segunda-feira, 16 de dezembro de 2024
Arte e silêncio falam por nós em mundo desumano
‘Palavras são minha matéria. Elas fazem coisas, mudam coisas, formam ondas contínuas’, garante o belo manifesto de 2016 da escritora Ursula K. Le Guin sobre a mágica do diálogo humano. Elas transformam tanto quem as pronuncia como quem as ouve, produzem energia e expandem o viver. Demandamos delas o que muitas vezes não podem carregar — a complexidade da experiência, a polifonia de vozes que habitam nosso interior. Tampouco a demanda por clareza em meio à névoa do viver. Quando palavras nos falham, quando essas peças pré-fabricadas se revelam pequenas demais para traduzir o intraduzível, falamos por meio do silêncio. Ou da arte.
Primo Levi começou a escrever o seminal “É isto um homem?” em dezembro de 1945, imediatamente depois de retornar do campo de Auschwitz para sua Turim natal, num “impulso violento e imediato”, como indicou no prefácio da época. Iniciou pelo último capítulo, que trata dos dez dias entre a derrocada dos nazistas e a chegada dos russos que libertaram o campo. O manuscrito enviado à editora italiana Einaudi acabou rejeitado por ninguém menos que Natalia Ginzburg, mas o escritor compreendeu: a negativa fora expressão de uma rejeição coletiva e ampla. Naquele imediato Pós-Guerra, viveu-se “um tempo de esquecimento voluntário, de relação conflituosa entre a memória e o olvido”. Ao contrário do que havia ocorrido ao final da Grande Guerra de 1914-18, cuja memória coletiva logo se espraiou e alterou comportamentos no continente europeu, na barbárie seguinte deu-se o contrário. A torrente inicial de relatos feitos por sobreviventes permaneceu desestimulada por quase duas décadas.
No relato de Levi, as vítimas nem sempre morrem, simplesmente vão se apagando, desaparecem. Uma cena descreve o raro enforcamento público de um prisioneiro que participara de um levante no campo de Birkenau, cuja punição, paradoxalmente, conseguiu devolver-lhe humanidade e identidade.
Meses atrás o editor israelense Noam Sheizaf debruçou-se sobre uma nova versão em hebraico de “É isto um homem?” para refletir sobre a desumanização crescente e contínua de lá para cá. Houve o genocídio cometido pelo governo de Ruanda em 1994 (quase 1 milhão de tútsis chacinados em apenas três meses), houve o massacre de 8.372 meninos e homens muçulmanos na Bósnia enquanto fugiam de olhos vendados e mãos amarradas pelos rios, floresta e campos de Srebrenica, há a metódica asfixia do viver e ser palestino em Gaza. Com a separação em curso entre humanidade e ser humano, está cada vez mais difícil encontrar palavras que nos devolvam o sentido de responsabilidade, envolvimento, um mínimo de honestidade interior e consciência.
Exatamente uma semana atrás, no alto de uma colina de Damasco, capital da Síria, os portões da infame prisão política de Sednaya foram derrubados a marretadas, em sequência ao golpe-relâmpago que implodiu a longeva ditadura dos Assad. Daquela masmorra onde perto de 30 mil presos políticos simplesmente sumiram e outros tantos foram declarados mortos, começaram a emergir os sobreviventes de 53 anos de ditadura e 13 de guerra civil. Alguns haviam perdido a memória, outros partes do corpo, muitos a própria alma. Em sentido contrário, colina acima, uma fila cerrada de vultos acorreu em busca de esperança — uma pista, um documento, algum vestígio de parente engolido há anos pela engrenagem do regime deposto. Será preciso reaprender a falar, a usar a palavra, a sair do silêncio, a apoiar-se na potência transformadora da arte.
O “presente” anunciado no título deste texto é um convite, grátis (disponível no link). Trata-se de um curta intitulado “AMA”, referência à milenar tradição japonesa de mergulhadoras de pérolas. A música “Sarajevo”, do compositor germano-britânico Max Richter, despedaça, enleva, perturba. Ela conta o cerco estrangulador de três anos, dez meses, três semanas e três dias à cidade bósnia na guerra civil iugoslava dos anos 1990. Julie Gautier, uma artista francesa nascida na Ilha da Reunião, interpreta a música num balé subaquático de seis minutos e meio ininterruptos, sem ajuda de equipamento respiratório. Difícil não se deixar reumanizar diante do belo. Vale a pena tentar para poder respirar de novo.
Primo Levi começou a escrever o seminal “É isto um homem?” em dezembro de 1945, imediatamente depois de retornar do campo de Auschwitz para sua Turim natal, num “impulso violento e imediato”, como indicou no prefácio da época. Iniciou pelo último capítulo, que trata dos dez dias entre a derrocada dos nazistas e a chegada dos russos que libertaram o campo. O manuscrito enviado à editora italiana Einaudi acabou rejeitado por ninguém menos que Natalia Ginzburg, mas o escritor compreendeu: a negativa fora expressão de uma rejeição coletiva e ampla. Naquele imediato Pós-Guerra, viveu-se “um tempo de esquecimento voluntário, de relação conflituosa entre a memória e o olvido”. Ao contrário do que havia ocorrido ao final da Grande Guerra de 1914-18, cuja memória coletiva logo se espraiou e alterou comportamentos no continente europeu, na barbárie seguinte deu-se o contrário. A torrente inicial de relatos feitos por sobreviventes permaneceu desestimulada por quase duas décadas.
No relato de Levi, as vítimas nem sempre morrem, simplesmente vão se apagando, desaparecem. Uma cena descreve o raro enforcamento público de um prisioneiro que participara de um levante no campo de Birkenau, cuja punição, paradoxalmente, conseguiu devolver-lhe humanidade e identidade.
Meses atrás o editor israelense Noam Sheizaf debruçou-se sobre uma nova versão em hebraico de “É isto um homem?” para refletir sobre a desumanização crescente e contínua de lá para cá. Houve o genocídio cometido pelo governo de Ruanda em 1994 (quase 1 milhão de tútsis chacinados em apenas três meses), houve o massacre de 8.372 meninos e homens muçulmanos na Bósnia enquanto fugiam de olhos vendados e mãos amarradas pelos rios, floresta e campos de Srebrenica, há a metódica asfixia do viver e ser palestino em Gaza. Com a separação em curso entre humanidade e ser humano, está cada vez mais difícil encontrar palavras que nos devolvam o sentido de responsabilidade, envolvimento, um mínimo de honestidade interior e consciência.
Exatamente uma semana atrás, no alto de uma colina de Damasco, capital da Síria, os portões da infame prisão política de Sednaya foram derrubados a marretadas, em sequência ao golpe-relâmpago que implodiu a longeva ditadura dos Assad. Daquela masmorra onde perto de 30 mil presos políticos simplesmente sumiram e outros tantos foram declarados mortos, começaram a emergir os sobreviventes de 53 anos de ditadura e 13 de guerra civil. Alguns haviam perdido a memória, outros partes do corpo, muitos a própria alma. Em sentido contrário, colina acima, uma fila cerrada de vultos acorreu em busca de esperança — uma pista, um documento, algum vestígio de parente engolido há anos pela engrenagem do regime deposto. Será preciso reaprender a falar, a usar a palavra, a sair do silêncio, a apoiar-se na potência transformadora da arte.
O “presente” anunciado no título deste texto é um convite, grátis (disponível no link). Trata-se de um curta intitulado “AMA”, referência à milenar tradição japonesa de mergulhadoras de pérolas. A música “Sarajevo”, do compositor germano-britânico Max Richter, despedaça, enleva, perturba. Ela conta o cerco estrangulador de três anos, dez meses, três semanas e três dias à cidade bósnia na guerra civil iugoslava dos anos 1990. Julie Gautier, uma artista francesa nascida na Ilha da Reunião, interpreta a música num balé subaquático de seis minutos e meio ininterruptos, sem ajuda de equipamento respiratório. Difícil não se deixar reumanizar diante do belo. Vale a pena tentar para poder respirar de novo.
Distopia do Rio se espalha pelo Brasil
Escassos dezembros. Outros meses também não se repetirão muito. Mas o clima de fim de ano sempre nos força a um balanço, ao suspiro de como passa rápido o tempo, ao espanto com as surpresas da vida.
Considero-me feliz por ter passado um fim de semana colado à TV, vendo o fim de uma longa ditadura, as pessoas festejando nas ruas de Damasco, os presos saindo das masmorras, bandeiras, gritos, exilados preparando a volta.
Pensei em escrever sobre a Síria. Na verdade, estou lendo o livro de Clarissa Ward, uma repórter de TV que conta suas incursões clandestinas para documentar a oposição a Bashar al-Assad. À noite, depois de enviar suas reportagens, ela costumava se indagar como os americanos receberiam aquilo, na hora do jantar, ou mesmo levando as crianças para a cama. Tudo tão distante.
Imagina escrever sobre a Síria para o Brasil, sobretudo para nossa cidade envolta numa onda de violência arrasadora. Há algum tempo, o Rio tem uma Faixa de Gaza, e as pessoas já morrem baleadas dentro de hospitais, como a médica da Marinha Gisele Mendes de Souza e Mello. Ela foi atingida por um tiro de pistola. Bala perdida, como tantas outras que acham corpos inocentes.
Vivemos numa cidade distópica, e o absurdo de seu cotidiano se espalha para o Brasil com incrível rapidez. Em São Paulo, a PM joga o homem de uma ponte; na Bahia, um vereador joga dinheiro pela janela na chegada da Polícia Federal. Nas comunidades do Rio a polícia combate uma quadrilha forte de ladrões de carro, dirigida por Fernandinho Beira-Mar, que está encarcerado há 23 anos. Em Brasília, deputados fazem uma rebelião para manter suas emendas sem rastreabilidade e transparência.
Não cabe mais a pergunta ingênua: onde vamos parar? Já estamos numa situação inaceitável, e as elites ainda não descobriram que é preciso desvendá-la com urgência. E finalmente fazer alguma coisa; antes que as pessoas deixem de se importar com o que é real e o que é fantasia, antes que simplesmente deem as costas para os acontecimentos. Vamos usar uma tática de avestruz? Fogos ou bombas? Os gatos são mais sábios, correm dos dois.
Vivemos o momento em que a dívida da redemocratização com uma política democrática e eficaz de segurança precisa ser paga, ou ela ameaça devorar a própria democracia. Não sei se a pura criação de um sistema nacional de segurança pública, associando governos federal e estaduais, resolverá o problema. No momento, a ideia caminha muito lentamente. Um projeto desse tipo demanda discussão ampla. Secretários de Segurança fazem sugestão. Ótimo. Alguns governadores rejeitam a ideia com medo de perder autonomia.
Pode chegar um momento em que a maioria dos estados aceita o projeto. Por que não realizá-lo apenas com os que aceitam? Por que não antecipá-lo com governos que pedem socorro, como o Rio de Janeiro? As pesquisas mostram que, ao lado da economia, a segurança é o problema central para a maioria dos brasileiros. Por que não tratá-lo com a urgência necessária?
Sempre haverá alguém argumentando que a violência é um fenômeno superficial com causas profundas. Por que não defender essa tese abertamente, apontar as causas e os caminhos para resolvê-las? A hipótese de que as pessoas estão preocupadas com algo que não merece um esforço de peso é, no fundo, uma arrogância intelectual que não leva em conta o que se passa no cotidiano. Vivemos numa cidade ocupada parcialmente por milícias e traficantes. Para grande parte de nosso povo, não existe outra lei que não a dos grupos armados: é preciso sobreviver em silêncio e cabisbaixo.
É reconfortante ver a ditadura síria ir para o espaço, mesmo sabendo que o futuro do país ainda é uma incógnita. O fim de uma ditadura é algo para celebrar. Mas quando mesmo nos livraremos dos pequenos tiranos que dominam nossas comunidades? Quando veremos o povo festejar sua liberdade?
Considero-me feliz por ter passado um fim de semana colado à TV, vendo o fim de uma longa ditadura, as pessoas festejando nas ruas de Damasco, os presos saindo das masmorras, bandeiras, gritos, exilados preparando a volta.
Pensei em escrever sobre a Síria. Na verdade, estou lendo o livro de Clarissa Ward, uma repórter de TV que conta suas incursões clandestinas para documentar a oposição a Bashar al-Assad. À noite, depois de enviar suas reportagens, ela costumava se indagar como os americanos receberiam aquilo, na hora do jantar, ou mesmo levando as crianças para a cama. Tudo tão distante.
Imagina escrever sobre a Síria para o Brasil, sobretudo para nossa cidade envolta numa onda de violência arrasadora. Há algum tempo, o Rio tem uma Faixa de Gaza, e as pessoas já morrem baleadas dentro de hospitais, como a médica da Marinha Gisele Mendes de Souza e Mello. Ela foi atingida por um tiro de pistola. Bala perdida, como tantas outras que acham corpos inocentes.
Vivemos numa cidade distópica, e o absurdo de seu cotidiano se espalha para o Brasil com incrível rapidez. Em São Paulo, a PM joga o homem de uma ponte; na Bahia, um vereador joga dinheiro pela janela na chegada da Polícia Federal. Nas comunidades do Rio a polícia combate uma quadrilha forte de ladrões de carro, dirigida por Fernandinho Beira-Mar, que está encarcerado há 23 anos. Em Brasília, deputados fazem uma rebelião para manter suas emendas sem rastreabilidade e transparência.
Não cabe mais a pergunta ingênua: onde vamos parar? Já estamos numa situação inaceitável, e as elites ainda não descobriram que é preciso desvendá-la com urgência. E finalmente fazer alguma coisa; antes que as pessoas deixem de se importar com o que é real e o que é fantasia, antes que simplesmente deem as costas para os acontecimentos. Vamos usar uma tática de avestruz? Fogos ou bombas? Os gatos são mais sábios, correm dos dois.
Vivemos o momento em que a dívida da redemocratização com uma política democrática e eficaz de segurança precisa ser paga, ou ela ameaça devorar a própria democracia. Não sei se a pura criação de um sistema nacional de segurança pública, associando governos federal e estaduais, resolverá o problema. No momento, a ideia caminha muito lentamente. Um projeto desse tipo demanda discussão ampla. Secretários de Segurança fazem sugestão. Ótimo. Alguns governadores rejeitam a ideia com medo de perder autonomia.
Pode chegar um momento em que a maioria dos estados aceita o projeto. Por que não realizá-lo apenas com os que aceitam? Por que não antecipá-lo com governos que pedem socorro, como o Rio de Janeiro? As pesquisas mostram que, ao lado da economia, a segurança é o problema central para a maioria dos brasileiros. Por que não tratá-lo com a urgência necessária?
Sempre haverá alguém argumentando que a violência é um fenômeno superficial com causas profundas. Por que não defender essa tese abertamente, apontar as causas e os caminhos para resolvê-las? A hipótese de que as pessoas estão preocupadas com algo que não merece um esforço de peso é, no fundo, uma arrogância intelectual que não leva em conta o que se passa no cotidiano. Vivemos numa cidade ocupada parcialmente por milícias e traficantes. Para grande parte de nosso povo, não existe outra lei que não a dos grupos armados: é preciso sobreviver em silêncio e cabisbaixo.
É reconfortante ver a ditadura síria ir para o espaço, mesmo sabendo que o futuro do país ainda é uma incógnita. O fim de uma ditadura é algo para celebrar. Mas quando mesmo nos livraremos dos pequenos tiranos que dominam nossas comunidades? Quando veremos o povo festejar sua liberdade?
Migrantes
As pessoas podem sentir pena de um homem que está a passar por tempos difíceis, mas quando um país inteiro é pobre, o resto do mundo assume que todos os seus cidadãos são desmiolados, preguiçosos, sujos, tolos e desajeitados. Em vez de pena, provocam o riso. É tudo uma anedota: a sua cultura, os seus costumes, as suas práticas. Com o tempo o resto do mundo pode, parte dele, começar a ficar envergonhado por ter pensado dessa maneira, e quando olham em volta e vêem os imigrantes desse pobre país a esfregar o chão e a fazerem os trabalhos pior pagos, eles naturalmente preocupam-se sobre o que poderia acontecer se um dia estes trabalhadores se insurgissem contra eles. Assim, para manter as aparências agradáveis, começam a interessar-se pela cultura dos imigrantes e às vezes
até fingem que pensam neles como se fossem seus iguais.
Orhan Pamuk
Prisão de Braga Netto é mudança de paradigma
A prisão do general de Exército da reserva Walter Souza Braga Netto, ontem, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Polícia Federal (PF), após parecer favorável da Procuradoria-Geral da República (PGR), é uma mudança de paradigma no tratamento dado aos militares na política brasileira desde a redemocratização. O ministro também autorizou busca e apreensão em relação a ele e ao coronel Flávio Botelho Peregrino, assessor do general. Ambos são suspeitos de envolvimento em tentativa de golpe de Estado e de obstrução de Justiça por tentar atrapalhar as investigações sobre os episódios relacionados aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.
Ironicamente, ocorreu um dia após o 13 de dezembro, aniversário do Ato Institucional n°5, que completou 56 anos. Assinado pelo então presidente Arthur da Costa e Silva, em 1968, o AI-5 marcou a fascistização do regime militar implantado após o golpe de 1964, que destituiu o presidente João Goulart. Deu-se ali o início do período mais sombrio do regime militar. Não foi, como alguns imaginam, um golpe dentro do golpe, depois de uma disputa interna entre facções militares, mas o avanço de um processo de endurecimento do regime.
Os militares se sentiam ameaçados pelas articulações de uma Frente Ampla por políticos de oposição, entre os quais alguns que haviam articulado o golpe de estado — como Carlos Lacerda, da UDN — ou apoiado a destituição de João Goulart, porque suspeitavam que pleitearia a reeleição, como Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães, ambos do PSD.
Pretendiam restabelecer as eleições diretas para a Presidência, que deveriam ter sido realizadas em 1965. Grandes manifestações estudantis realizadas àquela época, entre as quais a famosa "Passeata dos 100 mil", no Rio de Janeiro, sinalizavam a corrosão do apoio social ao regime.
Apresentado em cadeia nacional de rádio, pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, o AI-5 tinha 12 artigos: acabou com a garantia de habeas corpus em casos de crimes políticos; fechou o Congresso Nacional, pela primeira vez desde 1937; autorizou o presidente a decretar estado de sítio por tempo indeterminado, demitir pessoas do serviço público, cassar mandatos, confiscar bens privados e intervir em todos os estados e municípios.
Estabeleceu, também, a censura aos meios de comunicação e a tortura como prática nas prisões políticas. O filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles Junior, em cartaz nos cinemas, mostra a realidade à qual oposicionistas e seus parentes foram submetidos.
Não devemos nos iludir. A inspiração dos golpistas de 8 de janeiro de 2023 estava no passado: a destituição de João Goulart e o AI-5. Todas as investigações apontam para Braga Netto como o comandante militar do golpe, com objetivo de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, num primeiro momento. Depois, em 8 de janeiro, destituí-lo.
Não era um "golpe dentro do golpe". O objetivo era manter Jair Bolsonaro no poder, fiador do apoio popular. A PF apontou a participação ativa do general Braga Netto na tentativa de pressionar os comandantes das Forças Armadas a aderirem ao golpe e destituir Lula, além de desmoralizar os que se recusaram a fazê-lo.
Braga Netto respondia às acusações em liberdade, como lhe garantia o devido processo legal, mas tentou saber de informações sobre a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid e obstruir a Justiça. A obtenção e entrega de recursos financeiros para execução de monitoramento de alvos e planejamento de sequestros e, possivelmente, homicídios de autoridades, já pesava contra ele.
Não é trivial a prisão de um general na história do Brasil. Os antecedentes são os generais Custódio de Melo, durante a Revolta da Armada, em 1893/1894; Estillac Leal, integrante da Aliança Nacional Libertadora, na chamada Intentona Comunista de 1935; Assis Brasil, Ladário Pereira Teles, Osvino Ferreira Alves, Euryale de Jesus Zerbini, além do marechal Henrique Teixeira Lott, durante o golpe militar de 1964.
Onde está o novo paradigma? A prisão de Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, e vice na chapa de Bolsonaro, ocorre no âmbito de uma investigação conduzida pelo STF. O caso mais próximo é o do general Newton Cruz, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), que esteve preso em 2000, por ordem da Justiça Federal, acusado de envolvimento na morte do jornalista Alexandre Von Baumgarten. Nesse caso, investigava-se um homicídio, não uma tentativa de golpe de Estado.
Para quem tem dúvida de que as coisas mudaram, recém-eleita para presidir o Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Maria Elizabeth Rocha, que assumirá o comando da Corte em março, mandou o recado de que os militares devem atuar nos "quartéis e não na política". Na última terça-feira, durante entrevista, disse que finalizada a apreciação por parte do STF, havendo indícios de crimes militares, os envolvidos também podem responder perante a Justiça Militar.
"Nesse caso, somos nós que avaliaremos, somos nós que julgaremos e, ao fim, depois das sentenças penais transitadas em julgado, se a condenação for superior a dois anos, há também a possibilidade de uma abertura de um processo para incompatibilidade ou indignidade para com o oficialato. E o oficial, então, é excluído das Forças Armadas e perde o posto e a patente", explicou.
No Alto Comando do Exército, além de golpista, Braga Netto é considerado um traidor, devido aos ataques que fez aos seus pares.
Ironicamente, ocorreu um dia após o 13 de dezembro, aniversário do Ato Institucional n°5, que completou 56 anos. Assinado pelo então presidente Arthur da Costa e Silva, em 1968, o AI-5 marcou a fascistização do regime militar implantado após o golpe de 1964, que destituiu o presidente João Goulart. Deu-se ali o início do período mais sombrio do regime militar. Não foi, como alguns imaginam, um golpe dentro do golpe, depois de uma disputa interna entre facções militares, mas o avanço de um processo de endurecimento do regime.
Os militares se sentiam ameaçados pelas articulações de uma Frente Ampla por políticos de oposição, entre os quais alguns que haviam articulado o golpe de estado — como Carlos Lacerda, da UDN — ou apoiado a destituição de João Goulart, porque suspeitavam que pleitearia a reeleição, como Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães, ambos do PSD.
Pretendiam restabelecer as eleições diretas para a Presidência, que deveriam ter sido realizadas em 1965. Grandes manifestações estudantis realizadas àquela época, entre as quais a famosa "Passeata dos 100 mil", no Rio de Janeiro, sinalizavam a corrosão do apoio social ao regime.
Apresentado em cadeia nacional de rádio, pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, o AI-5 tinha 12 artigos: acabou com a garantia de habeas corpus em casos de crimes políticos; fechou o Congresso Nacional, pela primeira vez desde 1937; autorizou o presidente a decretar estado de sítio por tempo indeterminado, demitir pessoas do serviço público, cassar mandatos, confiscar bens privados e intervir em todos os estados e municípios.
Estabeleceu, também, a censura aos meios de comunicação e a tortura como prática nas prisões políticas. O filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles Junior, em cartaz nos cinemas, mostra a realidade à qual oposicionistas e seus parentes foram submetidos.
Não devemos nos iludir. A inspiração dos golpistas de 8 de janeiro de 2023 estava no passado: a destituição de João Goulart e o AI-5. Todas as investigações apontam para Braga Netto como o comandante militar do golpe, com objetivo de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, num primeiro momento. Depois, em 8 de janeiro, destituí-lo.
Não era um "golpe dentro do golpe". O objetivo era manter Jair Bolsonaro no poder, fiador do apoio popular. A PF apontou a participação ativa do general Braga Netto na tentativa de pressionar os comandantes das Forças Armadas a aderirem ao golpe e destituir Lula, além de desmoralizar os que se recusaram a fazê-lo.
Braga Netto respondia às acusações em liberdade, como lhe garantia o devido processo legal, mas tentou saber de informações sobre a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid e obstruir a Justiça. A obtenção e entrega de recursos financeiros para execução de monitoramento de alvos e planejamento de sequestros e, possivelmente, homicídios de autoridades, já pesava contra ele.
Não é trivial a prisão de um general na história do Brasil. Os antecedentes são os generais Custódio de Melo, durante a Revolta da Armada, em 1893/1894; Estillac Leal, integrante da Aliança Nacional Libertadora, na chamada Intentona Comunista de 1935; Assis Brasil, Ladário Pereira Teles, Osvino Ferreira Alves, Euryale de Jesus Zerbini, além do marechal Henrique Teixeira Lott, durante o golpe militar de 1964.
Onde está o novo paradigma? A prisão de Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, e vice na chapa de Bolsonaro, ocorre no âmbito de uma investigação conduzida pelo STF. O caso mais próximo é o do general Newton Cruz, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), que esteve preso em 2000, por ordem da Justiça Federal, acusado de envolvimento na morte do jornalista Alexandre Von Baumgarten. Nesse caso, investigava-se um homicídio, não uma tentativa de golpe de Estado.
Para quem tem dúvida de que as coisas mudaram, recém-eleita para presidir o Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Maria Elizabeth Rocha, que assumirá o comando da Corte em março, mandou o recado de que os militares devem atuar nos "quartéis e não na política". Na última terça-feira, durante entrevista, disse que finalizada a apreciação por parte do STF, havendo indícios de crimes militares, os envolvidos também podem responder perante a Justiça Militar.
"Nesse caso, somos nós que avaliaremos, somos nós que julgaremos e, ao fim, depois das sentenças penais transitadas em julgado, se a condenação for superior a dois anos, há também a possibilidade de uma abertura de um processo para incompatibilidade ou indignidade para com o oficialato. E o oficial, então, é excluído das Forças Armadas e perde o posto e a patente", explicou.
No Alto Comando do Exército, além de golpista, Braga Netto é considerado um traidor, devido aos ataques que fez aos seus pares.
O brasileiro e o gosto pelo mais ou menos
Quem é o homo brasiliensis? Esta pergunta, que é objeto central de interesse da política e dos negócios, merece uma reflexão diferente da que fazem os pesquisadores, que concentram sua atenção sobre aspectos de sexo, idade, renda e classe social. A melhor resposta pode ser dada pela leitura de alguns ensaios clássicos de antropologia e sociologia, entre os quais os produzidos por Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, J.O. de Meira Penna, em seu vigoroso Em Berço Esplêndido ou Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis e O que faz o Brasil, Brasil, para citar apenas três contemporâneos analistas da alma brasileira. Cito, ainda, Sérgio Buarque de Holanda, com seu Raízes do Brasil, um clássico da historiografia brasileira e uma obra basilar de estudos sociológicos.
Um corte diagonal sobre o caráter nacional pode ser a pista para se desvendar os traços psicológicos do brasileiro que escolhe seus mandatários. Antes, há de se fazer a ressalva de que milhões de pessoas estarão fora do traçado sócio-psicológico aqui descrito, porque incorporam heranças culturais de outros povos. A racionalidade dominante na cultura anglo-saxã, por exemplo, contrapõe-se à emotividade e ao arcabouço criativo-festivo que influencia comportamentos, ações e decisões do homem dos Trópicos. Para o anglo-saxão, não existe mais ou menos. É: sim, sim, não, não.
A tipologia humana essencialmente brasileira se rege por um alfabeto nítido que começa com a parte mais visível, que é a cor da pele. Os morenos e os pardos, que carregam a mistura do sangue do branco colonizador, do negro e do indígena, são a própria expressão da índole do nosso povo. Que aprecia responder as questões que lhe são expostas com o jogo do “depende, do mais ou menos”. “Quantas horas trabalha por semana? Mais ou menos 40 horas. É religioso? Sou católico, mas não praticante. Ou, ainda: sou ateu, graças a Deus”. A tendência de querer ficar no meio termo ainda é reforçada pela condição de contemporizador, que transparece nas frequentes locuções “deixar estar para ver como fica”, “deixa pra lá”, “fulano está empurrando com a barriga”. Não por acaso, é assim empurrando que os governantes conseguem adiar coisas importantes, como a reforma tributária (só agora em vias de aprovação), a reforma política, a reforma do Estado, entre outros projetos prioritários.
Vejam a questão do voto. Milhões decidem escolher seus candidatos apenas nas últimas semanas de campanha. Traços de incerteza e dubiedade caracterizam o perfil do eleitor, fruto, aliás, da improvisação que permeia comportamentos. Há nisso alguma indicação de displicência? Sem dúvida e este é outro matiz do nosso perfil. As decisões, que identificam uma forte cultura de protelação, são deixadas para a última hora, na esteira de um comportamento que se identifica com um misto de lerdeza e negligência, despreocupação e negação de critérios de prioridade. Cultivamos a cultura do desleixo. Quem não tem na ponta da língua exemplos de obras mal construídas, trabalhos malfeitos, acabamentos defeituosos, sujeiras nos lugares públicos?
O brasileiro é imediatista. Tem prazer pelas coisas que lhe trazem conforto ou benefício imediato. Daí não se interessar pela macropolítica, a política dos grandes projetos, das grandes obras que gerarão efeitos benéficos no longo prazo. Mas é exigente em relação às coisas de seu cotidiano: a escola perto da casa, o transporte fácil, a segurança na rua, a comida barata, o emprego perto de casa.
A incerteza, traço cultural do caráter nacional, é visível nas mudanças de posição das pessoas. Argumentos fortes acabam derrubando convicções não estruturadas. Percebe-se que o interlocutor se motiva pela simpatia e empatia que políticos refletem. “Ah, todos os políticos são ladrões”, ouve-se aqui e acolá. Mas os tais ladrões acabam conquistando eleitores.
Deus carimbou alguns povos com tintas muito acentuadas. Diz-se que aos gregos concedeu o amor à ciência; aos povos asiáticos, o espírito combativo; nos egípcios e fenícios (sendo estes últimos os atuais libaneses), imprimiu a marca do amor ao dinheiro. Aos brasileiros, Deus deu a capacidade de improvisar mais que outras gentes. Não é de todo arriscada a inferência de que a pessoa que defende de maneira rígida uma posição acaba mudando de ponto de vista, se essa mudança fizer bem ao bolso. O brasileiro não garante aquilo que promete. Um infiel de ideários.
Um corte diagonal sobre o caráter nacional pode ser a pista para se desvendar os traços psicológicos do brasileiro que escolhe seus mandatários. Antes, há de se fazer a ressalva de que milhões de pessoas estarão fora do traçado sócio-psicológico aqui descrito, porque incorporam heranças culturais de outros povos. A racionalidade dominante na cultura anglo-saxã, por exemplo, contrapõe-se à emotividade e ao arcabouço criativo-festivo que influencia comportamentos, ações e decisões do homem dos Trópicos. Para o anglo-saxão, não existe mais ou menos. É: sim, sim, não, não.
A tipologia humana essencialmente brasileira se rege por um alfabeto nítido que começa com a parte mais visível, que é a cor da pele. Os morenos e os pardos, que carregam a mistura do sangue do branco colonizador, do negro e do indígena, são a própria expressão da índole do nosso povo. Que aprecia responder as questões que lhe são expostas com o jogo do “depende, do mais ou menos”. “Quantas horas trabalha por semana? Mais ou menos 40 horas. É religioso? Sou católico, mas não praticante. Ou, ainda: sou ateu, graças a Deus”. A tendência de querer ficar no meio termo ainda é reforçada pela condição de contemporizador, que transparece nas frequentes locuções “deixar estar para ver como fica”, “deixa pra lá”, “fulano está empurrando com a barriga”. Não por acaso, é assim empurrando que os governantes conseguem adiar coisas importantes, como a reforma tributária (só agora em vias de aprovação), a reforma política, a reforma do Estado, entre outros projetos prioritários.
O brasileiro é imediatista. Tem prazer pelas coisas que lhe trazem conforto ou benefício imediato. Daí não se interessar pela macropolítica, a política dos grandes projetos, das grandes obras que gerarão efeitos benéficos no longo prazo. Mas é exigente em relação às coisas de seu cotidiano: a escola perto da casa, o transporte fácil, a segurança na rua, a comida barata, o emprego perto de casa.
A incerteza, traço cultural do caráter nacional, é visível nas mudanças de posição das pessoas. Argumentos fortes acabam derrubando convicções não estruturadas. Percebe-se que o interlocutor se motiva pela simpatia e empatia que políticos refletem. “Ah, todos os políticos são ladrões”, ouve-se aqui e acolá. Mas os tais ladrões acabam conquistando eleitores.
Deus carimbou alguns povos com tintas muito acentuadas. Diz-se que aos gregos concedeu o amor à ciência; aos povos asiáticos, o espírito combativo; nos egípcios e fenícios (sendo estes últimos os atuais libaneses), imprimiu a marca do amor ao dinheiro. Aos brasileiros, Deus deu a capacidade de improvisar mais que outras gentes. Não é de todo arriscada a inferência de que a pessoa que defende de maneira rígida uma posição acaba mudando de ponto de vista, se essa mudança fizer bem ao bolso. O brasileiro não garante aquilo que promete. Um infiel de ideários.
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