Lembro-me muito bem da tarde em que conheci Ruy Duarte de Carvalho. Tinha 28 anos e acabara de publicar o meu primeiro romance. Ruy Duarte era para mim uma espécie de profeta. A poesia dele, que descobri ainda adolescente, nos meses de fúria e fervor revolucionário que antecederam a independência, arrastou-me não apenas para a literatura, mas, mais do que isso, ajudou-me a descobrir e a sedimentar a minha própria identidade angolana.
Em 1998, Ruy Duarte habitava o último andar de um edifício muito degradado, na Maianga, em Luanda. Havia um salão, com estantes dobradas ao peso dos livros, que se abria sobre uma larga varanda debruçada sobre o metódico caos da capital. Quando cheguei, a varanda já estava cheia de jovens, uns sentados no chão, outros em cadeiras trôpegas, fumando, bebendo e conversando. Lembro-me do ar que se colava à pele, denso e quente, e da voz grave de Ruy Duarte, expondo as suas teses sobre a vida. Defendia essas teses recorrendo à mais pura intuição poética. Uma dessas teses me parece agora muito mais atual do que naquela época — e também muito mais assustadora.
Dizia Ruy Duarte que na chamada estação das chuvas, quando ao calor crescente se soma a umidade atmosférica, o ambiente se enche de um excesso de energia, que contamina tudo e transtorna os espíritos. A estação das chuvas desencadearia todo o tipo de grandes gestos e grandes dramas. Seria a época das mais intensas histórias de amor, das revoluções e decisões radicais, mas também das rupturas trágicas, das guerras e dos motins. A própria natureza parece, por vezes, enlouquecer, voltando-se contra a Humanidade e a vida.
Dados recentes confirmam que em períodos de temperaturas elevadas os crimes violentos tendem a aumentar. Fico pensando no aquecimento global, no derretimento de geleiras e calotas polares, e no consequente aumento exponencial de água em circulação; enfim, na brutal quantidade de energia que estamos acumulando ao nosso redor. É como se a estação das chuvas estivesse alastrando por todas as geografias e por todos os meses do ano. A estação das chuvas é agora, cada vez mais, a estação total.
Levando a sério a hipótese de Ruy Duarte de Carvalho, podemos esperar que os próximos anos sejam, para o pior e para o melhor, particularmente intensos. O pior já sabemos o que é: a multiplicação de desastres naturais, pandemias, surtos de ódio coletivo, de barbárie e de primitivismo, que podem manifestar-se de formas diversas, em alguns casos, como no Brasil ou nos EUA, ameaçando as instituições democráticas e a civilização.
O melhor talvez seja a oportunidade de recomeço que todas as grandes rupturas trazem. Sabemos onde falhamos e por que falhamos. Precisamos reunir toda essa energia bruta e caótica, toda essa inquietação primordial, e transformá-la em ideias, em ideais, em alternativas práticas aos atuais modelos de exploração de recursos.
Viveremos dias intensos. Viveremos milagres e prodígios que os nossos avós não foram capazes de prever.
Bem-vindos à Estação Utopia.