima da média de 27 países incluídos no estudo. Apenas dois países superaram o Brasil: a Índia (35%) e a África do Sul (33%). Na verdade, estão todos empatados em primeiro lugar se levarmos em conta a margem de erro da sondagem.

A sociedade brasileira está dividida em relação ao governo, ao presidente da República, à aprovação da reforma da Previdência e a uma série inesgotável de assuntos. E a intensidade das opiniões é fortíssima. Não é que um indivíduo tenha uma opinião sobre um assunto – e acabou. Não. Ele está disposto a defendê-la com todo o vigor e sem aceitar contestação. A opinião, nesse sentido, confunde-se com crença, fanatismo, dogma.

O Brasil precisa aprovar reformas complexas e isso só se concretizará com a construção de consensos. Com essa hipertensão social e predisposição quase atlética para o confronto, não vai ser fácil.

Se na arte figuras más e vulgares não funcionam, na vida abundam exemplos

O que fascina em Hannibal Lecter, o canibal erudito d’ “O silêncio dos inocentes”, a que Anthony Hopkins deu corpo, é o contraste entre a elegância e sofisticação do criminoso e a violência dos seus crimes. Se Hannibal falasse como um carroceiro, seria um mero canibal.

O bom de usar exemplos preconceituosos com carroceiros é que já não existe nenhum. Aqui vai, pois, um primeiro conselho aos jovens escritores sem coragem para enfrentar a Brigada do Politicamente Correto (BPC): quando for necessário dar algum exemplo negativo, usem apenas profissões extintas, como ouvidores-mores, fanqueiros, ferreiros ou carrascos. Carrascos ainda existem, é verdade, mas trata-se de uma profissão tão desmoralizada que é legítimo desmoralizá-la ainda mais sem temer confrontos com a BPC.

Segundo conselho: se escolherem um carroceiro como personagem façam-no falar como um príncipe. É verdade que os príncipes reais raramente têm a elegância e riqueza vocabular que distinguia, por exemplo, um Antônio Houaiss (de todas as pessoas que conheci, aquela que melhor falava a nossa língua). A História abunda em príncipes que falavam como carroceiros. Basta pensar no Príncipe Charles e na famosa pérola com que seduziu a então amante, hoje esposa, Camilla Parker Bowles: “Quero ser seu absorvente íntimo.” Suspeito que com esta frase Charles fez mais pela causa republicana do que a Revolução Francesa.

Concluindo: colocar um príncipe falando como um carroceiro está mais de acordo com a realidade, e, ao mesmo tempo, adensa o personagem. Colocar um carroceiro falando como um filósofo (agora estou a supor que os filósofos falam como o Antônio Houaiss, o que também está longe de ser verdade — basta pensar em Olavo de Carvalho), pode soar pouco verossímil, mas torna o personagem mais intrigante.

Voltemos a Hannibal Lecter. Um psicopata assassino simpático, educado e sofisticado é perturbador porque gostaríamos de ser amigos dele. A atração pela luz negra de certos abismos é, não por acaso, um dos grandes temas da literatura universal.

O que me parece muito mais difícil de compreender é a atração por figuras más e vulgares. Digamos, pelo canibal carroceiro; pelos abismos sem luz; por Bonnie & Clyde sem a história de amor. Se na literatura tais personagens não funcionam, na vida há cada vez mais exemplos de sujeitos assim, que contra todas as previsões não só triunfam como são amados pelo povo (daqui se pode concluir que a literatura é mais lúcida do que a vida).

Aquilo a que se convencionou chamar populismo não é outra coisa senão a exploração de uma patologia social, que faz com que os ratos sintam uma irresistível atração por gatos. Populista é aquele tipo de sujeito que, para diminuir a pobreza, defende o assassinato dos pobres — e é eleito por eles.

Populistas odeiam a arte, a cultura, tudo o que seja educação, porque sabem que só prosperam no terreno movediço das fake news, do medo e da irracionalidade.

Para alcançar sucesso num tempo como o nosso, e continuar devorando as suas vítimas, Hannibal Lecter teria de se fingir estúpido. Se conseguisse correria o risco de se ver eleito presidente da República.
José Eduardo Agualusa