quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Boas Festas, Brasil

Anoiteceu
O sino gemeu
A gente ficou
Feliz a cantar

Papai Noel
Vê se você tem
A felicidade
Pra você me dar.

Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel

Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel
Não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem.
Assis Valente

O papel da pompa

“Ao alcançar o centro do recinto, o iniciante volta-se então para a Rainha e os Tronos e caminha para dentro do espaço ritual. Ele então se ajoelha, apoiando-se numa banqueta diante da Rainha, que está de pé sobre a plataforma, em plano um pouco mais elevado. A Rainha toca o cavaleiro ajoelhado em cada ombro com o lado chato da Espada do Estado, nomeando-o; ele se levanta; ela passa a fita da Ordem do Cavaleiro em torno de seu pescoço (isso também é outra inovação recente); eles apertam as mãos; a Rainha diz alguma coisa apropriada a cada um dos iniciantes; o iniciante inclina-se, recua andando para trás até sair do espaço ritual, depois sai para a esquerda. O iniciante então caminha até a parte de trás para se reunir ao público.”

Meu ilustre colega, Edmund Ronald Leach, de Cambridge, falecido em 1989, assim descreve e analisa a cerimônia do seu investimento como Sir, provando como a antropologia social é um valioso instrumento de entendimento de nossa própria vida social. Os leitores familiarizados com meus trabalhos sabem como tenho seguido esse caminho nos meus livros e aqui no jornal.

Reproduzi esse trecho da análise de um “rito de mérito” — publicado na revista Mana, vol.6, 1 de 2000 — motivado pelo que viveu na semana passada Lewis Hamilton, o consagrado automobilista negro, quando passou de celebridade a Sir. Aliás, uma das consequências desse passo aristocrático é que o piloto deve ser chamado de Sir Lewis, deixando seu nome de família. Uma morte e ressurreição simbólicas, como diz Leach.

Agora ele passa a figurar numa lista de heróis do mundo britânico. Ridículo? Se você acha que existem sociedades sem ideais, continue elegendo políticos-fachadinhas, prefeitos gatunos e parlamentares que se apossam dos seus cargos.

Meu ponto aqui é chamar a atenção para o fato de a pompa enfatizar a sacralidade do cargo. Pois o papel da pompa, que sempre implica uma entrega pessoal ou um juramento, significa que o incumbente não “toma posse” do cargo; muito pelo contrário, é o cargo que promove o renascimento de seu incumbente, limitando ou dissolvendo sua rotineira rede social. A pompa focaliza (ou legitima, como ensinou Max Weber) a dimensão pública do cargo, decapitando com a espada real todos os seus elos anteriores.

Como tenho reiterado aqui e na minha obra, não há teatro sem atores e não há drama se os atores não respeitam e honram seus papéis!

É crítico acentuar que os rituais de mérito (ou de investidura, que chamamos de “posse”!) são exemplares nas sociedades que não admitem a instabilidade, a má-fé, a insegurança e a corrupção (o uso da impessoalidade do cargo para proveito pessoal, familístico ou ideológico —“aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei!”) — essa pessoalidade das tiranias que nossa esperteza malandra e ultrarrealista chama puerilmente de “política”. Política não é burrice, hipocrisia ou contrassenso. É projeto e ideal — é respeito pelo eleitor, e não o descaso irracional por ele.

Quanto maior a pompa, mais fica simbolizada a responsabilidade de quem é investido no papel. Pois a magnificência mostra que, numa democracia, ninguém tem privilégios natos. Desse modo, a potência dos cargos privilegiados revela suas demandas, não suas facilidades.

Aqui, creio, está uma das diferenças capitais entre o patrimonialismo nacional, em que existe um hibridismo de propostas e juramentos burocrático-legais-carismáticos, e um mínimo de pompa sacramental que isola o lado formal do cargo. No Brasil, há muito mais discurso populista que um juramento que aprisione a pessoa ao cargo!

O resultado é esse perturbador descompasso entre presidentes absolutistas, populistas e raramente equilibrados, como foi o caso de FHC, e o cargo que o engloba. Não como uma mera vantagem político-partidária, mas com a potência da soberania que harmoniza o país justamente porque está com e não contra, como ocorre hoje, a vontade popular.

Se você acha tudo isso uma bobagem, esqueça o dia de aniversário do seu casamento...

P.S.: Gilberto Freyre e Pelé receberam o título. Não puderam usá-lo por ser estrangeiros.

Governo a coices

"Coice. S. m. Pancada que certos quadrúpedes, especialmente os equinos, desferem com os cascos traseiros firmando as patas dianteiras no chão." Com poucas alterações, é como os dicionários Aurélio e Houaiss definem uma prática dos cavalos, jumentos, mulas e outros equídeos. A diferença é que esses infelizes —a espécie animal mais brutalizada pelo homem na história— fazem isso como autodefesa. Mas as futuras edições dos dicionários terão de acrescentar uma nova acepção ao verbete: "Sistema de governo a patadas inaugurado por Jair Bolsonaro (2019-22) para intimidar os adversários, destruir as instituições democráticas e tentar se eternizar no poder no Brasil."

Desde sua posse na Presidência, há quase três anos, não se passou um dia em que Bolsonaro não escoiceasse contra algo ou alguém. É como ele se comunica com o mundo —falando através de uma ferradura. Mas será um erro compará-lo aos irracionais em que se inspira. Cada golpe de seus cascos é pensado antes de desferido e programado de modo a que o alvo o receba pelas costas.


Bolsonaro já espezinhou e aviltou, com sucesso, os órgãos de controle da Justiça, da comunidade de informações, da segurança, da diplomacia, do ensino, da economia, do orçamento, da ciência e tecnologia, da estatística, do meio ambiente, do patrimônio histórico, dos direitos humanos, do acesso a armas, de várias estatais e, principalmente, da saúde. Nesta, seus coices são letais: mais de 600 mil mortes pela pandemia até agora e, há dias, uma cavalhada sobre a Anvisa, para infectar quantas crianças puder neste fim de ano.

Bolsonaro não se furta a pisotear o próprio Exército, na figura de generais que inventa e depois chuta pela janela. É da sua natureza, tratar a pontapés até os aliados.

Gosto de dicionários porque eles pensam em tudo. Veja, por exemplo, mais este significado para coice: "Recuo violento de arma de fogo quando detona".

Pensamento do Dia

 

Miguel Morales Madrigal (Cuba)

Ou Sérgio Porto adivinhava o futuro, ou é o Brasil que nunca saiu do passado

“Foi em Diamantina…”, falei, e não consegui continuar, porque a frase bastou pra família inteira começar a cantar “…onde nasceu JK/Que a princesa Leopoldina arresorveu se casá”. Aliás a família toda, não: só a velha guarda. A nova geração observava perplexa o transe coletivo. “Joaquim José/Que também é/Da “Foi em Diamantina…”, falei, e não consegui continuar, porque a frase bastou pra família inteira começar a cantar “…onde nasceu JK/Que a princesa Leopoldina arresorveu se casá”.

Aliás a família toda, não: só a velha guarda. A nova geração observava perplexa o transe coletivo. “Joaquim José/Que também é/Da Silva Xavier/Queria ser dono do mundo/E se elegeu Pedro 2º.” Só pararam no refrão: “O, ô , ô, ô, ô, ô, O trem tá atrasado ou já passou”.ilva Xavier/Queria ser dono do mundo/E se elegeu Pedro 2º.” Só pararam no refrão: “O, ô , ô, ô, ô, ô, O trem tá atrasado ou já passou”.


Stanislaw Ponte Preta não foi um personagem nem um escritor, mas uma espécie de espírito zombeteiro que baixou em Sérgio Porto. Incorporado, realizou o sonho oswaldiano: serviu às massas o biscoito fino da autoironia. Devora-me ou devoro-me. Sua antropofagia começava por deglutir a si mesma.

“Se Vinicius de Moraes não fossem muitos, se chamaria Vinicio de Moral” dizia a Tia Zulmira, heterônimo do Stanislaw Ponte Preta, que por sua vez era um heterônimo do Sérgio Porto. Sim, os heterônimos de Sérgio tinham, por sua vez, heterônimos. Quando falava sobre Vinicius, falava sobre si mesmo: devia se chamar Sergius Portos. Sérgio criou Stanislaw, que criou o Primo Altamirando, Rosamundo e Bonifácio, o falso patriota —um bolsonarista “avant la lettre”.

“Boêmio que gosta de ficar em casa”, fazia jornada dupla. “Era, como quase todos os humoristas brasileiros, um trabalhador braçal”, dizia o Millôr. Porto escreveu, por dois anos ininterruptos, duas crônicas diárias. Pra ser justo, dividia o trabalho com o Stanislaw: cada qual escrevia uma. O problema é que as duas almas ocupavam o mesmo corpo. Espaço não faltava: Sérgio Porto era alto e corpulento. Radialista e apresentador de tevê (antes de existir tevê) ocupava, nas horas vagas —tinham horas vagas?– a função de goleiro do Lá Vai Bola, time de futebol de praia que contava, na linha, com Heleno de Freitas e João Saldanha.

“O dia só tem 24 horas, e a vida, como ficou provado, apenas 44 anos” ainda o Millôr, sobre a morte do amigo. Sérgio não parou de trabalhar —até morrer, tão cedo, de trabalhar. Há quem cite também um envenenamento. Dias antes de morrer, tinha ido parar no hospital por causa de um café batizado —dizem que pela ditadura. Bem não fez.

O Alvaro Costa e Silva acaba de lançar “A Fina Flor de Stanislaw Ponte Preta” –uma coletânea de crônicas que poderiam ter sido escritas hoje. Militares locupletados, moralistas de araque, tá tudo lá. Ou era o Sérgio Porto que adivinhava o futuro, ou é o Brasil que nunca saiu do passado.

O orçamento das escolhas erradas

O presidente Bolsonaro fez uma intervenção explícita e truculenta na Polícia Federal. Desde aquela reunião ministerial em 2020 na qual ele avisou “vou interferir”, já houve de tudo na PF. Troca de comando por diretores submissos, exoneração e remoção de delegados, punição para os que desagradam o presidente. Agora, no orçamento do ano eleitoral, o presidente ofereceu aos policiais federais um “cala boca”. Esse foi o único assunto pelo qual Bolsonaro se mobilizou, chegando a telefonar para o relator e pedir. Não é por acaso. É mais do que o atendimento de interesses corporativistas. Bolsonaro quer agradar à Polícia Federal e à Polícia Rodoviária Federal porque quer contar com as forças de segurança para seu projeto autoritário. A intervenção e o reajuste se completam como parte do mesmo plano. E ele usa o orçamento para isso.

O investimento público no ano que vem será o menor da história. A maior fatia irá para o Ministério da Defesa, como foi no ano passado. É parte do mesmo projeto. A bolsonarização é o nível mais degradante a que chegaram as Forças Armadas desde o fim da ditadura. Como é uma corporação fechada, sabe-se que há divergências internas, mas elas não são explícitas.


O que aparece é o projeto dos generais que foram para o governo Bolsonaro, quando ainda eram da ativa e estão lá sedimentando a ideia de que Bolsonaro pode se referir à força terrestre como o “meu exército”. Dar aos militares a fatia maior do investimento também faz parte do projeto. É Bolsonaro dizendo: fiquem comigo que só eu atendo às necessidades de vocês.

O aumento do fundo eleitoral para R$ 5 bilhões foi fruto de um acordão que reuniu a maioria dos políticos, mas que demonstra uma total falta de sensibilidade. O país ficou mais pobre, as famílias têm mais dificuldade de ter o mesmo nível de consumo com a inflação de dois dígitos e forte queda de renda. Em uma pesquisa que saiu essa semana, o Datafolha mostrou que a confiança no Congresso, que já era baixa, caiu mais. Agora só 10% dos brasileiros acham o trabalho de deputados e senadores bom ou ótimo. Diante disso, como explicar aos eleitores que os políticos decidiram quase triplicar a verba que financia seus gastos eleitorais? E isso sem falar no Fundo Partidário.

O orçamento deste ano foi um show de horrores desde o começo. O governo e sua base conseguiram dobrar a oposição e os parlamentares independentes e aprovar pedaladas para dar o que o ministro Paulo Guedes pediu: “licença para gastar”. A mudança do cálculo do teto desmoralizou o marco fiscal, o calote nas dívidas empurrará uma bomba para os próximos anos, o socorro aos mais pobres foi usado de forma demagógica como pretexto. Se a preocupação fosse com os pobres, o caminho seria outro.

Além de toda a manipulação política e eleitoreira, houve a má alocação de recursos. Normalmente, ministro que cuida do cofre público, o defende. O papel de um ministro da Fazenda ou da Economia é exatamente evitar despesa que privilegie um setor, apenas por interesses eleitorais. Mas o atual condutor da economia não só apoiou o presidente como também ofereceu o seu ministério para ter os cortes necessários para abrigar o aumento dos policiais, e a conta bateu na Receita Federal. O resultado foi revolta dos servidores. Auditores fiscais afastaram-se das suas funções e funcionários do Banco Central protestaram. É claro que isso vai gerar uma reação em cadeia no funcionalismo.

O país enfrenta ainda os rigores da pandemia, precisa investir em ciência e no sistema de saúde. Os estudantes desaprenderam, muitos alunos pobres perderam o vínculo com a escola, há uma multidão de desempregados, quase quatro milhões deles procuram inutilmente emprego há mais de dois anos, hackers impedem o acesso a dados pessoais dos vacinados há dez dias. Nesse quadro desalentador, os parlamentares e o governo federal decidem que R$ 5 bilhões vão para o gasto deles mesmos com suas campanhas, que R$ 37 bilhões vão para emendas parlamentares, sendo R$ 16,5 bilhões através de um mecanismo que oculta o ordenador da despesa, e quase R$ 2 bilhões vão para aumento de salário de policiais federais, reajuste que virará despesa permanente. O orçamento do último ano do governo Bolsonaro é tão trágico e equivocado quanto sua própria administração. Porém, Congresso não é carimbo. Aprovou tudo porque quis.

Brasil: quem paga ‘pra’ gente ficar assim?

O Brasil é um país tão acostumado ao desassossego que difícil mesmo é ter estabilidade por muito tempo. Depois que os militares devolveram a Presidência da República aos civis, em 1985, o período mais estável, tanto do ponto de vista político quanto econômico, se deu entre 1995 e 2010, durante os quatro mandatos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Observar em perspectiva como conquistamos a estabilidade e por que ela vem sendo ameaçada há quase dez anos é um exercício útil neste fim de 2021, véspera de um ano eleitoral cujo desenlace é impossível antecipar neste momento.

A transição do regime militar para o democrático se deu num ambiente econômico conturbado. A inflação de 1984 chegou a 192,1% e, em 1985, primeiro ano de um governo civil depois de 21 anos de ditadura, esticou para 226%. Depois da longa e profunda recessão de 1981-1983, provocada pelos efeitos da segunda crise mundial do petróleo em sete anos, o Produto Interno Bruto (PIB) voltou a crescer de forma acelerada - no biênio 1984-1985, avançou 5,3% e 7,9%, respectivamente - mas, com inflação naquele nível, nem a turma do IBGE, responsável pelo cálculo das contas nacionais, quis saber de comemoração.


Os últimos ministros do Planejamento e da Fazenda do período militar - Delfim Netto e Ernane Galvêas, entregaram o bastão ao governo civil de José Sarney depois de promover esforço hercúleo para reequilibrar as contas externas. Em 1980, o déficit em transações correntes do Brasil bateu em 8,8% do PIB, caiu para 7% em 1981 e, em 1982, ano da chamada “crise da dívida”, foi a 9,1% do PIB. Era uma situação insustentável para aquele momento e modelo econômico no qual vivíamos.

Quando a soma do saldo da balança comercial (exportações menos importações), dos serviços e das transferências unilaterais de recursos é negativa, tem-se um déficit na conta corrente do país. Déficits, em tese, geram dívidas e estas precisam ser pagas, do contrário, não se tem obtém mais crédito na praça. Por causa de seu modelo econômico, países como a Austrália - os Estados Unidos não contam porque, desde o fim do padrão-ouro (reserva do minério usada como lastro ou limite para emissão de moeda), em 1971, o dólar se tornou “ouro” - acumulam déficits desde sempre e isso não é um tormento porque o que uma economia precisa é de reputação e credibilidade para financiá-los.

O II PND tinha a ambição de transformar a economia brasileira, que em 1973 vinha de um longo e exitoso período de crescimento ininterrupto, batizado de “milagre econômico”, numa ilha de prosperidade em meio à derrocada de todas as economias que, naquela quadra, não possuíam nem moeda forte nem petróleo.

A maioria das medidas visava tornar nossa economia autossuficiente na produção de bens, de forma que não necessitássemos importar coisa alguma. Por quê? Porque, se importássemos, acumularíamos déficits e quebraríamos porque não teríamos, jamais, condições de financiá-los. Para bancar a criação de um Estado “soviético” no Brasil, o país aproveitou o “melhor” da primeira crise do petróleo - empréstimos externos a juros baixíssimos, viabilizado por crédito gerado por excesso de liquidez (petrodólares) na economia mundial - e o “pior” do receituário de alavancagem por parte do setor público - o uso, sem limite ou constrangimento, do endividamento no mercado interno.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que fechou a economia e criou mais de 300 estatais - isso mesmo, tre-zen-tas - no espaço de apenas cinco anos, fracassara no seu objetivo de isolar o Brasil dos efeitos da primeira grande crise do petróleo (1973). Em 1979, com o início da segunda crise do petróleo, o preço do barril escalou a alturas nunca vistas antes. Dependentes naquela época de petróleo importado, os EUA testemunharam, assombrados, ao vertiginoso aumento da inflação. Com esta beirando 20% em 12 meses, o banco central americano colocou os juros acima disso e a consequência, no caso da economia brasileira e da maioria de seus pares, foi a elevação daquelas taxas de juros “camaradas” cobradas nos empréstimos tomados ao exterior para construir aqui, na América do Sul, a ilha que resistiria a todos os males que viessem do mundo ao qual ela pertence.

Alguns dirão que a medida do fracasso, nesse caso, é inexistente, porque o II PND teve inúmeros méritos; houve boas e más decisões, e que era impossível prever o advento de uma nova crise do petróleo em tão pouco tempo de decorrida a primeira. A impressão que fica é a de que só teria havido fracasso se o Brasil tivesse deixado de existir.

Bem, talvez, enfrentamos crises de toda sorte para lidar com as consequências do PND, quais sejam, a escalada brutal da dívida externa do país; seguida da série de calotes na dívida externa que nos puseram de castigo, sem acesso ao sistema de crédito internacional por mais de uma década; das maxidesvalorizações da moeda nacional em relação ao dólar - para estimular exportações e, assim, o acúmulo de divisas necessárias ao pagamento dos compromissos com o exterior -; do consequente aumento permanente da inflação, que poucos anos depois saiu completamente do controle; da incapacitação do Estado em prover serviços básicos de qualidade e de investir, por exemplo, em obras de infraestrutura, cruciais para atrair investimento privado nos vários setores da economia etc.

Idealizado para o país não passar vexame em suas trocas com o exterior, o II PND nos tornou caloteiros - a escassez de dólares levou o Banco Central a “centralizar” o câmbio, isto é, a decidir que credor seria pago, uma vez que não havia dinheiro para todos. Os japoneses, sócios da Vale e de outras então estatais e responsáveis pela implantação de projeto grandioso no Centro-Oeste, tornando essa região produtora de soja, foram os primeiros a sofrer calote. Jamais nos perdoaram.

Nas quatro décadas seguintes ao II PND, este país estagnou. Alguns economistas chamam o período de “depressão”. De positivo, alcançamos a estabilidade política e econômica, mas ambas estão sob escrutínio desde a gestão Dilma Rousseff (2011-2016).

O país das tristes certezas

Os analistas políticos e os economistas do mundo paralelo das finanças são todos unânimes em afirmar que o país está parado e que o câmbio, a inflação e os investimentos estão afetados por causa das incertezas quanto aos resultados das eleições do ano que vem.

O sentimento é que tudo pode mudar conforme o presidente eleito. Penso que isto é reflexo de uma visão idealista da política, porque à semelhança do mundo do príncipe de Salina, do romance O Leopardo, na maior parte do tempo no Brasil os presidentes mudam para que tudo fique como está.


Na história das últimas décadas, o Brasil só mudou de fato sob o comando de uma ordem autoritária e impositiva, nos governos dos generais Castelo Branco e Ernesto Geisel, ou sob as raras lideranças inspiradoras, capazes de projetar uma imagem atraente do nosso destino, como Juscelino e Fernando Henrique.

No resto do tempo os sistemas tradicionais da política e da Justiça se impuseram sobre a Presidência e acabaram ditando suas políticas e seu comportamento, muitas vezes no sentido contrário aos discursos de campanha.

As únicas escolhas eleitorais democráticas em nosso país, no sentido de que o povo sabe exatamente quem está escolhendo e para quê, são as de prefeitos, governadores e presidente da República. Nos países em que o regime de governo é o parlamentarismo ou naqueles de regime presidencialista com apenas dois ou três partidos, também a escolha dos deputados é consistente com a vontade dos eleitores.

No Brasil a eleição dos deputados, que no fim das contas vai definir o que os governos podem realmente fazer, é um tiro no escuro. Ninguém, nem mesmo o cidadão mais sofisticado, tem qualquer noção das consequências do seu voto.

O deputado em nosso sistema praticamente não presta contas de nada. Pode cruzar todas as fronteiras, sejam partidárias, ideológicas ou de valores e fazer todos os acordos que forem convenientes. Esta realidade vem de longe, mas no governo atual chegou a um limite extremo.

Não é possível saber se no futuro algum presidente terá a força e a coragem para desmontar estes arranjos, que desmoralizam qualquer administração e ditam a sua pauta, tornando-a fragmentária, paroquial e alheia às verdadeiras questões que cabe ao governo enfrentar.

A Constituição brasileira, que mudou tanta coisa, não quis reformar a vida política. Deu margem à multiplicação de partidos sem nenhuma razão de ser. Partidos sem projeto, sem propostas, sem relação com o interesse público.

Salvo dois ou três, os outros não são democráticos, são partidos que têm donos e funcionam como cartórios, que distribuem franquias. No final, à revelia de todos, dominam as eleições e o Parlamento.

Enquanto perdurar esta ordem política não há que se falar em incerteza. O que temos, ao contrário, são tristes certezas. A certeza de que o Presidente a ser eleito, qualquer que seja ele, não vai ter maioria na Câmara ou no Senado. A certeza de que não precisa perder seu tempo em convencer 10 ou 20 partidos das razões de Estado, das carências da população e da construção de um futuro.

Esta língua republicana não é compreendida num círculo que se acostumou com nomeações e emendas, se possível, secretas, e que tem sob seu controle todas as pautas legislativas e, se necessária, a ameaça dos impeachments. E a certeza de que para governar precisa ultrapassar muitos limites.

No fundo não só o presidente é refém deste sistema infeccioso, mas também a própria população. A verdadeira polarização da eleição de 2022, a que precisa ser resolvida, não é entre pessoas, mas a que separa de um lado a República e a sociedade e, de outro, um sistema de chefetes partidários que tomou para si o Parlamento brasileiro.

Pode parecer impossível, mas vou lembrar Hannah Arendt, quando disse que o homem, de um modo misterioso, é manifestamente dotado para fazer milagres e que os homens, enquanto puderem agir, podem realizar o improvável, e continuamente o realizam.