sábado, 30 de novembro de 2019

Cresce tentação autoritária entre governos da América do Sul

O ministro brasileiro da Economia, Paulo Guedes, não é conhecido por ser especialmente cauteloso. No entanto, em sua fala em Washington, no fim de novembro, surpreendeu com uma estratégia de recuo, ao suspender temporariamente – devido aos protestos nos vizinhos sul-americanos – o abrangente pacote de reformas do aparato estatal e do sistema tributário, anunciado há apenas três semanas.

"Não queremos dar nenhum pretexto para as pessoas irem às ruas", disse, contrito, segundo o jornal Estado de S. Paulo: "Vamos ver o que está acontecendo primeiro. Vamos entender o que está acontecendo."

Assim, o Brasil é o último governo latino-americano a sustar um pacote de reformas abrangentes. Antes, o Equador e o Chile haviam recuado em seus planos. Na Colômbia, o povo também está protestando, em parte contra a reforma da aposentadoria.


As reformas não foram o estopim direto para os protestos em nível nacional, mas sim aumentos de preços dos transportes públicos ou combustíveis, ou possíveis manipulações eleitorais. Ainda assim, os projetos nacionais de reforma intensificaram as manifestações.

Em geral, os pacotes visam reduzir os altos déficits orçamentários, responsáveis por inflação e alto endividamento – nesse sentido, os esforços dos governos para reduzir gradativamente as aposentadorias. Por outro lado, sua meta é tornar a economia mais produtiva e reduzir o aparato estatal.

Em termos de produtividade, as economias sul-americanas vão mancando atrás tanto das dos países industriais quanto das do Extremo Oriente, que crescem rapidamente. As empresas e empregados da região são pouco competitivos no mercado mundial. Os Estados, por sua vez, oferecem serviços de baixa qualidade; a oferta estatal em educação, saúde, infraestrutura e segurança é catastrófica.

Nesse sentido, as reformas não só fazem sentido, como são urgentemente necessárias para que a América do Sul não fique mais uma vez para trás na economia mundial. Em 2019, ela é o continente que menos crescerá, e os protestos frearão ainda mais o crescimento.

O problema das reformas, contudo, é que os governos conservadores do Brasil, Chile e Colômbia pretendem distribuir os custos dos cortes orçamentários pelo maior número possível de cidadãos, mas hesitam em confrontar os privilegiados com desvantagens. Além disso, querem impor sobretudo medidas que favoreçam as empresas.

Uma das promessas eleitorais principais do presidente Sebastián Piñera – ele próprio um dos empresários chilenos mais ricos – foi reverter, em parte, a reforma das leis sobre empresas de sua antecessora, Michelle Bachelet. Para muitos chilenos, o gabinete de Piñera parecia uma comunidade de interesses da elite empresarial do país.

Também no Brasil, o governo de fato flexibilizou as totalmente antiquadas leis trabalhistas e elevou a idade mínima de aposentadoria, mas os privilégios dos militares permaneceram intocados; e ele dificilmente decretará cortes para os funcionários alto-assalariados. Em suas reformas, os governos conservadores sul-americanos são cegos do olho social e não ousam tocar nas sinecuras dos altamente privilegiados – dos quais eles também fazem parte. Isso reduz ainda mais a credibilidade dos processos reformistas.

Agora ameaça o perigo de os Estados caírem na tentação de impor de forma autoritária as reformas fracassadas ou suspensas. Na América do Sul existe a franca tradição de mobilizar os militares para "garantir a ordem pública", o que muitas vezes é sinônimo de "garantir os interesses das elites".

Em Washington, visivelmente exasperado, o ministro Guedes esbravejou que, diante dos protestos, "não se assustem se alguém pedir o AI-5" em breve – uma dissonante lembrança dos atos institucionais impostos cerca de 50 anos atrás pela ditadura militar.

Deutsche Welle

O presidente da República contra a imprensa

O presidente Jair Bolsonaro falou ontem, referindo-se à administração pública, que tem dificuldades seríssimas em muitas áreas. Nós sabemos.

Aliás, nesta ocasião, referiu-se ao Tribunal de Contas da União como se parte de sua mesma equipe; como se não fosse o TCU um órgão de controle externo, que opera com autonomia. Não se trata de novidade. Já estendera essa visão privatizadora (para si) do Estado, por exemplo, à Polícia Federal – que enxerga (ou deseja) como uma instituição subordinada a seu governo, e não como um organismo de Estado com autonomia funcional. É assim mesmo. Bolsonaro ainda não entendeu – nunca entenderá – a ideia de República.

Por isso, claro, tem também dificuldades seríssimas em compreender o papel da imprensa e a impessoalidade republicana. Muitos dos atos de flagrante inconstitucionalidade perpetrados pelo presidente derivam de seu inconformismo em não haver sido eleito para imperar, com mandato para moldar o Estado de acordo com suas vontades, afetos e desafetos.

É comum que governantes não gostem de jornalistas e reclamem da atividade jornalística. Em Jair Bolsonaro, no entanto, esta hostilidade escalou. Integra um discurso. Constitui-se mesmo num dos pilares do projeto de poder autoritário bolsonarista. Como a lógica sectária que fundamenta o fenômeno personalista do bolsonarismo exige adesão incondicional, toda e qualquer instituição que exerça algum grau de independência será uma ameaça a ser emparedada.

O bolsonarismo não aceita – não admite – autonomia que não a sua.

Isto serve para o Parlamento, para o Supremo; e também para a imprensa. Que deve ser desqualificada, ter a credibilidade artificialmente esvaziada, sufocada – para que o governante, líder populista, faça prosperar a farsa de que o filtro intermediário jornalístico é prescindível, descartável, e que ele pode falar ao povo diretamente ou por meio dos canais a seu serviço. Afinal, como sabemos, o presidente – um governante – não mente...

A cruzada personalista de Jair Bolsonaro contra a Folha de S. Paulo – e usando o aparelho de Estado para tanto – não é contra o jornal; mas contra o jornalismo e, portanto, contra a liberdade de imprensa. Não se pode calar diante disto.

Não se pode calar ante um presidente que constrange empresários com alertas sobre anunciar em certos jornais e emissoras. Isto é crime de responsabilidade.

Ao cumprir uma promessa de imperador eleito e excluir a Folha – sem qualquer base técnica, a partir de inaceitável questão pessoal – de um processo de licitação para fornecimento de acesso digital ao noticiário da imprensa, o presidente não atentou somente, e gravemente, contra a impessoalidade republicana, mas turbinou, valendo-se novamente da máquina estatal, sua campanha autocrática contra a atividade jornalística e, por consequência, contra o Estado Democrático de Direito.

Não interessa que Jair Bolsonaro se sinta perseguido pela imprensa; vítima do jornalismo. Ele é o presidente. Fala como presidente. Age como presidente. Não existe Jair Bolsonaro, o homem e seus desafetos, quando se expressa via (musculatura da) máquina federal.

Já passou da hora de uma medida cautelar – pedagógica – sustar esse processo licitatório e colocar o presidente e suas vontades imperiais no cercadinho dos limites da República.

Estamos ainda ao 11º mês do primeiro ano do governo Bolsonaro. Nunca, desde a redemocratização, tal volume de ataques à imprensa – por um governante, o próprio presidente – foi disparado. Difícil supor que não vá piorar.

Matemática da matança

Existem mais negros morrendo porque há mais negros incorrendo em crimes. É um fato matemático 
Daniel Silveira. deputado federal  (PSL-RJ)

Cincuum

Não entendo nada de futebol apesar de ser flamenguista. Portanto, este não é um artigo sobre o Flamengo, o Mengão campeão, viva o Flamengo! Mas há algo de novo no Flamengo que toca outros temas, em particular a falta do novo na condução econômica e no debate nacional sobre os rumos do país. O novo no Flamengo é, evidentemente, a abertura para ideias diferentes representada pela escolha do técnico, tão criticado no início da trajetória para os dois títulos conquistados no último fim de semana. Arejar as ideias é fundamental em qualquer área, do futebol à economia.

Na economia, estamos bem mal. Não é exagero, ainda que alguns possam querer insistir em relatar melhorias pontuais, a aprovação da reforma da Previdência e outros feitos. Não os desmereço, que fique claro. O problema é outro. Nesta semana esteve no Peterson Institute for International Economics (PIIE) o ministro Paulo Guedes.

Não, não foi aqui que ele deu a declaração sobre o AI-5, mas nem por isso sua fala foi menos espantosa. O PIIE é um dos mais prestigiados institutos de pesquisa do mundo, vencedor há 4 anos seguidos do prêmio Prospect de Melhor Think Tank de Economia. A plateia que participa dos eventos públicos e privados que organizamos é altamente qualificada: embora ela seja composta majoritariamente por economistas, sempre há cientistas políticos, advogados, além de diversos acadêmicos de outras áreas e gestores de políticas públicas. Esperava-se que o ministro fizesse uma apresentação técnica sobre os avanços conquistados e os riscos do ambiente de turbulência política ao redor do país e dentro dele próprio para a economia brasileira.



Em vez disso, Guedes se ateve ao modo associação livre de falar, que é sua característica. A associação livre, quando bem feita, pode dar boas letras de música, boa prosa ou poesia, um monólogo divertido, até. Contudo, não suscitou interesse na plateia habituada a pensamentos bem estruturados e expostos com clareza.

Guedes foi errático, pulou de um tema para outro, divagou e falou bobagens. Ao descrever a agenda futura de reformas, foi repetitivo. Forneceu uma lista de desejos ordenada item por item, em que a alardeada reforma tributária constou como o item de número “cincuum”. Sem explicitar o termo de comparação, repetiu várias vezes que a democracia brasileira é a mais vibrante e que a segurança está melhorando com a queda na taxa de homicídios, colhendo os frutos de ações estaduais e de administrações anteriores. Claro que não houve menção às mortes associadas às ações policiais nas comunidades pobres.

Quase disse que o Brasil é o país mais preocupado com o meio ambiente no mundo — não disse isso exatamente, mas o tom esfuziante ficou evidente. Falou, falou, falou. Quando viu que a hora passava e que ele deveria dar a palavra para a plateia, falou mais um pouco. Foram poucas as perguntas e ele não respondeu a nenhuma, empenhado que estava em seu fluxo de consciência desconexo. Não restou qualquer dúvida de que o ministro gosta muito de ouvir a própria voz.

De tudo isso, o que ficou claro para a plateia?

Em uma brevíssima menção à pobreza, disse que o ideal era dar alguma condição ao pobre e deixá-lo a serviço do mercado, remontando à velhíssima premissa de que pobre é pobre porque não sabe correr atrás do que precisa para ser bem-sucedido. A pobreza para ele não é estrutural nem resultado de um intricado sistema que impede a mobilidade social pois é gerador de desigualdades de oportunidades no ponto de partida. Guedes não entende que o crescimento econômico não é uma panaceia, que não é condição suficiente para nada e talvez não seja sequer condição necessária.

Tenho escrito, com base em uma releitura de Albert O. Hirschman, que o crescimento pode ser fonte de instabilidade política a depender da maneira como afeta a dinâmica social e a mobilidade de segmentos da população. O pensamento econômico moderno abandonou as teses de Guedes sobre pobreza e crescimento há tempos. Também abandonou a ideia de Estado mínimo por ele apregoada. Guedes é inequivocamente vítima de um problema que assola o Brasil em várias esferas: o enrijecimento intelectual e a incapacidade de interagir com o que é novo e diferente. Como tantas profissões, é adepto do clubismo na troca de ideias. Fala para si e para os que querem ouvi-lo, sem capturar aqueles que operam em frequências distintas. Trata-se de um retrato da poeira que assola o Brasil atual.

Cincuum. Vai Flamengo! Levanta a taça do Brasileirão com toda a mescla de criatividade e de cores das bandeiras do Brasil e de Portugal. Aproveita para assoprar um pouquinho da poeira. O Brasil precisa.
Monica de Bolle

Pensamento do Dia


Pobreza extrema cresce pelo quinto ano consecutivo na América Latina

As coisas se inverteram em 2015. Depois de uma forte diminuição da pobreza na América Latina e no Caribe na primeira parte da década atual, o avanço deu lugar ao retrocesso. Longe de ser interrompida, essa dinâmica continua: a carência extrema voltará a crescer neste ano e completará um período de cinco anos enfileirando retrocessos em um dos principais indicadores para entender a redução do bem-estar das camadas com menos recursos da população latino-americana, para as quais a mobilidade social é muito limitada. A região fechará 2019 com um aumento de sete décimos no índice geral de pobreza – que passou de 30,1% da população para 30,8%, segundo dados publicados na quinta-feira pela Cepal, braço das Nações Unidas para o desenvolvimento no subcontinente – e de oito décimos em sua variável extrema –a mais urgente, que subiu de 10,7% para 11,5%.

“É muito preocupante e acende fortes sinais de alerta, especialmente em um contexto regional marcado por baixo crescimento, emergência climática, aumento e maior complexidade da migração e profundas transformações na demografia e no mercado de trabalho, destaca o órgão sediado em Santiago. A estatística, que vem a luz em plena onda de protestos em vários países latino-americanos – entre eles o próprio Chile – para exigir medidas sociais e um combate frontal à desigualdade, se traduz em números ainda mais chocantes quando se passa para o terreno dos números absolutos: seis milhões de pessoas engrossarão as fileiras da extrema pobreza neste ano, um grupo que crescerá até os 72 milhões. A pobreza geral aumenta na mesma quantidade: 191 milhões, em comparação com os 185 milhões do ano passado. A gravidade dos dados cresce se o período de cálculo for aumentado: se as estimativas forem cumpridas, a região fechará 2019 com 27 milhões de pessoas pobres a mais do que em 2014. Quase todas elas – 26 milhões –, em situação de carência extrema.


A mudança de tendência na evolução da pobreza e da pobreza extrema foi atribuída, em muitas áreas e quase exclusivamente, ao fim do boom das matérias-primas, no início da década que agora termina. Uma verdade apenas parcial, como enfatizam os técnicos do órgão sediado em Santiago, que introduzem uma narrativa complementar. “O fim do auge das exportações de matérias-primas e a consequente desaceleração [econômica] mudaram a tendência a partir de 2015. [Mas] o processo foi agravado pela diminuição do espaço fiscal e pelas políticas de ajuste que afetaram a cobertura e a continuidade das políticas de combate à pobreza e de inclusão social e trabalhista”, afirmam em seu último Panorama Social da América Latina. Os “importantes” avanços do início da década aconteceram, além de em um contexto econômico mais favorável, em um ambiente político “no qual a erradicação da pobreza, a redução da desigualdade, a inclusão e a extensão da proteção social ganharam um espaço inédito na agenda pública” da região.

A situação varia notavelmente entre os países. Uma parte importante do aumento da pobreza extrema nos últimos cinco anos é atribuída a dois países: o Brasil, de longe o maior da região, com uma população que já ultrapassa 210 milhões de pessoas; e a Venezuela, uma nação mergulhada em uma profunda crise política e econômica que – segundo os números do próprio regime de Nicolás Maduro – perdeu ao menos metade do seu PIB. A tendência no resto do subcontinente foi na direção de uma diminuição muito leve na porcentagem da população com renda insuficiente para cobrir as necessidades básicas, “embora [a redução] tenha acontecido em um ritmo mais lento do que entre 2008 e 2014”.

Em uma dinâmica um pouco melhor do que a traçada pelos índices de pobreza, o de Gini – o mais comum para medir a desigualdade no mundo – continuou em uma linha claramente de baixa, embora a uma taxa visivelmente menor do que na primeira parte da presente década: se entre 2002 e 2014 o fosso entre os estratos de menor e maior renda diminuiu a uma taxa anual de 1%, desde 2014 o fez a uma taxa de 0,6%. Em resumo, a desigualdade continua a se espalhar livremente na América Latina, de longe a região mais desigual do mundo e na qual o desenvolvimento do Estado de bem-estar social não está, de modo algum, entre as principais prioridades da maioria dos governos.

A Cepal recupera um de seus lemas clássicos – “crescer para igualar e igualar para crescer” – para lembrar, nas palavras de sua secretária-executiva, Alicia Bárcena, que “a superação da pobreza não exige apenas crescimento econômico: este deve ser acompanhado de políticas redistributivas e políticas fiscais ativas”. As maiores melhorias na desigualdade – medida pelo índice de Gini – aconteceram na Bolívia, El Salvador e Paraguai e, em menor medida, na Colômbia. No lado contrário, o Brasil vê como a dispersão da renda aumenta significativamente, com a pior distribuição de renda entre o 1% mais rico – que obtém quase um terço da riqueza gerada em um ano – e os 99 % restantes.

A melhor notícia do relatório, um dos que traz as piores notícias dos já publicados pela Cepal, é o progressivo fortalecimento dos estratos de renda média: se em 2002 menos de 27% dos latino-americanos foram enquadrados nesse grupo e seis anos depois eram pouco mais de 36%, em 2017 – o último ano para o qual existem dados disponíveis – esse número cresceu para 41%. Paralelamente, nesses 15 anos, os estratos mais baixos da escala passaram de 71% para 56% e os altos – com renda superior a 10 linhas de pobreza – aumentaram de 2,2% para 3% .

“Passar a fazer parte da classe média”, alerta o órgão, não implica “automaticamente” na superação do limite da pobreza monetária de cada um dos países da região. “É fundamental reconhecer que existe um segmento da população na região que, apesar de ter superado esse limiar, está em uma situação de alta vulnerabilidade e risco de voltar a essa situação”. Principalmente, conclui o relatório, se cair no desemprego, uma ameaça que cresce em tempos econômicos sombrios, como os vividos hoje pela América Latina e o Caribe.
Ignacio Fariza

Sob o coturno do capitão

Paranoia, incompetência e autoritarismo se combinam e se reforçam no recente surto de barbaridades oriundas da gestão Jair Bolsonaro
Ineptos e autoritários  -  A Folha de S. Paulo

Um espanto!

Um negro que nega o racismo, uma índia contrária aos movimentos indígenas, um diretor da Funai aliado aos ruralistas, a estrutura de Meio Ambiente descolada do Meio Ambiente, um secretário de Cultura que xinga Fernanda Montenegro, uma secretária de Audiovisual distante do cinema e da televisão. Sem falar em ministros.

O que que é isso, minha gente? O presidente Jair Bolsonaro vive criticando os antecessores pelo “excesso de ideologia” e rejeita indicações de políticos eleitos tão democraticamente quanto ele próprio, mas não faz outra coisa senão nomear pessoas que simplesmente se classificam “de direita”, mesmo que não tenham nada a ver com os cargos. Boa governança?


O que dizer de Sérgio Camargo, que foi nomeado para a Fundação Palmares, apesar de negar o racismo, atacar a “negrada militante” e reduzir a injustiça e as humilhações contra os negros a um “racismo nutella?” Até o próprio irmão desse senhor, o músico e produtor cultural Oswaldo Camargo Júnior, abriu um abaixo-assinado contra a nomeação. Para Oswaldo, Sérgio é um “capitão do mato”. Um capitão do mato na Fundação Palmares…

Assim como pinçou um negro para desqualificar os movimentos negros, Bolsonaro levou para a abertura da Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, a youtuber índia Ysani Kalapalo, que vive entre São Paulo e sua aldeia no Xingu (MT). Isso tem nome: “Lugar de fala”. Brancos não podem atacar os movimentos, mas um negro contra negros e uma índia contra índios faz toda a diferença.

Tratada como troféu, a jovem se diz “80% de direita”, considera as queimadas “um acidente” e ataca os líderes como “índios esquerdistas que fazem baderna em Brasília”. Exultante, Bolsonaro decretou o fim do “monopólio do sr. Raoni”. Referia-se a um ícone, indicado para o Prêmio Nobel da Paz.

Famoso por chamar Fernanda Montenegro de “sórdida e mentirosa”, o diretor de teatro Roberto Alvim foi nomeado secretário de Cultura e não apenas define a política cultural como nomeia direitistas por serem direitistas. Exemplo: Katiane Gouveia, da Cúpula Conservadora das Américas, manda na estratégica área de audiovisual.

No prestigiado ICMBio, o PM Homero de Giorge Cerqueira. Na resistente Funai, o delegado da PF Marcelo Augusto Xavier, com apoio da bancada ruralista – amiga de Bolsonaro, inimiga das comunidades indígenas. Ele substituiu o general Franklimberg Freitas, que é indígena.

O embaixador júnior Ernesto Araújo virou chanceler depois de sabatinado pelo filho do presidente e jurar que é a favor de Deus, da família e de Trump e contra o “globalismo” e a China (que, segundo ele, quer destruir os valores cristãos do Ocidente).

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi escolhido por conhecer pouco o setor, não saber nada de Amazônia e se comprometer a entupir o ministério de militares da reserva, escanteando ambientalistas atuando há décadas em mares, rios, florestas e reservas. Ruralistas e parte do empresariado estão felizes. Não se pode dizer o mesmo de especialistas e da comunidade internacional.

Damares Alves deu um salto de uma obscura assessoria do Congresso para um ministério que reúne Direitos Humanos, família, mulher e sei lá mais o quê. Assim, roda o mundo com visões muito peculiares, não raro estranhas, sobre família, gênero, educação infantil.

Todos eles têm a mesma credencial poderosa: são “de direita”. Na era Lula e PT, “nós contra eles”, “cumpanheirismo”, ideologia e aparelhamento do Estado, que deu no que deu: desmandos, incompetência, corrupção. Saiu o aparelhamento de esquerda, entrou o de direita. A esquerda pela esquerda, a direita pela direita. Pobre Brasil.

Constatação desalentadora

À medida que se aproxima o fim do primeiro ano do governo Bolsonaro, cresce a apreensão com a desproporção entre a enormidade do desafio de repor o país na rota da prosperidade e a estreiteza do projeto político que vem sendo acalentado pelo Planalto.

Ao decidir abandonar o PSL e fundar novo partido em que seus correligionários mais fiéis possam estar congregados e claramente apartados, o presidente deflagrou um rearranjo do quadro político-partidário brasileiro que, em tese, poderia até deixá-lo um pouco menos caótico.

Se Bolsonaro conseguisse, de fato, criar o Aliança pelo Brasil (APB) e, aos poucos, nele congregar bolsonaristas incontestes hoje abrigados em várias outras agremiações — do PSL ao DEM, do PP ao Novo —, a distribuição de forças políticas entre partidos de maior relevância do país ficaria bem mais clara.

Tal separação ajudaria inclusive a dirimir as infindáveis controvérsias acerca das reais proporções do que vem sendo rotulado de bolsonarismo de raiz. E da importância que poderá vir a ter na evolução do quadro político brasileiro. Sobretudo quando se leva em conta que as linhas divisórias que distinguem a nova agremiação não deixam margem a dúvidas sobre a sua caracterização.


O que é preocupante é a estreiteza dessa caracterização, que parece extraída das piores páginas do personalismo político latino-americano. Basta ter em mente a sem-cerimônia com que a cúpula do novo partido foi ocupada por membros da família Bolsonaro. E, também, os termos inequívocos em que está vazado o pífio manifesto de criação do APB: “Muito mais que um partido, é o sonho e a inspiração de pessoas leais ao presidente Jair Bolsonaro”. Salta aos olhos que a aliança que se antevê não é propriamente pelo Brasil, mas por Bolsonaro. E sua prole, claro.

Tanto no manifesto como na declaração de princípios do partido, dada a público na primeira convenção nacional do Aliança pelo Brasil, realizada na semana passada, em Brasília, não há qualquer menção à complexa agenda de reformas que o país terá de enfrentar nos próximos anos.

Tudo indica que não será nada fácil conseguir que o novo partido obtenha registro ainda a tempo de disputar as eleições municipais de outubro. As exigências burocráticas impostas pela legislação em vigor requerem o apoio formal de mais de 490 mil eleitores, distribuídos por pelo menos nove estados, com assinaturas submetidas, uma a uma, ao crivo de cartórios eleitorais. Estima-se que o APB terá que conseguir finalizar seu processo de registro em pouco mais de 120 dias, para estar apto a disputar as eleições municipais.

Entre as várias possibilidades de abreviação do processo, já foram aventadas a mobilização das igrejas evangélicas na coleta de assinaturas, o uso de assinaturas eletrônicas, afinal descartado, por excessivamente dispendioso, e o recurso a técnicas de reconhecimento facial, ainda pendente de autorização pela Justiça Eleitoral, que, de resto, não tem escondido sua resistência à criação de novos partidos.

Há quem diga que o presidente já está mais do que convencido de que será inviável conseguir que o novo partido seja registrado em prazo tão exíguo. E que pretende fazer bom uso dessa inviabilidade, para se manter formalmente ao largo das eleições municipais de 2020 e evitar que o desfecho do pleito venha a ser visto como avaliação do seu governo.

Pode até ser. Mas, para efeito do argumento que aqui se desenvolve, pouco importa se o presidente conseguirá ou não registrar sua nova agremiação política ainda a tempo de disputar as eleições municipais do ano que vem. Ou o que fará se, afinal, o registro não for obtido a tempo. O que interessa é a estreiteza de visão e o personalismo tacanho que claramente permeiam o projeto político explicitado pelo Planalto.

Como poderá um presidente com um projeto tão estreito incutir na opinião pública e no Congresso o senso de urgência requerido para fazer avançar o ambicioso e crucial programa de reformas que o país tem pela frente?
Rogério Furquim Werneck