sábado, 27 de abril de 2019

O 'mártir' governa

Olavo de Carvalho, o guru do antipresidente Jair Bolsonaro, segue apostando na estratégia de falsificar a realidade para criar realidades. Desde que seu mais famoso olavete assumiu a presidência, o escritor tem tentado plantar a mentira de que Bolsonaro estaria sendo impedido de governar. São várias as afirmações neste sentido ao longo dos mais de 100 dias do Governo. Em vídeo divulgado no canal de Bolsonaro no YouTube, no final de semana, o guru repetiu mais uma vez seu repisado mantra: “Bolsonaro é um mártir”.

Explicou: “Obviamente ele é um homem bem intencionado, limpo, ele quer fazer as coisas direito, mas como é possível com essa turma em volta?”. Em seguida atacou os militares e os “novos” políticos, em seguida o vídeo foi apagado “por pressão da ala militar”, em seguida o porta-voz de Bolsonaro fez uma declaração afagando seu guru por um lado, criticando-o por outro, em seguida o filho zerodois, que obviamente é a voz do pai nas redes sociais, disse o contrário... E lá se foi o Brasil discutir o Governo da situação e o Governo da oposição, a ala militar, supostamente a menos ideológica, e a ala “olavista”, supostamente a mais ideológica, com particular atenção para o romance caliente entre o vice Hamilton Mourão e o filho zero dois, até agora entre tapas e nenhum beijo.

O general da ativa Otávio Santana do Rêgo Barros, coitado, parece cada vez menos um porta-voz de presidente e cada vez mais uma espécie de louro José de Bolsonaro. Aos 58 anos, uma carreira militar exitosa, e vai dizendo coisas assim: "De uma vez por todas o presidente gostaria de deixar claro o seguinte: quanto a seus filhos, em particular o Carlos, o presidente enfatiza que ele sempre estará a seu lado. O filho foi um dos grandes responsáveis pela vitória nas urnas, contra tudo e contra todos". Sério. Enquanto o novelão se desenrola, capturando e desviando a atenção do país, o “mártir” governa. E como governa. O projeto autoritário que Bolsonaro representa avança a cada dia sobre o Brasil com velocidade assombrosa.

Os milhares de indígenas que desde 2004 ocupam Brasília em abril para o Acampamento Terra Livre, uma tradição que Bolsonaro chamou de “encontrão de índios”, neste ano estão sendo “recepcionados” pela Força Nacional. O Mártir decidiu com seu general favorito, Augusto Heleno. Seu ministro de estimação, Sergio Moro, assinou. Por 33 dias a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios serão defendidas do povo por uma força especial. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

O Mártir quer abrir as terras indígenas para soja, gado, mineração e grandes obras. Em vez de floresta amazônica um lindo pasto, uma soja a perder de vista, uma ferrovia gigante, uma cratera de mineração ainda mais fabulosa, com artísticas montanhas de resíduos tóxicos como legado para a posteridade. O planeta agradece e frita como resposta, mas aquecimento global, segundo o chanceler do Mártir, é “complô marxista”. Para os sábios do governo do Mártir, qualquer pessoa sensata pode perceber que o clima está como sempre foi, o Rio de Janeiro que o diga. Por isso Ricardo Salles, aquele que atende pelo nome de ministro do Meio Ambiente, mal entrou e já foi extinguindo a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas. Não precisa, né? Ele também já explicou de cara que “a discussão sobre aquecimento global é secundária”. Isso com os cientistas mais importantes do mundo afirmando que temos apenas 11 anos para tentar impedir que o planeta aqueça mais de 1,5 graus Celsius. Mas o Brasil segue sendo uma democracia.

Porque é muito magnânimo, o Mártir assegurou aos indígenas que eles são humanos como ele
Na semana passada, o Mártir promoveu um encontro transmitido em uma “live” nas redes sociais, com indígenas escolhidos a dedo, onde assegurou, mais uma vez, que eles são humanos como ele. “Com todo o respeito, alguns querem que vocês fiquem na terra indígena como se fossem um animal pré-histórico. Não é pré-histórico não, vocês são seres humanos. Na minha cabeça tem exatamente o que tem na tua cabeça, o teu coração é igual ao meu coração”, garantiu. Aparentemente os indígenas tinham dúvidas sobre se eram humanos ou não até o Mártir, magnânimo como todo Mártir, esclarecer.

Antes do início da “live”, os indígenas foram orientados a “evitar usar a palavra garimpo e usar mineração”, palavra muito mais palatável para os propósitos de derrubar a floresta para explorar o subsolo. Os escolhidos foram apresentados como lideranças, mas o povo yanomami já enviou uma carta avisando que o indígena que apareceu por lá não representa nenhuma comunidade. Da boca do Mártir só saíram pérolas. Como esta: “Por exemplo. Tem uma terra indígena aí que possa fazer uma usina hidrelétrica. Se vocês concordarem, é coisa rápida! A decisão tem que ser de vocês, sem intermediários. (...) Não tem problema nenhum. Faz o negócio, faz o preço, faz seguro. E toca o barco. (...) Vocês têm bastante terra. Vamos usar essa terra. (...) Nós queremos a liberdade de vocês”. No meio da conversa, lembrou : “Tem que mexer em leis, lógico, vai depender do parlamento, a gente vai buscar leis para mudar isso aí”. “Isso aí” é a Constituição. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

Com um canetaço, o Mártir decidiu deletar centenas de conselhos sociais com participação popular. Estes conselhos – formados por representantes da gestão e representantes da sociedade civil, gente com experiência nas respectivas áreas, entidades com atuação reconhecida – acompanhavam, debatiam e influenciavam as políticas públicas. São especialmente importantes em áreas invisibilizadas, como as relacionadas à população de rua, indígenas e LGBTI. Sem serem remunerados para isso, os conselheiros só recebiam transporte e diária. Eram a voz da sociedade no Governo. E a voz da sociedade foi silenciada. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

A reforma da Previdência é apresentada como a salvação do país. Tudo indica que o Armageddon pode ser antecipado caso a reforma não for aprovada. Mas quando é exigido que o Governo apresente os dados técnicos em que se baseou para construir a proposta levada ao legislativo, o Mártir, pelas mãos do Posto Ipiranga Paulo Guedes, decreta sigilo sobre o material até a aprovação. A lei altera a vida de todos os brasileiros, mas aos brasileiros é negado o direito de conhecer as informações que poderiam justificar a lei. São informações públicas, obtidas por funcionários públicos com dinheiro público, mas o Mártir determinou que nem os legisladores nem o povo podem vê-las. Aprova primeiro, prova depois. Mas o Brasil continua sendo uma democracia.

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