sexta-feira, 27 de julho de 2018

Aflição nacional

A política é para eles uma promoção e para mim uma aflição. E não há entendimento possível entre nós... Separa-nos um fosso da largura da verdade... Ouvir um político é ouvir um papagaio insincero
Miguel Torga

Zumbis e vampiros

Quando estava no poder, o sonho do PT era o financiamento público das campanhas eleitorais. Como o Fundo Partidário e o tempo de TV, os bilhões do Fundo Eleitoral são distribuídos proporcionalmente ao tamanho das bancadas, e são os que estão no poder, e querem ficar, que têm as maiores fatias do bolo.

A consequência nefasta desse conservadorismo corporativista é os donos das cadeiras as manterem, reduzindo drasticamente as chances de renovação de um Congresso de mortos-vivos: um terço de seus membros são zumbis acusados de propinas, achaques e fraudes eleitorais. É o passado assombrando o futuro.


Criado para democratizar a disputa e equalizar o poder econômico, o financiamento público se tornou fonte de eterno poder para os vampiros eleitorais que estabeleceram os critérios de partilha do butim. Quem tem mais poder, leva mais dinheiro. E pior: a boca-livre eleitoral beneficia os que foram eleitos quatro anos antes, independentemente de sua atuação política e de sua ficha criminal. O contribuinte paga para manter no poder uma gente que, com toda razão, odeia.

A legislação “progressista” é uma farsa conservadora e corporativista para eleger os podres de sempre. Existem outros critérios de distribuição mais justos e democráticos do que a bolsa-candidato; basta ver a legislação dos países que adotam essa forma de financiamento.

É uma ilusão imaginar que a montanha de dinheiro do Fundo Eleitoral vai inibir a ação dos vampiros políticos, que continuarão a achacar, lavar dinheiro e encher o caixa 2 de suas campanhas, para fraudar as eleições e se elegerem. Só que agora vão ser mais cuidadosos. Tudo em dinheiro vivo.

Mas quem tem medo da fiscalização? Nas últimas eleições, os TREs identificaram mais de 250 mil doações ilegais, e não aconteceu absolutamente nada aos doadores e candidatos. Então, para que fiscalizar?

O financiamento público prova, mais uma vez, que no Brasil de hoje até aparentes boas intenções podem ter consequências nefastas, opostas aos seus objetivos.

Sem a renovação do Congresso podre e desmoralizado, como e com quem vai governar o próximo presidente, seja quem for?

Sísifo e o Centrão

Algumas coisas que deveriam estar juntas correm em dimensões ainda diferentes no Brasil, realidades paralelas: o aumento do índice de mortalidade infantil, como sintoma de decadência, e a campanha eleitoral no Brasil. O desencontro da vida real com a política se deve também ao momento em que campanha significa muito arranjo entre partidos, composições, definições de tempo de TV, escolha de vices. É como se o jogo ainda estivesse sendo discutido no vestiário, antes que saia para o campo aberto, diante da plateia.


Mas as notícias que vêm pelo túnel já nos dão matéria para pensar. O famoso bloco parlamentar chamado Centrão é uma das referências do quebra-cabeças. Esta semana, o Centrão decidiu apoiar Geraldo Alckmin. E o mercado reagiu positivamente à notícia.

Uma aliança com o Centrão significa a continuidade do que está aí: ocupação política dos cargos, troca de votos por verbas, enfim, um roteiro que não é necessário relembrar.

O mercado, que aparentemente almejava mudanças, acabou se conformando com a continuidade. Seria isso a manifestação de um senso comum? Não sei bem o que seria um senso comum. Aliás, Leonardo da Vinci tem um belo desenho de crânio em que apontou uma pequena cavidade onde seria o senso comum, o espaço para onde convergem todas as sensações.

Transplantado da fantasia física de Da Vinci para o campo social, o senso comum também poderia estar em outra manifestação: a das pessoas que dão as costas para a política porque rejeitam seus sórdidos métodos. Estas querem mudança, certamente, mas provocam a continuidade. O oposto do que desejam.

A rigor, continuidade dificilmente haverá. Se o mesmo esquema for mantido, as coisas vão piorar. O Congresso já armou uma bomba fiscal que certamente tornará um novo presidente mais vulnerável.

A experiência recente do Congresso foi a de tratar com dois presidentes fracos que precisavam dele para sobreviver no cargo. Dilma caiu, mesmo tentando negociar. Temer teve êxito na negociação para escapar. A correlação de forças entre presidente e Congresso foi alterada por essas experiências recentes. E isso, é claro, vai repercutir no ano que vem. Não importa o presidente vitorioso, de qualquer forma, ele terá de atravessar essa barreira de troca de votos por cargos e verbas.

O mundo real continuará em perigosa decadência. Até gripe se tornou mais letal, num país onde o sarampo reaparece.

Os custos de serviços públicos ineficazes foram sentidos em 2013 e expressos no desejo de ver o dinheiro dos impostos ser mais bem empregado. O impacto da corrupção foi sentido a partir de 2015, com os primeiros lances da Operação Lava Jato. Existe o perigo de que todo este processo de tomada de consciência se sinta frustrado com o desenrolar de uma eleição que pode prolongar a crise.

Impossível prever muitos lances à frente, no entanto torna-se mais claro que, embora o foco se ache na eleição presidencial, é no Congresso que se armam algumas bombas, inclusive a tentativa de acabar com a Lava Jato.

Não vejo saídas brilhantes num cenário em que os partidos, cheios da grana, vão permanecer no poder. Exceto uma atenção maior na eleição para o Congresso e a tentativa de criar uma minoria que defenda a sociedade deste mecanismo vampiresco.

Ainda assim, num tipo de luta como este, a minoria tende a ser isolada e as vitórias se contam em desastres evitados, picaretagens abortadas. O rumo, mesmo, é difícil de mudar.

Nem tudo é sombrio. Graças à Lava Jato, aumentou o risco nos processos de corrupção. Nas composições políticas de agora dificilmente vai entrar dinheiro vivo. É um avanço relativo, porque o rateio dos cargos públicos pode se tornar uma máquina de fazer dinheiro.

Nesse raciocínio, algo que talvez pode ser útil é enfatizar no debate a importância da relação presidente-Congresso e tentar liberá-la, ainda que parcialmente, de seu caráter fisiológico.

Não é uma solução do tipo “seus problemas acabaram”, mas cairia bem no Brasil o sistema francês: eleições parlamentares na semana seguinte à eleição presidencial. O calendário fortalece uma aproximação programática, a tendência dos eleitores é a de garantir maioria para seu presidente eleito.

Isso nem sequer foi pensado numa reforma política, cujo principal objetivo foi o de perpetuar as forças existentes com seus mecanismos de poder. Duas tímidas exceções foram a adoção de uma cláusula de barreira e o fim das coligações proporcionais.

O quadro descrito aqui não é um destino inexorável. Mas o fato de que o Centrão negocia em bloco antes mesmo das eleições e está preparado para exercer uma influência decisiva nos anos que seguem é preocupante. Desde já, aparece como um dos nós a serem desatados.

Como o jogo está sendo discutido no vestiário, não veio ainda a campo aberto e o grande público não se manifestou, ainda existe esta variável da reação popular em aberto.

Mas algumas das regras foram escritas pelos próprios jogadores: até mesmo a latitude dessa variável foi reduzida.

Restam apenas a crise e sua dolorosa pedagogia, sobretudo quando se torna mais aguda. De um modo geral, atinge os mais vulneráveis, e o sistema político, por meio de aumento de impostos e outros sacrifícios sociais, tenta se manter incólume.

Caminhamos para o futuro com um modo de governar chamado governo de coalizão que contém todos os vícios do passado. Como Sísifo, a maioria dos eleitores brasileiros pode colocar a pedra lá em cima para vê-la, de novo, rolar montanha abaixo.

Os filósofos discutem uma saída para essa maldição entre suicídio e revolta. Em termos políticos, certamente haverá muitas nuances, mas algum tipo de revolta é inevitável no horizonte.

A Venezuela está se derretendo e terá inflação de um milhão por cento. Parece ficção, mas já aconteceu na Alemanha em 1923 e na Rodésia no princípio do século.

Dominados por predadores, da esquerda ou da direita, os países se tornam quase inviáveis.

Paisagem brasileira


Diário de um brasileiro

O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o Presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.

O Presidente diz pela televisão
que “é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos”.
As pessoas das cidades grandes
vivem amedrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.

O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.

Como se dormir na casa com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar a camélias.

O povo, um dia.
Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.
Thiago de Mello

Novo presidente não terá mais sozinho a chave do cofre

Depois de 21 anos de ditadura e uma década de caos inflacionário com Sarney, Collor e Itamar, o Brasil finalmente encontrou um caminho seguro a partir de 1995, quando o Plano Real vingou com desempenhos macroeconômicos razoavelmente responsáveis de FHC e Lula.


O tucano estabilizou a economia e saneou o sistema financeiro; o petista manteve as condições para o crescimento e patrocinou uma inédita inclusão social. No final dos 16 anos da dupla, o país foi ao ápice: 7,5% de crescimento em 2010 e contas internas e externas em ordem.

Com as políticas de Dilma 1, o crescimento médio baixou para 2,3%. No período Dilma 2/Temer, ficaremos no vermelho e com a maior das recessões no meio do caminho.

O resumo é que, mesmo com as contas externas ainda arrumadas, o Brasil quebrou internamente —e precisa agora de cerca de R$ 250 bilhões a mais por ano para conter a explosão da dívida pública.

Essa sequência tem lógica e pode ser entendida a partir das rubricas de receitas e gastos no Orçamento. É pelo seu exame que o próximo presidente poderia nos tirar do abismo.

Mas não é tão simples. Nesses mais de 30 anos, o Orçamento público foi sendo capturado por dois grandes grupos, os servidores estatais e a classe política, que passaram a se apropriar cada vez mais das receitas.

Além de ganhar mais na ativa, os servidores aposentados custam ao Tesouro 13 vezes mais, em média, que os beneficiários privados no INSS.

Na política, o presidente foi enfraquecido quando os partidos se multiplicaram no Congresso, saltando de 19 para 28 entre a primeira e a última eleição pós-redemocratização.

Enquanto servidores seguem obtendo aumentos, a maioria parlamentar hoje é formada de empresários e ruralistas. E eles arrancaram do Orçamento três centenas de isenções tributárias de 2010 a 2017, ano em que somaram mais de R$ 270 bilhões.

Certamente o próximo presidente será importante. Mas é preciso seguir o dinheiro para ver quem de fato agora gira a chave do cofre.

Aos ratos, a urna

Estamos vivendo o apogeu do ridículo. Estamos atingindo o máximo da loucura
Pedro Simon, ex-senador que se aposentou da vida parlamentar em 2015 após mais de 50 anos na política

Lições da Tailândia

Nesta Copa, cada povo torceu por sua seleção até que, em 2 de julho, o mundo inteiro passou a torcer pelo Javalis Selvagens. Doze jogadores mirins e seu técnico, presos dentro de uma caverna na Tailândia, atraíram a atenção tanto quanto as seleções na Rússia. Aquele país deu algumas lições ao mundo.

Mostrou gestão para mobilizar recursos, com o heroísmo de voluntários, realizando uma operação que parecia impossível. Venceram desafios quase insuperáveis: localizar os meninos, alimentá-los a 3 km da entrada da caverna e a 1 km de profundidade.


A primeira lição é que o salvamento seria impossível sem conhecimento técnico e sem a coordenação de profissionais de diversas especialidades e nacionalidades.

Outra lição é que a operação só foi possível graças à decisão política dos governantes tailandeses. Sem ela, os recursos disponíveis não seriam utilizados. A desmoralização da política faz esquecer que, sem ela, as decisões não são tomadas, os recursos não são utilizados ou servem a causas erradas. A bem-sucedida operação nos ensinou que os países não aplicam recursos para resgatar milhões de pobres, porque as decisões políticas são tomadas com base na moral prevalecente na sociedade.

O salvamento exigiu técnicas mais complexas do que as necessárias para educar, alimentar, construir moradias, levar água para milhões de pobres. As sociedades não usam a política para mobilizar recursos que salvem os milhões sem teto, sem comida, sem educação, porque não há um imperativo moral para isso.

A ética induz a política ao resgate de meninos presos em uma caverna, mas tolera a omissão da condenação de milhões de outras crianças à pobreza. A moral criou um imperativo que leva à mobilização para resgatar o Javalis Selvagens e força uma pessoa que sabe nadar a heroicamente saltar para salvar quem se afoga, mas não a alfabetizar quem não lê.

Todos se empenham para evitar que uma pessoa morra por falta de oxigênio em uma caverna, mas toleram a morte por falta dele em um hospital. Todos sofremos diante do risco dos meninos com fome e frio na caverna, mas aceitamos a fome endêmica, o frio e a negação de escola e saúde para milhões de meninos que caminham livres em nossos países. Viver na pobreza implica a mesma escassez de uma caverna.

Outra lição é que o imperativo moral que impele as decisões políticas trata com diferença os condenados na caverna geológica e os da caverna social da pobreza. Não se considera “afogado” quem fica sem oxigênio por falta de atendimento médico; não se usa “resgate” para retirar alguém da rua; não se chama “escuridão” o mundo em que vive um analfabeto, não se considera “genocídio” a morte por inanição.

Felizmente, a moral salvou os meninos; mas ela não empurra a política para “resgatar” os pobres nas “cavernas sociais”: do analfabetismo e da deseducação; da desnutrição crônica; da falta de água potável, coleta de lixo e esgoto; da falta de atendimento médico.

Talvez as lições da Tailândia nos levem a mudar a linguagem, a moral e o uso da política a serviço da justiça social. Que pelo menos os políticos aprendam a lição.