quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Enquanto há tempo

Imagine-se jogando uma partida de xadrez. Você joga com as peças brancas ou as pretas. Seu adversário é o Poder.

Você é um bom jogador. Pratica há anos. Leu os livros dos grandes mestres. Participa de torneios. E costuma sair-se bem.

Mas enquanto você respeita as regras do jogo, o Poder, não. Seu Bispo só se move na diagonal. O do Poder, como ele quer.

Seus peões só avançam uma casa de cada vez. Os do Poder avançam quantas casas ele quiser, podem recuar ou andar de lado.


Ah, a Rainha – a peça mais importante no tabuleiro! Você joga com uma. O Poder joga com duas desde o início da partida.

Impossível que você vença. Simplesmente impossível. A não ser que o Poder cometa um erro estúpido, indigno de um iniciante.

Talvez com algum exagero, é o que acontece no confronto desigual entre a imprensa e o Poder que desrespeita as regras do jogo.

Jornalista não pode mentir. Pode errar – e se erra, é obrigado a reconhecer que errou e a pedir desculpas.

O Poder mente, mente muito, mente descaradamente. E se flagrado mentindo, joga a culpa na imprensa. Diz que foi mal interpretado.

Pergunte a um governante sobre seus erros. Ele gagueja e, quando admite ter errado, cita os erros mais irrelevantes.

É mais fácil lidar com um governo ditatorial do que com um governante eleito que usa a mentira como a sua maior arma.

A ditadura diz o que pode e o que não pode ser publicado – e, quando nada, ficamos sabendo das coisas que ela quer esconder.

O governante mentiroso é mais letal porque mente para esconder, mas mente também para enganar os que acreditam nele.

O objetivo de um governante mentiroso é desmoralizar a imprensa para enfraquecê-la, e assim alargar os limites do próprio poder.

Onde existe democracia sem uma imprensa livre e robusta? Onde? Uma imprensa castrada é antessala da ditadura.

O que pretende um governante que por hábito ataca a imprensa como instituição, agride repórteres com desaforos, corta assinaturas de jornais e ameaça os seus anunciantes?

Tudo, menos respeitar o Estado de Direito sob o qual foi eleito. Ao fim e ao cabo, por mais que não confesse, quer destruí-lo para poder jogar sozinho.</p>

Se a oposição, por fraqueza ou temor, não o incomoda, ele precisa de outros supostos adversários para se bater e derrotar.

O confronto é a vitamina que o faz sentir-se vivo, e forte, e indestrutível, e capaz de alcançar o que almeja.

Pouco se lhe dá se a maioria dos governados discorda dos seus propósitos. Basta-lhe uma fração aguerrida de devotos e ... O silêncio.

O silêncio dos inocentes. O silêncio dos culpados. O silêncio dos omissos. O silêncio dos que se negam a enxergar. O silêncio dos oportunistas. O silêncio dos covardes.

O silêncio é o principal aliado de um governante com vocação de ditador. E, se um dia, o silêncio vier a se quebrar, poderá mesmo assim ser muito tarde.
Então dará lugar ao choro dos arrependidos e à euforia dos insensatos.

Confissão messiânica


Promiscuidade

No mesmo condomínio da Barra, no Rio, onde mora o presidente da República, quando não está em Brasília, mora um filho do presidente, mora um dos suspeitos de ter matado a Marielle (preso, no momento), mora o dono até agora não identificado da casa onde encontraram todas aquelas armas, moram os três porquinhos pobres e o lobo mau, que compreensivelmente não se falam quando se cruzam na área social do condomínio, moram Cinderela e suas irmãs invejosas, que também não podem se enxergar, e uma lista de condôminos inimagináveis que só agora começa a ser conhecida. A lista é enorme e cheia de surpresas.


No estranho condomínio, Batman e o Coringa são quase vizinhos. Quem se espanta com a presença do suposto assassino da Marielle morando tão perto de um presidente da República vai se espantar ainda mais com a revelação de que as armas – sobre as quais nunca mais se ouviu falar – tinham chegado para a milícia da zona, via Sedex, e recebidas pelo porteiro do condomínio. Mais tarde o porteiro diria que vira o tamanho dos pacotes e as pontas de ferro aparecendo e concluíra que eram patinetes.

Lá estão Zorro e o Capitão Garcia, lá estão Eliot Ness e Al Capone, lá estão Tom e Jerry morando na mesma casa, mas em eterna briga pelo uso da piscina. Lá estão desafetos históricos vivendo numa promiscuidade improvável da qual ninguém tinha ideia. Sherlock Holmes e o dr. Moriarty!

A intervalos, há trégua entre os vizinhos para tentar diminuir a tensão causada pela promiscuidade insana. Os Montecchios e os Capuletos, que ocupam lados opostos do condomínio e vivem em constantes choques dos quais nunca ficamos sabendo, unem-se para fazer uma macarronada comunitária. A ideia original era fazer um churrasco, mas os espetos acabariam fatalmente transformados em espadas. O banho de sangue seria inevitável.

Resenha do terror

“O pior ainda está por vir.” A frase é do presidente JMessias. Abriu esta primeira semana de novembro e foi referência ao óleo que, há três meses, polui mar e praias do Nordeste, ameaça o Norte e parte do Sudeste. Diante de tantos sobressaltos impostos pelo governo e seus próximos, “o pior ainda está por vir” vale mesmo como uma espada sobre nossas cabeças.

Nunca todos viram, ouviram e sofreram tantos absurdos – abusos, deboches, expressão de preconceitos, agressões, deselegâncias, provocações, mentiras – perpetradas pelo núcleo central do poder político no Brasil.


O presidente, filhos e ministros estão à vontade. Como se tivessem certeza certa: nada acontecerá qualquer que seja a barbaridade feita ou proferida por eles. Com a vitória nas eleições ganharam um reinado absolutista, independente e superior ao poder de outros órgãos do Estado.

Não é samba do reinado louco. É funk da má intenção. Pesadão. Não são tontos, nem burros ou insanos. São mal-intencionados. E, parece, suas exibições de perversidade ativa levam ao corner os outros poderes que, ora mordem, ora assopram, mas não exercem sua obrigatória autoridade. Comportam-se como se manietados estivessem. Isso assusta tanto quanto o desvario dos desinibidos autocráticos em exercício.

Produzem uma bomba atrás da outra ... às vezes, duas/três ao dia. Mas, em proposital e cínico jogo do contrário, alardeiam perseguição. Como fez o comandante-em-chefe na semana passada: “O tempo todo infernizando a minha vida, porra!” (É textual, parte do live, feito na Arábia Saudita, pelo descontrolado PR, pai da trupe). Aos costumes, finesse zero.

Foram 15 minutos de impropérios e ameaças – à imprensa, ao governador do Rio. Seria a resenha da semana, que foi punk, um tom acima do habitual descaso pelo cargo pela população que governa. Teve mais.

O príncipe Eduardo, ameaçou com reedição do AI5 – o ato institucional que, em 1968, escancarou a ditadura militar no país. Para amenizar, papai-em-chefe garantiu: Não passa de “um sonho” do garoto.

Sonho deles, pesadelo nosso – cada vez mais medonho, por tudo e tanto que temos assistido. Aí incluindo a condescendência do SuperMoro que, depois das desculpas do garoto Eduardo pela ameaça à democracia, assim, em passant, decretou: Caso encerado.

Para o Ministro da Justiça em exercício ameaça à democracia é coisa que se resolve com um pedido de desculpas. É isso mesmo? É.

Mas a semana ainda teve mais dos mesmos, atuando no modo diarreia verbal. Em nova live presidencial, a propósito de eventual contaminação óleo derramado em terra e mar, o Secretário da Pesca, Seif Júnior, tranquilizou: “O peixe é um bicho inteligente. Quando ele vê uma manta de óleo ali, capitão, ele foge, ele tem medo. Então, obviamente que você pode consumir seu peixinho sem problema nenhum. Lagosta, camarão, tudo perfeitamente sano.

Essa engasgou até capitão-presidente, que tossiu e, tossindo, tentou consertar: “Obviamente, de vez em quando, fica ali uma tartaruga na mancha de óleo...
um golfinho pode ficar... pra não dizer que ninguém fica, né? Mas tudo bem...

Para o peixe inteligente?

Para o líder indígena Paulo Paulino Guajajara, do grupo Guardiões da Floresta, que foi emboscado e assassinado na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão?

Para os seis generais que pegaram o quepe e deixaram o Planalto, pedindo demissão?

Para o porteiro do Condomínio Vivendas da Barra?

Para os que temem o pior que ainda está por vir?
Tânia Fusco

Miséria cresce, mas continua à margem do debate

O IBGE informa: aumentou o número de brasileiros na extrema pobreza. Em 2018, o país passou a ter 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com menos de R$ 145 por mês. É um contingente maior do que a população inteira de países como Portugal, Grécia e Bolívia.

Desde 2014, houve um salto de 50% no número de miseráveis. Isso significa que 4,5 milhões de brasileiros foram empurrados para a base da pirâmide social. É a face mais perversa da crise, que reduziu os empregos e a renda de quem ainda tem trabalho.

A omissão do poder público também contribuiu para o aumento da extrema pobreza. A parcela de lares atendidos pelo Bolsa Família, que era de 15,9% em 2012, caiu para 13,7% no ano passado. O valor real dos benefícios diminuiu, com congelamentos e reajustes abaixo da inflação.

O economista Marcelo Neri, da FGV Social, diz que o arrocho agravou as dificuldades de quem luta pela sobrevivência. “O país resolveu economizar às custas dos mais pobres. Só que isso não gerou uma economia expressiva e ainda aumentou a miséria”, explica.

Em tempos de crise, é esperado que o Estado reforce a rede de proteção social. No Brasil dos últimos anos, deu-se o contrário. “O país recolheu a rede quando mais precisa dela”, resume o professor.

A Síntese de Indicadores Sociais revela outras faces do nosso abismo. Em 2018, o percentual de empregados com carteira assinada caiu para 47,4%, menor índice já registrado pelo IBGE. Isso ocorreu um ano após a aprovação da reforma trabalhista, vendida como panaceia por governo e entidades patronais.

O estudo divulgado ontem lembra que a precarização eleva a desigualdade. Sem vínculo formal, os trabalhadores perdem direitos básicos como salário mínimo, aposentadoria e licenças remuneradas.

O sabor da Excelência

As redes de fast-food na Itália não pegaram muito entre os nativos. Entre numa lanchonete dessas em Roma, Florença ou Milão e verá que, sim, estão cheias – mas de turistas que foram comer barato e fazer xixi. Os italianos em geral torcem o nariz para aquelas matérias insípidas colocadas num pão, rodeadas de alface murcha e lambuzadas em molhos de composição duvidosa.

Cozinheiros da Toscana estão atentos ao aperfeiçoamento do paladar da meninada. E antes que as crianças sejam abduzidas pelos sanduíches produzidos em série, tomaram uma iniciativa genial. Voluntários estão montando mesas nas praças das pequenas cidades e convidando as famílias e suas crianças para animadas degustações gastronômicas.

Dessa forma, os chefs vão mantendo a cultura de seus tataravós e – mais importante – cuidam da saúde dessa geração, mostrando a diferença colossal entre alimentos de qualidade, saudáveis e nutritivos, e porcarias feitas em série. É um padrão da excelência.

“A mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho anterior”. Popular na internet, a frase é atribuída a Einstein, mas há controvérsias. Na mesma época, o poeta e catedrático Sir Oliver Wendell Holmes disse algo idêntico: “A mente humana, uma vez ampliada por uma nova consciência, jamais retorna à sua dimensão original”.

Não importa quem foi o autor da frase; ambos já tinham percebido a essência da Excelência, com letra maiúscula.


O ser humano só se transforma por essa via do “ótimo” superando o “bom”; do “novo” superando o “velho”. E padrões melhores não se restringem à cozinha. Estão aí, a toda hora, apontando caminhos para a evolução, a saúde, o convívio, a realização profissional, a gestão pública, o prazer de fazer bem feito – a sabedoria, enfim.

Valorizá-los é uma tarefa urgente da educação num país como o nosso, em casa e nas escolas. As asneiras correm fácil. Bastam alguns minutos de TV ou internet para perceber que os exemplos do mal e do pior atacam incansáveis pelos flancos – nos comportamentos, nas artes, na glamourização do grotesco.

Engraçado: lembrei-me do exemplo dos cozinheiros italianos ao ouvir as novas propostas econômicas para o país. Show de bola, é a materialização do mote “mais Brasil e menos Brasília” do ministro Guedes.

A descentralização do poder não é novidade, faz parte da estrutura de nações que deram certo. Além dos efeitos positivos na gestão, com ela despencam também cabides dos coronéis, dos lobistas; alguns esquemas asquerosos que vinham atrasando o país como bolas de ferro nos pés de presidiários.

Que venha o novo, o melhor, o diferente – que têm, como inimigos, os partidários do atraso, os vampiros da miséria que perdem seus discursos apocalípticos e seus votos.

Hoje à tarde, o STF dará um passo com repercussões profundas. A imagem desses senhores não anda lá essas coisas, porém valerá a lei; tal decisão terá efeitos práticos no comportamento geral dos cidadãos.

Usando a costumeira verborragia e as firulas incompreensíveis aos mortais, o Supremo terá que definir se: a) a lei é igual para humildes e poderosos ou b) a balança continuará pendendo para o lado mais rico.

Só isso, fim de papo. Ou vamos em frente, ou a velha senhora Justiça permanecerá refém dos donos da grana e de seus advogados de luxo.

O que será posto hoje na mesa também envolve a diferença entre o bom e o ruim. Ainda que aquelas Excelências tentem revestir o malfeito com sabores artificiais e rebuscados, não conseguirão enganar nosso paladar. O brasileiro já está sentindo um pouco do novo sabor da excelência.

Brasil a perigo


Convite às autoridades: passem o mês com R$ 145

Há no Brasil 13,5 milhões de estômagos que sobrevivem com menos de R$ 145 por mês. Isso equivale a R$ 36,25 por semana. Ou R$ 4,83 por dia. Um Big Mac sai por R$ 16,90. Ou seja, um sanduíche consome a renda de três dias desses estômagos, alojados no organismo dos brasileiros que o IBGE chama de extremamente pobres. Os dados são de 2018. Atrasando o relógio, verifica-se que o contingente vem aumentando desde 2014, quando Dilma Rousseff arruinou a economia do país.

Para esses brasileiros que trazem um espaço baldio entre o esôfago e o duodeno, o debate sobre direita e esquerda, políticas liberais versus políticas sociais é uma inutilidade indigesta. Se Deus tiver que aparecer no pesadelo dessa gente, não será na forma de Bolsonaro ou Dilma. O Todo-Poderoso não se atreveria a surgir em outra forma que não fosse a de um prato de comida.



Em entrevista publicada há quatro dias, na "Folha", o ministro Paulo Guedes lamentou que não tenha prosperado sua proposta sobre o regime previdenciário de capitalização. Declarou que esse modelo "educaria financeiramente as famílias mais pobres". Como assim? "Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo". O IBGE esclarece que os mais pobres consomem nada.

A economia começa a reagir. Mas a reação é demasiado lenta. E o estômago que vive além das fronteiras da pobreza não dispõe de tempo para esperar pelo dia em que conseguirá educar-se financeiramente a ponto de poupar, como deseja Paulo Guedes. O mundo desses estômagos cabe no intervalo entre uma refeição e outra. Seu relógio biológico só tem tempo para certas horas: a hora do café, a hora do almoço, a hora do jantar...  Nessa rotina, a hora da poupança não se encaixa.

Certas autoridades deveriam passar um mês com R$ 145. Chegariam ao final da experiência com uma fome de ministro —ou de presidente da República. Dessas que o sujeito resolve abrindo uma geladeira bem abastecida. Talvez percebessem que as reformas liberais não precisam ser adotadas em detrimento das políticas sociais. Afinal, para que serve o equilíbrio fiscal senão para resolver o drama social de forma consistente?

Um governo instalado há apenas dez meses tem o legítimo direito de colocar em prática as ideias que prevaleceram nas urnas recém-abertas. Seria uma tolice questionar esse direito. Admita-se, para efeito de raciocínio, que as providências encaminhadas pela atual administração serão um sucesso. Ainda assim, a prosperidade não virá instantaneamente.

Convém abrir os olhos para os extremamente pobres. Tratá-los como seres invisíveis é vergonhoso e desumano. Criticar os governos anteriores não resolve o problema dos estômagos em cujas paredes ardem os jatos de suco gástrico. Melhor buscar maneiras de atenuar o drama da transição entre a fome e a bonança que produzirá hipotéticos excedentes para a poupança.

Harari contra o ultranacionalismo

Dado que o gênero humano constitui agora uma única civilização, todos os povos compartilhando desafios e oportunidades comuns, por que britânicos, americanos, russos e diversos outros grupos voltam‐se para o isolamento nacionalista? Será que o retorno ao nacionalismo oferece soluções reais para os problemas inéditos de nosso mundo global, ou é uma indulgência escapista que pode condenar o gênero humano e a biosfera à catástrofe?

Para responder a essa pergunta devemos primeiro dissipar um mito muito difundido. Ao contrário do que diz o senso comum, o nacionalismo não é inato à psique humana e não tem raízes biológicas. É verdade que os humanos são animais integralmente sociais, e a lealdade ao grupo está impressa em seus genes. No entanto, por centenas de milhares de anos o Homo sapiens e seus ancestrais hominídeos viveram em comunidades pequenas e íntimas, com não mais que algumas dezenas de pessoas. Humanos desenvolvem facilmente lealdade a grupos pequenos e íntimos como a tribo, um batalhão de infantaria ou um negócio familiar, mas a lealdade a milhões de pessoas totalmente estranhas não é natural para humanos. Essas lealdades em massa só apareceram nos últimos poucos milhares de anos — em termos evolutivos, ontem de manhã — e exigem imensos esforços de construção social.


As pessoas se deram ao trabalho de construir coletividades nacionais porque se confrontavam com desafios que não podiam ser resolvidos por uma única tribo. Tomem‐se, por exemplo, as antigas tribos que viviam ao longo do rio Nilo milhares de anos atrás. O rio era sua força vital. Ele irrigava os campos e transportava o comércio. Mas era um aliado imprevisível. Se havia pouca chuva, as pessoas morriam de fome; se havia chuva demais, o rio transbordava e destruía aldeias inteiras. Nenhuma tribo poderia resolver sozinha seus problemas, porque cada tribo só dominava uma pequena seção do rio e não poderia mobilizar mais do que poucas centenas de trabalhadores. Somente um esforço comum para construir enormes barragens e cavar centenas de quilômetros de canais poderia conter e controlar o poderoso rio. Esse foi um dos motivos pelos quais as tribos aos poucos coalesceram numa única nação que teve o poder de construir barragens e canais, regular o fluxo do rio, construir reservatórios de grãos para os anos magros e estabelecer um sistema de transporte e comunicação abrangendo todo o país.

Apesar dessas vantagens, transformar tribos e clãs em uma única nação nunca foi fácil, em tempos passados ou hoje em dia. Para se dar conta de como é difícil identificar‐se com essa nação, você só precisa se perguntar: “Eu conheço essas pessoas?”. Sei o nome de minhas duas irmãs e de meus onze primos, e sou capaz de falar um dia inteiro sobre suas personalidades, seus caprichos e seus relacionamentos. Não sei o nome das 8 milhões de pessoas que compartilham comigo a cidadania israelense, nunca me encontrei com a maioria delas, e é muito pouco provável que as encontre no futuro. Minha capacidade de, apesar disso, sentir que sou leal a essa massa nebulosa não é um legado de meus ancestrais caçadores‐coletores, e sim um milagre da história recente. Um biólogo marciano que conhecesse apenas a anatomia e a evolução do Homo sapiens seria incapaz de adivinhar que esses macacos são capazes de desenvolver laços comunitários com milhões de estranhos. Para convencer‐me a ser leal a “Israel” e seus 8 milhões de habitantes, o movimento sionista e o Estado israelense tiveram de criar um gigantesco aparelho de educação, propaganda e patriotismo, assim como sistemas nacionais de segurança, saúde e bem‐estar social.

Isso não quer dizer que haja algo de errado com vínculos nacionais. Sistemas imensos não são capazes de funcionar sem lealdades de massa, e expandir o círculo de empatia humana tem seus méritos. As formas mais amenas de patriotismo têm estado entre as mais benevolentes criações humanas. Acreditar que minha nação é única, que ela merece minha lealdade e que eu tenho obrigações especiais com seus membros inspira‐me a me importar com os outros e a fazer sacrifícios por eles. É perigoso acreditar que sem nacionalismos estaríamos todos vivendo em paraísos liberais. Mais provavelmente, estaríamos vivendo num caos tribal. Países pacíficos, prósperos e liberais, como a Suécia, a Alemanha e a Suíça, cultivam todos um forte senso de nacionalismo. A lista de países aos quais faltam ligações nacionais robustas inclui o Afeganistão, a Somália, o Congo e muitos outros Estados falidos.

O problema começa quando o patriotismo benigno se transforma em ultranacionalismo chauvinista. Em vez de acreditar que minha nação é única — o que é verdadeiro para todas as nações —, eu poderia começar a sentir que minha nação é suprema, que devo a ela toda a minha lealdade e que não tenho obrigações relevantes com mais ninguém. Esse é um terreno fértil para conflitos violentos. Durante gerações a crítica mais básica ao nacionalismo era que ele levava à guerra. Mas a constatação de que havia relação entre nacionalismo e violência dificilmente era capaz de conter os excessos nacionalistas, particularmente quando toda nação justificava sua própria expansão militar alegando a necessidade de se proteger contra as armações de seus vizinhos. Enquanto a nação provia a maior parte de seus cidadãos com níveis inéditos de segurança e prosperidade, eles estavam dispostos a pagar o preço com sangue. No século XIX e início do século XX esse compromisso nacionalista ainda parecia muito atraente. Embora o nacionalismo estivesse levando a terríveis conflitos numa escala sem precedente, os Estados‐nação modernos também construíam sistemas robustos de saúde, educação e bem‐estar social. Os serviços nacionais de saúde faziam com que as batalhas de Ipres e de Verdun parecessem ter valido a pena.

Tudo mudou em 1945. A invenção de armas nucleares abalou fortemente o equilíbrio do arranjo nacionalista. Depois de Hiroshima, as pessoas não temiam que o nacionalismo pudesse levar meramente à guerra — começaram a temer que levaria a uma guerra nuclear. A aniquilação total serviu para aguçar a mente das pessoas, e graças, não em pequena medida, à bomba atômica, o impossível aconteceu e o gênio do nacionalismo foi espremido, ao menos em parte, de volta para sua garrafa. Assim como os antigos aldeões da bacia do Nilo redirecionaram parte de sua lealdade dos clãs locais para um reino muito maior capaz de conter o perigoso rio, na era nuclear uma comunidade global aos poucos se desenvolveu além e acima das várias nações, porque somente uma comunidade desse tipo seria capaz de conter o demônio nuclear.

Na campanha presidencial de 1964, Lyndon B. Johnson pôs no ar o famoso “anúncio da margarida”, uma das mais bem‐sucedidas peças de propaganda nos anais da televisão. O anúncio começa com uma garotinha colhendo e contando as pétalas de uma margarida, mas quando chega a dez uma voz metálica assume a contagem regressiva, de dez a zero, como num lançamento de míssil. Ao chegar a zero o clarão de uma explosão nuclear enche a tela, e o candidato Johnson dirige‐se ao público americano e diz: “É isto que está em jogo. Criar um mundo no qual todos os filhos de Deus podem viver ou entrar na escuridão. Devemos ou amar uns aos outros ou morrer”. Tendemos a associar o mote “faça amor, não faça guerra” à contracultura do final da década de 1960, mas na verdade já em 1964 era consenso até mesmo entre políticos durões como Johnson.

Consequentemente, durante a Guerra Fria o nacionalismo cedeu lugar a uma abordagem mais global da política internacional, e quando a Guerra Fria acabou a globalização parecia ser a irresistível onda do futuro. Esperava‐se que o gênero humano abandonasse a política nacionalista, como se fosse uma relíquia de tempos mais primitivos que atrairia no máximo os mal informados habitantes de alguns países subdesenvolvidos. Acontecimentos em anos recentes provaram, no entanto, que o nacionalismo ainda é capaz de seduzir até mesmo cidadãos da Europa e dos Estados Unidos, mais ainda da Rússia, da Índia e da China. Alienadas pelas forças impessoais do capitalismo global, e temendo pelo destino de seus sistemas nacionais de saúde, educação e bem‐estar social, pessoas em todo o mundo vão buscar conforto e sentido no seio da nação.

Porém a questão levantada por Johnson no anúncio da margarida é ainda mais pertinente hoje em dia do que em 1964. Vamos criar um mundo no qual todos os humanos possam viver juntos ou vamos entrar na escuridão? Donald Trump, Theresa May, Vladimir Putin, Narendra Modi e seus colegas serão capazes de salvar o mundo apelando para nossos sentimentos nacionais, ou será a atual torrente nacionalista uma forma de evadir o intratável problema global que enfrentamos?
Yuval Noah Harari, "21 lições para o século 21"

Cuidado com o efeito Orlofff

As manifestações recentes no Chile sublinham o tamanho do problema. No Brasil, com pobreza extrema, é ainda pior. Não se atenua a pobreza e a desigualdade sem um estado atuante. É preciso ter redes de proteção social fortes. O mercado não resolve sozinho, como já foi mostrado de todo jeito. O Paulo Guedes está preso nos anos 70 do Chile e dos “Chicago boys”. Além disso, ele nunca foi um formulador de políticas públicas, nem precisou de um entendimento mais profundo de políticas públicas sobre a dinâmica da pobreza na vida das pessoas. O Chile passa por uma convulsão pela ausência de bem estar social a despeito de todas as reformas 
Monica De Bolle

Saúde dentro do armário

Após tornarem-se tendencialmente residuais ou decrescentes, flagelos como a sífilis, a peste medieval, e a Aids, a epidemia do século XX, retornaram ao topo das estatísticas dos problemas de saúde. Os modos de transmissão e riscos populacionais dessas e outras doenças sexualmente transmissíveis são conhecidos, e existe tratamento. A incidência é muito maior entre homens que fazem sexo com homens, usam drogas injetáveis, profissionais do sexo e transexuais. Diagnóstico, cura e controle estão relativamente disponíveis; reconhecer e buscar reduzir preconceitos contra gays, usuários de drogas e prostitutas, nem sempre.


Para reduzir a transmissão dessas antigas e modernas doenças, é preciso sair do armário. O Ministério da Saúde acerta ao divulgar informações sobre aumento de casos, mas erra na propaganda. A campanha “Não vacile, use camisinha” é baseada no terror, tenta assustar os jovens, com imagens de efeitos visíveis de algumas doenças no corpo. O medo pode influenciar comportamentos. Mas está comprovado que a intenção de engajar as pessoas em experiências com menor risco à saúde requer apelos às emoções positivas relativas ao sexo.

Cenas de pavor podem contribuir para suscitar intenções de mudar atitudes, mas não as decisões que são tomadas em situações concretas. Além disso, usar camisinha não é, em muitas circunstâncias, uma iniciativa individual. Diálogo difícil ou expectativas negativas sobre a reação de parceiros influenciam escolhas. O clima, a excitação do momento, é uma barreira mencionada para não usar preservativos. Programas que enfatizam os perigos do sexo desprotegido são menos efetivos do que os que estimulam o aumento do prazer sexual com camisinha ou baseados na concepção de que sexo seguro é bom. Querer usar preservativos é diferente de sentir que deveria usar e não conseguir.

Políticas de saúde têm que sair do armário. Preconceitos contribuem para a disseminação de doenças graves em adultos e em bebês, gravidez indesejada e infertilidade. Convicções pessoais sobre a atribuição de culpa pelo risco e doença a indivíduos que não souberam se controlar são fundamentos equivocados. As evidências comprovam que a invocação de estereótipos tende a ser respondida defensivamente ou com desdém por parte dos segmentos populacionais que necessitam de apoio para afirmar identidades e desejos bem como prevenir adoecimento.

Durante a campanha presidencial não faltaram promessas de censura da “mamadeira” alusiva ao pênis e à camisinha. Está aí o resultado. Uma propaganda que não menciona Aids e gravidez. Direciona-se aos jovens em geral, e não às populações-chave; enfatiza o pânico e o nojo a sintomas (que nem sempre ocorrerão, especialmente em mulheres), e oculta as relações amorosas e sexuais, dificultando a adesão às práticas seguras. A substituição de diretrizes técnicas por ameaças instaura a prepotência.

Quando interrogado sobre como resolver o problema, o ministro da Saúde subiu o tom. Respondeu que pretende punir, sem dizer como, os que recusarem tratamento. O alinhamento radical aos preceitos de costumes pretensamente castos pode desequilibrar os frágeis suportes políticos de uma área às voltas com cortes de gastos, adiamento sine die do pagamento da dívida do presidente Bolsonaro, de instituir uma carreira para médicos e medidas polêmicas na atenção básica do SUS.

Conservadorismo nos costumes não combina com o anúncio de autodeclaradas inovações, como o financiamento diferenciado por status social e não de saúde e mobilização de enfermeiros para realizar atos considerados de competência exclusiva de médicos. Mexer e remexer na saúde sem objetivo de evitar e atenuar doenças é indício de um outro tipo de praga, a irresponsabilidade administrativa. A infecção inicia com a obstrução do debate e evolui para os delírios de perseguição e grandeza. Medidas simples — como estudar as experiências internacionais e avaliar com acurácia os efeitos da atual campanha para doenças sexualmente transmissíveis — restabelecem conexões com a realidade.
Ligia Bahia