quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Sai o crime organizado, entra o legalizado
Cidades brasileiras com até 15 mil habitantes elegem nove vereadores. As que têm cerca de um milhão elegem 33. São Paulo, com seus mais de 11 milhões, elege 55. Tire a média e multiplique pelos, segundo o IBGE, 5.570 municípios do Brasil. A pergunta é: quantos dos quase 200 mil vereadores em exercício no país não fazem parte de alguma forma do crime organizado ou foram cooptados por ele?
A pergunta é irrespondível, porque nenhum deles se elege pelo PCC ou por seus satélites, mas por um dos 33 partidos legalmente constituídos, reconhecidos pela Justiça Eleitoral e com direito ao fundo partidário provido pela União para financiar suas campanhas. Os próprios cartolas dos partidos talvez nem desconfiem da ligação deste ou daquele de seus filiados com uma organização criminosa nem ele sobe ao palanque com o button da sua facção. Mas, assim que é eleito, já começa a trabalhar para os interesses do crime, propondo ou revogando leis, nomeando aliados ou facilitando o controle da polícia.
Para que serve um vereador infiltrado? Para o mesmo que um deputado estadual, federal ou senador, ou, se chegarmos a isso, um juiz, desembargador ou ministro —para a lenta costura interna do tecido jurídico, de modo a pôr o Estado a serviço do crime. Essa trama já começou há muito, com a diplomação anual de advogados saídos das facções e sua escalada a promotores ou defensores públicos.
Muitos candidatos a vereador a serviço delas terão sido eleitos há duas semanas, e talvez até alguns prefeitos. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido pela ministra Cármen Lúcia, formou um núcleo de especialistas do Ministério Público e da Polícia Federal para cruzar os pedidos de registro de candidaturas com um possível envolvimento com o crime. É uma nova e poderosa prática de varredura, mas ainda embrionária. Não impede que as facções apontem como candidatos seus membros recém-admitidos, ainda sem nódoa na ficha.
O submundo descobriu que é melhor trabalhar sem balbúrdia, execuções, tiros, balas perdidas e arranca-rabos entre eles. Sai o crime organizado, entra o crime legalizado.
A pergunta é irrespondível, porque nenhum deles se elege pelo PCC ou por seus satélites, mas por um dos 33 partidos legalmente constituídos, reconhecidos pela Justiça Eleitoral e com direito ao fundo partidário provido pela União para financiar suas campanhas. Os próprios cartolas dos partidos talvez nem desconfiem da ligação deste ou daquele de seus filiados com uma organização criminosa nem ele sobe ao palanque com o button da sua facção. Mas, assim que é eleito, já começa a trabalhar para os interesses do crime, propondo ou revogando leis, nomeando aliados ou facilitando o controle da polícia.
Para que serve um vereador infiltrado? Para o mesmo que um deputado estadual, federal ou senador, ou, se chegarmos a isso, um juiz, desembargador ou ministro —para a lenta costura interna do tecido jurídico, de modo a pôr o Estado a serviço do crime. Essa trama já começou há muito, com a diplomação anual de advogados saídos das facções e sua escalada a promotores ou defensores públicos.
Muitos candidatos a vereador a serviço delas terão sido eleitos há duas semanas, e talvez até alguns prefeitos. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido pela ministra Cármen Lúcia, formou um núcleo de especialistas do Ministério Público e da Polícia Federal para cruzar os pedidos de registro de candidaturas com um possível envolvimento com o crime. É uma nova e poderosa prática de varredura, mas ainda embrionária. Não impede que as facções apontem como candidatos seus membros recém-admitidos, ainda sem nódoa na ficha.
O submundo descobriu que é melhor trabalhar sem balbúrdia, execuções, tiros, balas perdidas e arranca-rabos entre eles. Sai o crime organizado, entra o crime legalizado.
O cerco
Tem o CV, Comando Vermelho, mais antigo. Tem o PCC, Primeiro Comando da Capital, de origem em São Paulo – estado que abriga também o Terceiro Comando Puro. Há ainda o Povo de Israel, especializado em falsos sequestros.
Na Paraíba, tem o Okaida. No Piauí, as subfacções Marotos e Brancos, em luta pra ver quem será o primeiro a ganhar a Bahia, que também já tem lá seus donos, com seus territórios preservados a ferro e fogo.
Mais forte, mais fraco, cada estado brasileiro tem um “comando” pra chamar de seu. Para somar ou para ganhar, as forças do Sudeste namoram o amplo território Norte/Nordeste. E segue o baile, que movimenta bilhões, muito de longe dos laços oficiais de controle do dinheiro circulante no país.
Todos os citados são grupos e facções de bandidos que tocam seus businesses, principalmente, das Cadeias – de segurança máxima ou não.
Seus negócios envolvem tráfico de drogas e de armas, construção civil, serviços, lotéricas e outros jogos de azar (agora, também Bets), além dos tradicionais golpes do falso sequestro, de retirada do cartão, das bitcoins e etc. Há quem jure que já avançam pelos ricos negócios do mundo encantado dos influencers.
Eles estão entre nós e não são de brincadeira. Têm força e violência das máfias. Estão bem organizados e cobram fidelidade canina dos seus. Não perdoam deslizes. Nem dão segunda chance.
Deu medo? Pois é pra ter mesmo. Estão e são cada vez mais próximos e atuantes no mundo nada encantado dos muitos males do capitalismo – exaurido, mas resistente, ainda gastando todas as formas de continuar se exercendo.
Não é muito diferente na parte da terra dita socialista raiz, tipo China, Rússia, que também somam suas máfias bem alimentadas pelas economias pujantes.
Fazer o quê? O punitivismo já mostrou seus horrores, fazendo das cadeias, violentamente indignas, escolas e centrais de crimes.
Assim, atrás, cercando e correndo na nossa direção, o crime. Ao lado, Igrejas, com falsos profetas e/ou influencers, a lá Pablo Marçal, oferecendo proteção, riqueza e o céu na terra. Também o fim de todas as desditas com um caminho muito curto para alcançá-lo: o generoso pagamento dos dízimos, de palestras e cursos.
Ó o cerco aí, gente.
Na Paraíba, tem o Okaida. No Piauí, as subfacções Marotos e Brancos, em luta pra ver quem será o primeiro a ganhar a Bahia, que também já tem lá seus donos, com seus territórios preservados a ferro e fogo.
Mais forte, mais fraco, cada estado brasileiro tem um “comando” pra chamar de seu. Para somar ou para ganhar, as forças do Sudeste namoram o amplo território Norte/Nordeste. E segue o baile, que movimenta bilhões, muito de longe dos laços oficiais de controle do dinheiro circulante no país.
Todos os citados são grupos e facções de bandidos que tocam seus businesses, principalmente, das Cadeias – de segurança máxima ou não.
Seus negócios envolvem tráfico de drogas e de armas, construção civil, serviços, lotéricas e outros jogos de azar (agora, também Bets), além dos tradicionais golpes do falso sequestro, de retirada do cartão, das bitcoins e etc. Há quem jure que já avançam pelos ricos negócios do mundo encantado dos influencers.
Eles estão entre nós e não são de brincadeira. Têm força e violência das máfias. Estão bem organizados e cobram fidelidade canina dos seus. Não perdoam deslizes. Nem dão segunda chance.
Deu medo? Pois é pra ter mesmo. Estão e são cada vez mais próximos e atuantes no mundo nada encantado dos muitos males do capitalismo – exaurido, mas resistente, ainda gastando todas as formas de continuar se exercendo.
Não é muito diferente na parte da terra dita socialista raiz, tipo China, Rússia, que também somam suas máfias bem alimentadas pelas economias pujantes.
Fazer o quê? O punitivismo já mostrou seus horrores, fazendo das cadeias, violentamente indignas, escolas e centrais de crimes.
Assim, atrás, cercando e correndo na nossa direção, o crime. Ao lado, Igrejas, com falsos profetas e/ou influencers, a lá Pablo Marçal, oferecendo proteção, riqueza e o céu na terra. Também o fim de todas as desditas com um caminho muito curto para alcançá-lo: o generoso pagamento dos dízimos, de palestras e cursos.
Ó o cerco aí, gente.
'Vocês nos veem queimando, fiquem em silêncio'
Não há consciência. Não há humanidade. Há apenas líderes que observam e não agem.
É nisso que Ahmed al-Dalou acredita, enquanto as imagens de sua família queimando repetem em sua mente. Ele diz que sua vida se foi. Ele morreu no inferno do complexo de al-Aqsa com seus filhos e esposa nas primeiras horas de segunda-feira, 14 de outubro.
À sua frente, no chão, há uma mortalha envolvendo o corpo de Abdulrahman, 12 anos, seu filho mais novo.
A criança permaneceu em agonia por quatro dias após o incêndio, provocado por um ataque israelense. Um dia antes de morrer, Ahmed o viu no hospital e ele conseguiu dizer ao pai: “Não se preocupe, estou bem, pai... Estou bem. Não tenha medo.”
Ahmed está meio falando, meio chorando, enquanto fala sobre o que foi tirado dele.
“Três vezes tentei tirá-lo [Abdulrahman] do fogo, mas seu corpo caiu de volta nele.”
Seu irmão mais velho, Sha'aban, 19, e sua mãe, Alaa, 37, morreram na noite do incêndio.
Sha'aban se tornou um novo símbolo do terrível sofrimento de Gaza. Imagens dele se contorcendo em agonia enquanto queimava até a morte na tenda da família foram compartilhadas ao redor do mundo nas mídias sociais.
Há queimaduras por todo o rosto e mãos de Ahmed. O tom de sua voz é alto, um som agudo. Sobre o piloto anônimo que enviou o míssil e os líderes que lhe deram ordens, Ahmed disse: “Eles quebraram meu coração e quebraram meu espírito... Eu queria que o fogo tivesse me queimado.”
Ahmed al-Dalou é um homem com idade entre 30 e 40 anos, com uma barba curta e escura. Sua cabeça está enfaixada, e seu rosto mostra sinais de extensas queimaduras recentes na testa e no nariz.
Ahmed al-Dalou sobreviveu ao incêndio que destruiu tendas no complexo de al-Aqsa, mas sofreu queimaduras no rosto e nas mãos ao tentar resgatar sua família.
Quatro pessoas foram mortas imediatamente e dezenas de outras ficaram feridas, incluindo muitas com queimaduras graves. As Forças de Defesa de Israel disseram que estavam “revisando o incidente”.
Um porta-voz da Casa Branca disse à CBS News, parceira da BBC nos EUA, que as imagens do incêndio eram "profundamente perturbadoras" e pediu que Israel fizesse mais para proteger os civis.
“Israel tem a responsabilidade de fazer mais para evitar baixas civis - e o que aconteceu aqui é horrível - mesmo que o Hamas estivesse operando perto do hospital em uma tentativa de usar civis como escudos humanos.”
Os EUA e outras potências, incluindo a Grã-Bretanha, expressaram preocupação com as baixas civis desde os primeiros estágios da guerra.
Na maioria das vezes, as agonias da morte acontecem longe das câmeras. É a busca frenética por sobreviventes nos escombros, as cenas dramáticas em hospitais, o fluxo interminável de funerais, que são capturados pelas câmeras.
Mas a morte de Sha'aban al-Dalou foi diferente. Sua mão pode ser vista, saindo do inferno, uma figura envolta em chamas, se contorcendo e além do alcance de qualquer ajuda.
Nos dias seguintes à sua morte, surgiram os próprios vídeos e fotografias de Sha'aban. Ele era um adolescente típico de sua geração, ciente do poder das mídias sociais, adepto de registrar sua vida diária.
A figura em chamas da noite de fogo apareceu ao mundo como um adolescente articulado e inteligente, um estudante de engenharia de software, um jovem que cuidou de sua família planejando uma nova vida fora de Gaza. Ele se filmou doando sangue e encorajou outros a fazerem o mesmo.
“Vimos tantos feridos, muitas crianças precisam urgentemente de sangue… Tudo o que exigimos é um cessar-fogo e o fim desta tragédia.”
Só conseguimos contar a história da família al-Dalou por causa do nosso próprio jornalista local que foi ao encontro dos sobreviventes. Jornalistas internacionais de organizações de mídia, incluindo a BBC, não têm acesso independente a Gaza por Israel.
Em um vídeo gravado na tenda onde morreu, Sha'aban descreveu como sua família foi deslocada cinco vezes desde que a guerra começou, há um ano. Ele tinha duas irmãs e dois irmãos mais novos.
“Vivemos em circunstâncias muito difíceis”, ele disse. “Sofremos de várias coisas, como falta de moradia, comida limitada e remédios extremamente limitados.”
Ao fundo, enquanto ele fala, ouve-se o alto zumbido mecânico de um drone de observação israelense, uma constante na trilha sonora diária e noturna de Gaza.
O irmão sobrevivente de Sha'aban e Abdulrahman, Mohammed al-Dalou, disse à BBC que tentou entrar nas chamas para resgatar seu irmão mais velho.
Mas outras pessoas feridas o seguraram, temendo que ele também fosse morto. Mohammed não dormiu na tenda da família, mas do lado de fora, na rua, onde ele vigiava seus pertences empilhados.
“Eu estava gritando para alguém me soltar, mas em vão… A perna do meu irmão estava presa e ele não conseguia se soltar. Acho que você viu no vídeo. Ele estava levantando a mão.
"Esse era meu irmão. Ele era meu apoio neste mundo.”
Sha'aban vinha e o acordava para as orações da manhã com uma garrafa de água e dizia: "Eu trabalharei para você".
Mohammed lembrou como os irmãos montaram uma barraca nos portões do hospital vendendo comida preparada pela família.
“Nós conseguimos tudo com nosso trabalho duro. Tudo o que tínhamos era do nosso esforço. Nós recebíamos comida e bebida… então tudo se perdia.”
Ele viu os corpos queimados, mas só conseguiu identificar sua mãe. Embora seus restos mortais tivessem sido mutilados pelo fogo, ele reconheceu uma pulseira distinta.
“Sem ela, eu não saberia que ela era minha mãe. A mão dela estava separada do corpo, mas a pulseira ainda estava nela. Eu a tirei da mão dela.”
Esta é a única lembrança que ele tem da mulher que era “a gentileza em nosso lar”.
A família al-Dalou está em choque. Os sobreviventes lamentam os mortos. Nosso colega da BBC perguntou a Mohammed sobre o custo psicológico de ver seus entes queridos morrerem.
“Não consigo descrever. Não consigo descrever como me senti. Quero explicar para as pessoas, mas não consigo. Não consigo descrever. Vi meu irmão queimando na minha frente, e minha mãe também.”
Então, como se estivesse fazendo uma pergunta em nome dos mortos, ele pergunta: “O que mais vocês precisam, e ficam em silêncio? Vocês nos veem queimando, e ficam em silêncio.”
Poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos Sim
a ratos
Alexandre O'Neill, "Tempo de fantasmas"
O declínio da empatia é um risco democrático
Existe uma percepção generalizada de que assistimos a um declínio da empatia nas nossas sociedades. A capacidade para individualmente nos ligarmos com alguém que não partilha a nossa idade, religião, cultura, etnia ou condições socioeconómicas está a diminuir, enquanto crescem a desconfiança face ao outro e o individualismo, potenciando uma cultura de ressentimento e fomentando a polarização social. Não faltam manifestações concretas disto mesmo: do modo como a imigração se está a transformar no tema social central nas nossas sociedades, passando pelos fenômenos de bullying e as formas persistentes de humilhação institucional, até à cultura de ódio que grassa nas redes sociais.
O declínio da empatia não é uma tendência passageira, bem pelo contrário: trata-se de uma causa profunda para a desagregação social que afeta as democracias. Num discurso marcante, feito num encontro com estudantes em Istambul, em 2009, Barack Obama alertava que “o déficit de empatia é mais grave do que o déficit orçamental. Tornámo-nos tão cínicos que parece ingênuo acreditar que podemos compreender-nos uns aos outros ultrapassando o abismo da raça, classe ou religião”. Há muitas explicações para este declínio da empatia, mas nenhuma tão poderosa como a forma como o isolamento social é potenciado pelos desenvolvimentos tecnológicos.
Em todo o mundo ocidental a percentagem de agregados familiares unipessoais tem crescido e Portugal é mesmo um dos países onde a tendência é mais intensa: nos últimos censos, aumentou em 28% o número de pessoas que vivem sozinhas, perfazendo mais de um milhão – sendo que metade são idosos, o que faz de nós o 4º país da UE com maior percentagem de idosos isolados (onde já vai a nossa tradição familialística). A epidemia do isolamento social materializa-se também no decréscimo do número de amigos: por exemplo, num estudo recente, 12% dos norte-americanos reportavam não ter nenhum amigo próximo (há 20 anos o valor era residual, apenas 3%) e a percentagem que dizia ter mais de dez amigos próximos caiu de 33% para 13%. Esta propensão para o individualismo coexiste com a retração da participação em instituições que garantiam a pertença social: das igrejas aos sindicatos, passando pelos partidos.
Enquanto escasseiam os espaços de pertença coletiva, o tempo despendido nas redes sociais cresce brutalmente: em 2013, em média no mundo, cada indivíduo passava uma hora e meia por dia nas redes, em 2023, esse valor aumentou para quase duas horas e meia diárias. Enquanto os países da América do Sul e de África têm valores muito elevados, em Portugal a média é de hora e meia diária. Ao mesmo tempo, a pandemia promoveu o distanciamento social e acelerou transformações no mundo laboral, com o teletrabalho a prejudicar profundamente a forma como historicamente o trabalho foi um fator de integração social e, também, a esbater as fronteiras entre vida privada e trabalho.
Nascemos, é verdade, com uma propensão genética para a empatia, que radica nos neurónios-espelho, mas que está longe de ser suficiente para contrariar o solipsismo crescente. A recuperação de uma ideia de virtude partilhada dependerá da capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, o que acontece cada vez menos. Se coletivamente não o procurarmos, ficamos condenados a viver num crescendo de ressentimento social e com as fissuras sociais a acentuarem-se, no que é um risco para as democracias.
O declínio da empatia não é uma tendência passageira, bem pelo contrário: trata-se de uma causa profunda para a desagregação social que afeta as democracias. Num discurso marcante, feito num encontro com estudantes em Istambul, em 2009, Barack Obama alertava que “o déficit de empatia é mais grave do que o déficit orçamental. Tornámo-nos tão cínicos que parece ingênuo acreditar que podemos compreender-nos uns aos outros ultrapassando o abismo da raça, classe ou religião”. Há muitas explicações para este declínio da empatia, mas nenhuma tão poderosa como a forma como o isolamento social é potenciado pelos desenvolvimentos tecnológicos.
Em todo o mundo ocidental a percentagem de agregados familiares unipessoais tem crescido e Portugal é mesmo um dos países onde a tendência é mais intensa: nos últimos censos, aumentou em 28% o número de pessoas que vivem sozinhas, perfazendo mais de um milhão – sendo que metade são idosos, o que faz de nós o 4º país da UE com maior percentagem de idosos isolados (onde já vai a nossa tradição familialística). A epidemia do isolamento social materializa-se também no decréscimo do número de amigos: por exemplo, num estudo recente, 12% dos norte-americanos reportavam não ter nenhum amigo próximo (há 20 anos o valor era residual, apenas 3%) e a percentagem que dizia ter mais de dez amigos próximos caiu de 33% para 13%. Esta propensão para o individualismo coexiste com a retração da participação em instituições que garantiam a pertença social: das igrejas aos sindicatos, passando pelos partidos.
Enquanto escasseiam os espaços de pertença coletiva, o tempo despendido nas redes sociais cresce brutalmente: em 2013, em média no mundo, cada indivíduo passava uma hora e meia por dia nas redes, em 2023, esse valor aumentou para quase duas horas e meia diárias. Enquanto os países da América do Sul e de África têm valores muito elevados, em Portugal a média é de hora e meia diária. Ao mesmo tempo, a pandemia promoveu o distanciamento social e acelerou transformações no mundo laboral, com o teletrabalho a prejudicar profundamente a forma como historicamente o trabalho foi um fator de integração social e, também, a esbater as fronteiras entre vida privada e trabalho.
Nascemos, é verdade, com uma propensão genética para a empatia, que radica nos neurónios-espelho, mas que está longe de ser suficiente para contrariar o solipsismo crescente. A recuperação de uma ideia de virtude partilhada dependerá da capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, o que acontece cada vez menos. Se coletivamente não o procurarmos, ficamos condenados a viver num crescendo de ressentimento social e com as fissuras sociais a acentuarem-se, no que é um risco para as democracias.
Assinar:
Postagens (Atom)