quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Paisagem brasileira


Bolsonaro, marionete e robôs

A filhocracia bolsonariana comanda ou é a frente visível de um mecanismo digital de difamação e propaganda. É o que diz a ex-líder do governo Jair Bolsonaro no Congresso, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), estrela midiática da primeira onda do bolsonarismo, deposta pelo presidente da República.

A filhocracia bolsonariana comanda ou é a face visível do governo, pois Bolsonaro seria apenas uma marionete de Flavio 01, Carlos 02 e Eduardo 03. É o que diz o ex-líder da bancada do PSL na Câmara, o deputado Delegado Waldir, expoente da bancada da bala, umas das correntes principais do bolsonarismo “raiz”, também deposto pelo presidente.

Uns dois ou três deputados do PSL envolvidos na turumbamba vulgaríssima do partido dizem, de modo mais ou menos vulgar, que podem “implodir” o presidente ou “ferrar”, digamos assim, a bancada governista e muito mais no Congresso.

Nada disso é grande novidade, nem as acusações, nem as suspeitas, nem as vulgaridades oligofrênicas.

Nada disso talvez dê em grande coisa, não pelos riscos evidentes do furdunço de gente que não tem escrúpulos a ponto de ameaçar até a autopreservação. Há tantas pontas soltas que uma delas pode de fato desatar o último nó que prende escândalos do bolsonarismo ou do pesselismo.

Mas nada disso parece se articular com o resto do governo do país, no sentido mais genérico do termo —até que estoure um escândalo, claro, sempre se ressalte.

Mudanças legislativas fundamentais continuam a passar no Congresso Nacional. Goste-se ou não de reformas, a essência de relações trabalhistas, sociais, a capacidade de poupança do país, a regulação de setores centrais da economia das empresas, o padrão de gasto público, a redistribuição de renda, tudo vai sendo alterado desde o governo de Michel Temer.

Esse programa reformista nada tem a ver com as ideias de quem ocupa o centro do Poder Executivo. Ao contrário, na verdade.

Para os políticos que depuseram Dilma Rousseff, MDBs, centrões, fisiologismos e corporativismos regionais entre eles, a “Ponte para o Futuro”, o programa liberal do partido do impeachment, não era muito mais do que um pretexto, beletrismo econômico. Note-se, de passagem, que a ficha corrida do grupo de Temer acabara por derrubar a “Ponte”, em especial no Joesley Day.

Bolsonaro e sua parca turma não têm ideia do que propõe Paulo Guedes. O programa ultraliberal era, como se sabe, um pretexto, uma carta de recomendação para o bolsonarismo se apresentar à elite econômica. A vida inteira, Bolsonaro jamais foi mais do que um sindicalista das corporações armadas e um admirador de um estatismo ferrabrás das cavernas, subgeiseliano.

Claro que a eleição do presidente representou muito mais do que Jair Bolsonaro tinha ou não na cabeça, como costuma acontecer: as novas classes do empreendedorismo pop-periférico e suburbano, os evangélicos, o Brasil que cresceu e enriqueceu no entorno do sucesso agropecuário, os direitistas abafados faz décadas. Etc.

Mas o núcleo e a vontade de poder bolsonarista nada têm a ver com a reforma liberal, assim como seu grupo parece indiferente à ameaça que o sururu representa para a reforma liberal —o bolsonarismo é guerra cultural de extrema direita e autoritarismo político.

Conviria às oposições e aos críticos em geral de Bolsonaro, do governo e do programa liberal do “bloco no poder” se perguntasse quem de fato governa o país desde 2016.

O bolsonarismo quer aparelhar o Supremo

Na campanha, Eduardo Bolsonaro expôs uma receita para submeter o Judiciário: “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo”. Seu pai propôs uma fórmula alternativa: aumentar o número de cadeiras de 11 para 21, o que lhe permitiria indicar dez ministros de uma vez.

As duas ideias ficaram pelo caminho, mas o bolsonarismo não desistiu de aparelhar o tribunal. Há duas semanas, a deputada Bia Kicis propôs mudar a Constituição para antecipar a aposentadoria dos atuais ministros. Se o texto for aprovado, os juízes que já fizeram 70 anos terão que despir a toga e vestir o pijama. Isso dobraria o número de vagas à disposição do presidente até 2022.


Pela regra atual, Bolsonaro poderá indicar os substitutos de Celso de Mello e Marco Aurélio Mello. Com a mudança, ele também escolheria os sucessores de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Dos 53 deputados do PSL, 46 subscreveram o texto. Na segunda-feira, Joice Hasselmann declarou que trocar ministros do Supremo “seria muito bom”. “Se a gente derrubar a PEC da Bengala, a gente numa lapada já tira dois, três”, empolgou-se.

A PEC que elevou a idade de aposentadoria para 75 anos foi aprovada em 2015, com o voto de Bolsonaro. O objetivo da proposta, articulada por Eduardo Cunha, era impedir que Dilma Rousseff indicasse mais cinco ministros do STF. Agora que chegou ao Planalto, o presidente quer desfazer a mudança em causa própria.

O bolsonarismo vê o Judiciário como um obstáculo a seu projeto político. O Supremo já criminalizou a homofobia, barrou o Escola sem Partido e derrubou a canetada que retirava da Funai a demarcação de terras indígenas. Apesar de algumas fraquejadas, a Corte ainda impõe limites ao poder do presidente. É isso que o capitão e seus soldados querem neutralizar.

Líderes autoritários não gostam de tribunais independentes. No ano passado, o governo de extrema direita da Polônia promoveu um expurgo na Suprema Corte. Depois teve que recuar, sob pressão da União Europeia. A Hungria criou um sistema judicial paralelo, subordinado ao Executivo. A medida fortaleceu o premiê Viktor Orbán, um dos autocratas mais cortejados por Bolsonaro.

Eternamente deitados no atraso

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis - tarde demais
Lourenço Diaféria, "Herói. Morto. Nós"

Visita ao rinoceronte

Com a viagem de Bolsonaro ao Japão, China e adjacências, Brasília está privada de sua maior atração turística: a saída do presidente do Palácio da Alvorada, todas as manhãs, e os minutos que ele concede aos cerca de cem sujeitos que chegam de ônibus, vindos das mais remotas grotas, e se postam ali desde a madrugada à sua espera. Por volta das 10h, surge Bolsonaro e não os decepciona. Posa para selfies e, para gáudio geral, distribui agressões, afrontas e imprecações contra os inimigos e até contra os amigos. Como tudo é gravado por eles, não pode haver desmentidos.


Mas não há o que desmentir. Bolsonaro usa esse canal para mandar recados. Só não se sabe quem ele atacará, difamará ou fulminará naquele dia --um alvo importante é seu ministro de estimação, Sergio Moro, em cuja face ele aplica frequentes bofetadas verbais, para mantê-lo em seu lugar. O próprio Bolsonaro, em seu português de quinta, foi quem melhor se definiu nessa pantomima: "É o zoológico. Quando você vai no zoológico, você vai sempre na jaula do rinoceronte. Eu sou o rinoceronte da política". Mas logo se corrigiu: "O chifre é no nariz, hein, não é na testa, não!". A plateia teve frouxos de riso.

Bolsonaro nunca aproveitou esse circo matinal para fazer uma declaração digna de um estadista. Nunca disse uma palavra de estímulo sobre o trabalho de recuperação do Museu Nacional. Nunca demonstrou comoção pelos mortos de Brumadinho ou do Ninho do Urubu. Nunca lamentou a perda de símbolos nacionais, como Bibi Ferreira ou João Gilberto. O país não existe.

Reduziu a presidência à função de um vereador. Para ganhar a eleição, precisou do povo, mas, como governante, seu único mérito é o de estar unindo contra si todas as forças conscientes do país.

Em breve, só lhe restarão os filhos e os cem robotizados que o prestigiam no papel de, segundo ele próprio, rinoceronte do zoológico.
Ruy Castro

Sujeira para o Brasil limpar


Quatro biscoitinhos e o capeta

Seja a viagem curta ou nem tanto, com passagem cara ou mais ou menos, a bordo da Latam o viajante tem direito a quatro biscoitinhos – doces, chinfrins, e embalados dois a dois. A maioria dos passageiros abre e come. Há fome no ar.

São três companhias operando nacionalmente. Se quer voar, se precisa voar, engula os biscoitinhos e não chie, como não chiou ao pagar pela mala despachada.

Em tempos de deselegâncias explícitas, é permitido dizer que os quatro biscoitinhos do faz–de-conta-que-servimos-lanche da Latam - um deboche – são o engole sapo do dia.

Há outros batráquios a serem oferecidos pelas aéreas.

Na sexta-feira, 1º de outubro, a atriz Nathalia Dill usou seu Instagram, para reclamar ter sido retirada de uma aeronave da Gol por “sobrecarga” não dela, mas do voo. O avião continha mais peso do que o permitido.

"Quero que todos saibam o que está acontecendo! Eu e mais seis passageiros fomos retirados do voo por sobrecarga! Mas como assim!? Pagamos as passagens e não pudemos voar. Agora estamos aqui esperando uma solução que não chega nunca! E ao lado do nosso grupo tem um casal que teve o voo cancelado sem aviso! Meu Deus!", escreveu.

O post de Nathalia fez eco e outras vítimas de sobrecargas da Gol chiaram. Não sabemos se – e como – os ejetados daquele dia voaram ao destino pretendido. A Gol continua no ar.


Na mesma semana, o noticiário local da Brasília contava que um dos maiores hospitais públicos da capital federal, Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), suspendeu cirurgias por tempo indeterminado porque o ar condicionado central pifou.

Nos centros cirúrgicos, relatavam profissionais entrevistados, a temperatura chega aos 38 graus e os médicos operam com um auxiliar abanando com leque, papel, mãos... para aliviar a escaldante temperatura ambiente.

Dá para imaginar a cena? O risco para os operados? O desalento dos cirurgiões?

Pois então a matéria seguiu relatando: há seis anos o ar condicionado em questão não recebia qualquer manutenção. Ou seja, passaram um governo inteiro (quatro anos!) e outro meio (dois anos!) sem que houvesse a providência de dar uma geral no resfriamento do HRAN, que atende perto de sete mil pessoas ao mês.

A voz oficial da Secretaria de Saúde/DF disse que o novo governo, empossado em janeiro, agora está providenciando uma licitação para o "causo". E não há prazo para resolução.

O portal da instituição informa: o HRAN é referência no atendimento às vítimas de queimaduras, lábio leporino, crisdown (atendimento aos portadores da síndrome de down), cirurgia bariátrica.

Os biscoitinhos tipo caridade da Latam, a sobrecarga que expulsa passageiros da Gol, os 38º de temperatura ambiente no centro cirúrgico do HRAN, em graus distintos, são retratos do Brasil operando no modo Vale Tudo, onde o presidente pode até ser chamado de vagabundo por seus pares do partido em convulsão – o PSL, segundo maior em número de deputados na Câmara Federal.

Seus 52 deputados federais eleitos rendem ao partido 8,3 milhões mensais do Fundo Partidário. Até as pedras sabem que esses $$ motivam a briga de foice entre as esquadrilhas do presidente do partido e do capetão PR alimentado por seus três capetinhas – Carlos, Eduardo e Flávio.

O PR viajou, mas a crise não. Aqui, o caldeirão do PSL ferve, espirrando tanto enxofre quanto o óleo (de galões com assinatura Shell) derramado nas praias nordestinas. No caso do enxofre, sem voluntários pra limpar.

Vai dar ruim?
Nem Lúcifer arrisca palpite. Certeza mesmo só os quatro biscoitinhos que a Latam oferece para quem escapa, pelas suas asas, do calor de Brasília.

Choro dos privilegiados

Vamos ter que diminuir nossos privilégios e compartilhar mais
Cecilia Morel, mulher do presidente Sebastian Piñera, um dos mais ricos do Chile, em áudio vazado no WhatApp

'Arrecua os arfes', presidente

‘Pode me levar até a outra margem?”, perguntou o escorpião. “Não, você vai me picar, e eu vou me afogar”, respondeu a rã. “De jeito nenhum, se eu te picar, morro também”. A rã aceitou o argumento, e carregou o escorpião, que, no meio do rio, a picou. “Por que você fez isso? vamos morrer os dois!”, gritou a rã. “Não pude evitar, é a minha natureza”, respondeu o escorpião enquanto ambos afundavam.

Nos últimos meses, Bolsonaro brigou com jornalistas, políticos, intelectuais, cientistas, professores, artistas, ambientalistas, mulheres, homossexuais, transexuais, negros, militares, policiais, auditores, ministros, secretários, líderes estrangeiros. O confronto é sua natureza: ele não tem adversários, tem inimigos, e seus aliados devem se comportar como súditos, sob pena de serem vistos como traidores e tratados como inimigos.



O inimigo da vez é o ex-aliado Luciano Bivar. Depois de meses de disputa com o presidente do PSL pelo controle da verba do partido, Bolsonaro declarou que Bivar está “queimado” e recomendou que se esquecesse o PSL. Quis sair do partido, mas percebeu que teria que deixar o dinheiro para trás, e recuou: “foi uma briga de marido e mulher” (não disse quem é o marido e quem é a mulher) — as analogias erótico-conjugais do presidente são interessantes: a relação com Paulo Guedes é um “casamento hétero”; o atrito com Rodrigo Maia foi uma briga de namorados; o encontro com Augusto Aras foi “amor à primeira vista”; Trump ganhou um “I love you”.

Bolsonaro passou a exigir que o partido publique suas contas, diz que a falta de transparência sobre o laranjal do PSL é motivo para que seus apoiadores abandonem o partido sem perder os mandatos (e o dinheiro) — mas não vê no laranjal motivo para demitir seu ministro do Turismo, já até denunciado pelo Ministério Público. Bivar retaliou contratando auditoria para examinar a campanha de Bolsonaro. Coincidência ou não, a Polícia Federal cumpriu mandado de busca e apreensão contra Bivar. Daí para a frente, foi ladeira abaixo.

O PSL obstruiu uma Medida Provisória. Bolsonaro foi gravado em uma conversa que sugere que ofereceu cargos e verbas para eleger seu filho líder do PSL. Bivar aumentou sua representação no diretório nacional, suspendeu cinco deputados, tenta cassar outro, e destituiu os que estavam nos comandos regionais do partido (incluindo Flávio e Eduardo). O líder do PSL foi gravado por um bolsonarista chamando o presidente de “vagabundo” e “essa porra”, e afirmando ter uma gravação capaz de “implodi-lo”. Bolsonaro passou pela humilhação de não conseguir eleger Eduardo líder do partido. Uma derrota acachapante.

Na manhã de ontem, entretanto, o PSL revogou a suspensão dos cinco deputados, e o governo usou suas assinaturas para fazer de Eduardo líder. Deputados bivaristas denunciaram que o governo traiu o acordo de paz que previa manter o líder Delegado Waldir em troca da revogação da suspensão dos deputados, entraram com pedido para reconduzir Waldir e anunciaram que serão suspensos não apenas os cinco deputados originais, mas outros mais. A guerra se acirrou.

A única maneira de vencer um divórcio litigioso é parar de brigar, mas a “natureza do escorpião” sugere que a guerra vai continuar. O espírito de confrontação do presidente pode vir a ser o que Aristóteles chamou de harmatia, a “falha trágica”: o traço de caráter que leva o herói à destruição. Falta grandeza a Bolsonaro para ser considerado um herói trágico: sua conduta é vulgar, sua motivação (o dinheiro, a reeleição) é mesquinha. Mesmo assim, sua “falha burlesca”, ou tragicômica, pode ser sua perdição. “Ao cercar o inimigo, deixe-lhe uma saída, ou ele lutará até a morte”, escreveu Sun Tzu em “A Arte da Guerra” (em 2005, em circunstância distinta, Roberto Jefferson acreditou que não tinha saída, e o resultado é conhecido).

Dada a estatura da personagem, o enredo não é digno de Sófocles, mas o lendário filósofo do futebol Neném Prancha, se analisasse a situação em que Bolsonaro está, lhe daria um conselho:

“Capitão, arrecua os arfes para evitar a catastre.”

Resta saber se o presidente conseguirá contrariar sua natureza e aceitar o conselho.
Ricardo Rangel

Restaurou-se a monarquia, reina a esculhambação

A crise do PSL juntou num mesmo caldeirão política, família e assuntos de Estado. Em Tóquio, Jair Bolsonaro declarou que, em vez de virar embaixador nos Estados Unidos, o filho Eduardo deveria permanecer no Brasil para "pacificar" o partido. O presidente também afirmou que ninguém o verá "jogando lenha na fogueira" em que arde o PSL. Disse, de resto, que falta "serenidade" a um pedaço do PSL. Repetindo: Bolsonaro usou o verbo "pacificar" e o substantivo "serenidade". Ou seja: estava completamente fora de si.



Há duas semanas, agindo como um piromaníaco, Bolsonaro riscou o fósforo que acendeu a fogueira que ele agora fala em apagar. Disse a um apoiador, na frente do Alvorada, que Luciano Bivar, o presidente do PSL, está "queimado para caramba". Como quem sai aos seus não endireita, Eduardo Bolsonaro aproveitou os seus primeiros instantes como líder do PSL não para pacificar, mas para acentuar a guerra.

O filho do presidente afastou deputados rivais dos postos de vice-liderança e trocou representantes do PSL na CPI das Fake News, grande preocupação do governo. A Executiva do partido, ainda nas mãos de Bivar, abriu processos disciplinares contra 19 deputados —entre eles Eduardo Bolsonaro. E o grupo leal ao presidente da República obteve na Justiça liminar suspendendo os processos. Não será por falta de lenha que a fogueira continuará ardendo.

Em meio às labaredas, Jair Bolsonaro disse a seguinte frase sobre a indicação do filho para embaixador: "Isso o Eduardo vai ter de decidir nos próximos dias, (...) se ele quer ter seu nome submetido ao Senado para a embaixada ou não. (...) Não vou interferir na vida dele, ele é maior de idade" [O Zero Três decidiu que não irá para Washington]. Ora veja. A principal embaixada do Brasil no exterior tratada assim, como um caso de família, não um assunto de Estado. Restaurou-se a monarquia no Brasil. Reina a esculhambação.

Pensamento do Dia


Paulo Freire, 'subversor dos menos favorecidos', na ditadura

Quando os militares tomaram o poder em 1º de abril de 1964, depondo o então presidente João Goulart, Paulo Freire vivia com a família em Brasília, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Envolvido com o trabalho de formação de professores em Goiânia, era sua assistente, Carmita Andrade, quem o mantinha informado sobre a intensa movimentação política na capital. Apenas dois dias antes, Carmita havia sugerido que ele voltasse a Brasília de imediato, porque as tensões pareciam se agravar decisivamente. Retornado às pressas, Paulo se surpreendeu ao procurar Júlio Furquim Sambaqui e ser convidado a acompanhar a leitura de uma conferência que o ministro daria dali a alguns dias. O chefe queria sua opinião. Incrédulo com a ingenuidade de Sambaqui, Paulo o alertou para o que lhe parecia um quadro de grave instabilidade institucional — e para a improbabilidade de ocorrer qualquer nova atividade do governo que representavam. No dia seguinte, os militares se instalariam no poder.

O ambiente político tornou-se tenso, com notícias desencontradas de todos os lados: haveria resistência da população? O Governo deposto conseguiria reagir ao golpe de Estado? Diante do clima de insegurança e da incerteza sobre seu futuro no ministério, Paulo pediu à mãe que levasse os filhos dele para Recife, onde mantinha uma casa. Providências tomadas, ele e a esposa, Elza, permaneceram em Brasília, levando uma vida reservada na casa de amigos. Queriam ser notados o mínimo possível.


Com lançamento previsto para 13 de maio, o Programa Nacional de Alfabetização seria extinto em 14 de abril, treze dias depois do golpe militar. O novo Governo aproveitou a ocasião para fazer duras acusações ao trabalho que Paulo e sua equipe vinham desenvolvendo; apontaram o material didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus autores de querer implantar o comunismo no país. Acabava ali o sonho de lançar 60.870 Círculos de Cultura para alfabetizar 1,8 milhão de pessoas ainda em 1964, 8,9% do total na faixa de quinze a 45 anos que não sabiam ler nem escrever. A preocupação maior de Paulo era agora com o imponderável, um futuro incerto e perigoso para ele e sua família diante de tais acusações e do clima de perseguição política que se instalara.

Ao extinguir o Programa Nacional de Alfabetização, os militares respondiam às pressões de parcela conservadora da sociedade brasileira que atacava e desqualificava o trabalho de Paulo Freire. As denúncias passaram a ser instrumento de luta dos partidos políticos que apoiavam o golpe contra as siglas ligadas ao ex-presidente João Goulart. Paulo viu sua situação se tornar cada vez mais complicada.

Condenação do método

Na Câmara dos Deputados, políticos conservadores se revezavam na condenação permanente de seu método de alfabetização. Em 18 de abril, o deputado Emival Caiado, do partido conservador União Democrática Nacional (UDN), denunciou Mauro Borges, então governador de Goiás e aliado do ex-presidente Jango, de implantar o comunismo no Estado: “O método comunizante do sr. Paulo Freire teve entusiástica acolhida do Governo goiano. O sr. Mauro Borges deu total e completa cobertura a órgãos estudantis dominados por comunistas”. Caiado concluiu, aos brados: “Não creio que em nenhum outro Estado o comunismo tenha se infiltrado tanto!”.

Intensamente debatido como uma questão social das mais relevantes, o analfabetismo exigia dos militares uma resposta rápida, algo concreto que pudesse ser contraposto ao que vinha sendo feito nos anos anteriores. Em 15 de maio, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo repercutiram a proposta apresentada pela vereadora paulistana Dulce Salles Cunha Braga ao novo ministro da educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Figura ativa na articulação do golpe, a advogada e professora afirmava poder erradicar o analfabetismo no Brasil em apenas oito meses. Denominado “Alfabetização para massas”, seu método teria se mostrado bastante eficiente ao ser aplicado a partir de veiculação na rádio Record, no estado de São Paulo. Dulce propunha, com base nessa experiência, uma cartilha a ser distribuída pelo MEC, com apoio radiofônico do pro- grama A voz do Brasil, a fim de alcançar todo o território nacional. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, uma nova versão da cartilha já estaria pronta para divulgação imediata, com leituras retiradas do “ideário democrático, numa espécie de réplica ao modelo comunizante do método Paulo Freire”. O ministro Suplicy de Lacerda respondeu que analisaria a proposta com atenção e que logo se manifestaria.

Ao mesmo tempo, também o debate sobre o voto do analfabeto voltou à tona nos meses que se seguiram ao golpe militar. Em um país que historicamente proibia o voto aos iletrados, o Programa Nacional de Alfabetização representava uma ameaça aos redutos políticos cativos nas eleições seguintes. Em Sergipe, por exemplo, o Programa permitiria acrescer 80 mil eleitores aos 90 mil já existentes. Da mesma forma, em Recife, a iniciativa praticamente dobraria a quantidade de eleitores, elevando de 800 mil para 1,3 milhão o número de títulos. Projetados no cenário nacional, os exemplos demonstravam como o método do professor Paulo Freire, que propunha alfabetizar um iletrado em 40 horas, poderia alterar a correlação das forças políticas.

Como o programa de alfabetização, a questão do voto dos analfabetos também estava em debate e exigia uma resposta do novo governo. O marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro militar a assumir a presidência depois do golpe, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de mudança tímida, que estendia o voto aos iletrados apenas nas eleições municipais — e de maneira facultativa. Ainda assim, a proposição foi derrotada, em parte pelo pouco empenho da bancada governista, fazendo crer que a medida era mero jogo de cena.

Intensiva propaganda comunista

Em sua edição de 30 de junho de 1964, o jornal O Estado de S. Paulo publicou um artigo de Antônio Bernardes de Oliveira, médico, professor universitário e membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, intitulado “O voto do analfabeto, um desserviço à Nação”. O autor argumentava que tal possibilidade “só pode interessar ao demagogo e ao oportunista sem escrúpulos; não corresponde a nenhuma aspiração nacional; anula e avilta o voto consciencioso e de qualidade; compromete o regime; afasta as elites legítimas; reduz o papel dos partidos; convida ao suborno; nivela por baixo”. Sobre o método de Paulo Freire, em sua opinião adotado pelo governo deposto apenas para ampliar o colégio eleitoral, Bernardes de Oliveira dizia não passar de “uma manobra para alcançar dois escopos, uma intensiva propaganda comunista e a eclosão de uma invencível força eleitoral de índole facciosa onde a demagogia teria as portas abertas”.

Em Brasília, Paulo assistia a tudo com discrição. Elza já havia voltado para Recife para ficar junto aos cinco filhos do casal — Madalena, a mais velha, com dezoito anos, seguida por Cristina, Fátima, Joaquim e o caçula Lutgardes, então com cinco anos. Através de um intermediário com contatos entre os militares, Paulo sondou o então chefe do Gabinete Militar, o general Ernesto Geisel, e o general Antônio Carlos Muricy, comandante da 7ª Região Militar, se haveria algum impedimento para que deixasse Brasília e se juntasse à família. Quando soube que não, embarcou imediatamente para Pernambuco.

Chegando em Recife, tratou de retomar suas atividades acadêmicas e seus escritos, que havia deixado de lado com a mudança para Brasília. Paulo conquistara alta visibilidade a partir de 1963, quando encampou uma experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, trabalho desenvolvido com a equipe do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade de Recife. Ali, 300 jovens e adultos participaram de seu processo de alfabetização em 40 horas. Amplamente propagandeados pelo governo estadual, os bons resultados levaram João Goulart a se deslocar de Brasília até o interior potiguar para participar do encerramento do curso. Com o sucesso e a repercussão da iniciativa, Paulo foi convidado pelo Ministério da Educação e Cultura a estender o trabalho para todo o país. Aceitou a proposta e se mudou com a família para Brasília. Em junho de 1963, começou a trabalhar na formação de futuros coordenadores dos núcleos de alfabetização, que seriam implantados em praticamente todas as capitais. Só no estado da Guanabara, cerca de 6 mil pessoas se inscreveram naquela ampla mobilização nacional pela educação, que seria interrompida pelos militares em abril do ano seguinte.

De volta a Recife, Paulo se apresentou voluntariamente à Secretaria de Segurança Pública e constatou que não havia qua quer ordem de prisão contra ele. Foi informado, no entanto, de que poderia ser chamado para depor a qualquer momento.

Intimidação durante a ditadura

O clima de intimidação era geral. As universidades e demais instituições de ensino público seriam afetadas diretamente pelos Atos Institucionais, que davam poder aos militares a partir de comissões de investigação instauradas para averiguar opositores, cassar mandatos políticos, destituir de cargos e retirar o direito ao voto. Com o objetivo declarado de voltar a integrar os alunos “na sua tarefa precípua de estudar e os professores na sua missão de ensinar”, as medidas estabeleciam um rígido controle sobre o universo estudantil com a pretensão de coibir os crescentes protestos e manifestações.

Atendendo às orientações impostas pelo Ato Institucional nº1, de 9 de abril de 1964, João Alfredo, reitor da Universidade de Recife, em que Paulo trabalhava, convocou uma reunião do Conselho Universitário para o dia 27 de abril. Decidiu-se instalar uma comissão de professores para apurar responsabilidades de docentes e servidores na “prática de crime contra o Estado e seu patrimônio, a ordem política e social, ou atos de guerra revolucionária”, conforme rezava a portaria. Essa co- missão deveria abrir rapidamente sindicâncias e analisar documentos a fim de elaborar relatórios para o reitor.

Paulo foi interrogado sobre sua atuação na universidade. A comissão solicitou que os esclarecimentos necessários à sua defesa lhe fossem passados por escrito. Os dias seguintes foram dedicados a produzir um documento descritivo de seu trabalho, em resposta às dezoito perguntas encaminhadas a ele. Paulo aproveitou para tecer considerações pessoais, indignado com a evolução dos fatos na instituição de ensino e no país. O documento seria entregue no dia 25 de maio. Ao esclarecer que atuava no SEC desde sua implantação, em 1962, Paulo chamava a atenção para o fato de ser amigo do reitor, a quem tinha o dever de lealdade: “Aprendi com meu pai e com minha Igreja que a lealdade, a coragem e a honradez, a retidão não podem ser desprezadas pelo homem, sob pena de se desprezar a si mesmo, e deixar de já ser homem”. O documento respondia às perguntas enumerando as atividades realizadas nos dois anos anteriores. Paulo mencionou que havia sido convidado pelo então ministro Paulo de Tarso para coordenar um programa nacional de educação para adultos, e não simplesmente de alfabetização. E que entendia o convite como honroso não só para ele, mas também para a universidade. Por isso havia exigido que o trabalho ocorresse por meio do SEC, em convênio do ministério com a Universidade de Recife, na qual continuaria com suas pesquisas regulares.
Atividades consideradas subversivas

Em relação às críticas da imprensa recifense sobre suas atividades, tachadas de subversivas ou propagadoras de ideias contrárias ao regime democrático, respondeu que não só tinha conhecimento do que se dizia na cidade “mas também em todo o Brasil e que a leitura dessas críticas lhe servira para fazer um verdadeiro curso de como se pode, por ignorância, má-fé, ou outras coisas quaisquer, distorcer o pensamento dos homens”. Em contrapartida, destacou a valorização e o apoio ao trabalho do SEC em artigos e depoimentos de nomes como o do sociólogo Gilberto Freyre e do professor Walter Costa Porto. Paulo fez referência também à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde estivera para dar uma conferência que, seguida de debate, gerou muitos elogios ao seu trabalho. Todas essas pessoas, observou, não eram comunistas nem estavam interessadas em comunizar o país — e justamente por isso apoiavam o que estava sendo feito. Escreveu que não podia deixar de rir quando o acusavam de “lavador de cérebros”, pois a essência da sua teoria pedagógica era alérgica a regimes totalitários: “Nego, pois, a vera- cidade das acusações assacadas contra o SEC, anteontem, on- tem e hoje. Nego que o SEC […] exerça atividades subversivas ou contrárias ao regime democrático. Horroriza-me o assanhamento destas acusações”.

Em suas considerações finais, Paulo faria uma defesa intransigente da alfabetização de adultos. Escreveria: "Há até quem diga que não adianta alfabetizarmos esses 36 milhões de brasileiros porque talvez 'papagaio velho não aprende a ler'. Como se estas legiões de analfabetos não constituíssem, para nós, seus irmãos letrados, uma prova de nosso desamor. De nossa incúria. De nosso fracasso. Nunca pretendemos ser os donos da alfabetização nacional. Há analfabetos demais. […] Se tudo o que dissemos em nossa defesa pessoal e na defesa do SEC a ninguém convencer, paciência. Salvem-se, porém, os analfabetos".

Entregue o documento, Paulo ficou à espera do parecer da comissão e de como o Ministério da Educação e Cultura reagiria frente ao declarado. Cerca de três semanas depois, em 16 de junho, dia do aniversário de Elza, estava em casa trabalhando na reescrita para publicação de sua tese Educação e atualidade brasileira quando dois agentes bateram à sua porta e pediram para que os acompanhasse. Sem imaginar o que viria, vestiu-se, tomou um café, despediu-se da esposa e seguiu com os policiais. No trajeto, passaram pela Secretaria de Segurança Pública, pela polícia e de lá seguiram para o quartel do 4º Exército. Apresentado ao capitão de plantão, foi fichado e detido — sem nenhuma peça de roupa ou objeto de higiene pessoal, nenhum livro para acompanhá-lo. Paulo não tinha imaginado que de fato pudesse ser preso.

Duas semanas depois, em 1º de julho, prestou novo depoimento sobre suas “atividades subversivas antes e durante o movimento de 1º de abril, assim como suas ligações com pessoas e grupos de agitadores nacionais e internacionais”, agora em inquérito policial militar chefiado pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima. Duro nos interrogatórios, em 2014 Ibiapina Lima foi apontado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, junto a outros 376 agentes do Estado, por violação dos direitos humanos e crimes cometidos durante o regime militar.

O tenente-coronel iniciou o interrogatório pela formação e pelas atividades profissionais de Paulo; questionou-o em seguida sobre inúmeros autores e seus métodos pedagógicos: Dalton, Montessori, Mackinder, Decroly, Kilpatrick, Peter- sen, Cousinet, Laubach, Alfredina de Paiva e Souza, sintético, analítico-sintético… Surpreso, Paulo respondeu sobre aqueles que conhecia, afirmou que, em sua maioria, eram integrantes de uma pedagogia moderna, defensora de uma educação ativa na qual o educando pudesse superar a passividade característica da escola antiga e assumir uma posição participante em seu aprendizado.

Na sequência viriam perguntas para testar seu conhecimento específico sobre os autores e métodos apresentados, os resultados que produziram, onde foram aplicados. Depois, sobre sua avaliação dos sistemas de ensino adotados pelo Exército dos Estados Unidos e do Brasil a partir de 1941. Em seguida, Paulo foi questionado sobre a diferença entre sua visão pedagógica e a perspectiva de cada um dos outros educadores citados. E, finalmente, sobre o seu método de aprendizado — destinava-se apenas à alfabetização ou ao ensino de maneira geral?

Em relação ao último questionamento, Paulo se deteve mais pacientemente, explicando com didatismo para Ibiapina Lima que sua principal preocupação era educar, e não só alfabetizar. Esclareceu que era um método baseado no diálogo, que abordava situações da vida cotidiana e pretendia fazer com que os alunos se tornassem pessoas ativas a partir das discussões sobre o contexto em que viviam. Descreveu os procedimentos para a escolha das palavras, o modo como elas eram decompostas em sílabas que depois se juntavam em outras combinações para construir novas palavras. Para concluir, disse que todo seu trabalho educativo se fundava no absoluto respeito ao ser humano e que o importante era educar, não doutrinar.

Nesse momento do inquérito, tendo ouvido Paulo com atenção, Ibiapina Lima tornou-se mais agressivo; perguntou como ele poderia se considerar um educador se demonstrava desconhecer parte dos teóricos citados. Paulo argumentou que não lhe cabia julgar a si próprio e que não tinha nada a acrescentar sobre os demais autores.

O tenente-coronel então fez referência à duração do método de alfabetização de Paulo Freire, questionou o porquê das 40 horas — rapidez tão alardeada pelos meios de comunicação. A busca por uma solução ágil, respondeu Paulo, era necessária porque o problema era muito grave, e argumentou que a alfabetização deveria ser aprofundada em fases subsequentes. Quanto à originalidade de seu trabalho, afirmou que não tinha pretensões de ser original, mas de dar sua contribuição ao combate do analfabetismo.

Ibiapina Lima então questionou Paulo sobre seu suposto envolvimento com o comunismo ou com regimes totalitários, comparando seu método àqueles utilizados por Hitler, Mussolini, Stalin e Perón. Quis saber também sua opinião a respeito de Cuba, da União Soviética e da China. E o que pensava sobre Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião e Gregório Bezerra. Em uma guerra entre o Brasil e um país comunista ou socialista, de que lado Paulo estaria? Paulo se defendeu de todas as perguntas. Constrangido pelas circunstâncias, repudiou o comunismo, expressou-se como apoiador das reformas do marechal Castello Branco, mostrou-se satisfeito com sua liderança, negou vontade de deixar o país e, por fim, colocou-se na condição de cristão que valorizava o ser humano e que se orientava pela doutrina da fé. Depois de horas de tensão e afrontamento, pôde enfim voltar para a cela. Dois dias depois, em 3 de julho, foi solto.

Mitos ou verdades

A reforma administrativa do governo federal nem chegou ao Congresso Nacional, mas a mobilização contrária já ganha corpo. Na última semana, antes mesmo do governo trazer a público o teor da sua proposta, um conjunto de entidades representativas dos servidores públicos federais divulgou um extenso documento em que verdades absolutas são questionadas e seus objetivos desvirtuados. Há que se reforçar, portanto, as motivações que justificam uma reforma da máquina pública brasileira. E elas são, fundamentalmente, a melhora da qualidade do serviço público, o aumento da produtividade da economia brasileira e a necessária redução dos gastos obrigatórios que vêm comprimindo a capacidade do Estado de investir e melhor servir a população.

Embora legítimo na defesa dos interesses das entidades que apoiaram a sua elaboração, o documento da Frente Parlamentar Mista pela Defesa do Serviço Público precisa ser confrontado com dados e informações que jogam por terra as teses que ele busca defender. Afinal, há fartas evidências na direção contrária. Além disso, a necessidade de se reformar a máquina pública não está vinculada ao seu desmonte, mas sim à sua melhora operacional, com impactos positivos significativos também para o servidor público.


O Brasil tem gastos públicos que atingem hoje o equivalente a 39% do PIB. Boa parte disso, com o financiamento da máquina pública. Esse número, calculado pelo Tesouro Nacional com informações de 2016, é muito superior ao que países como México ou Chile gastam e se aproxima dos níveis de gastos observados em países como Inglaterra ou França. Pode-se argumentar (corretamente) que o Brasil, sendo um país em desenvolvimento e com uma população tão carente, deve mesmo ter uma máquina pública maior e mais cara. Verdade, desde que a contrapartida fossem serviços públicos de qualidade e uma população bem atendida. Não é o caso. Estamos dentre os países com pior avaliação na qualidade dos serviços públicos, segundo pesquisa da OCDE. Portanto, relativamente ao que deveríamos estar oferecendo à população brasileira, sim, o Estado no Brasil é muito grande e a máquina pública está inchada, consumindo recursos em níveis e trajetórias que não se refletem na qualidade do serviço público e no atendimento à população.

E a explicação principal está na alocação dos recursos públicos. Gastamos, segundo dados do Banco Mundial publicados recentemente, cerca de 10% do PIB com o pagamento de salários e benefícios a servidores da ativa. Somando as despesas com os regimes próprios de Previdência, chega-se a cerca de 15% do PIB. Como o número de servidores não parece alto em relação à população empregada no setor privado, o gasto de pessoal no serviço público se mostra elevado quando comparado a outros países.

Some-se a isso a desigualdade salarial no setor público brasileiro, há disfunções que precisam ser corrigidas se quisermos melhorar os serviços públicos na ponta, o atendimento ao cidadão. A Inglaterra, por exemplo, gasta cerca de 6% do PIB com salários e benefícios dos seus servidores e tem o melhor serviço público do mundo, segundo índice da Blavatnik School. Além disso, as despesas de pessoal no serviço público brasileiro vêm consumindo parcelas crescentes das receitas totais graças ao crescimento orgânico e vegetativo dos gastos com salários no setor público. Tanto que, entre 2008 e 2018, o crescimento acumulado real do gasto com servidores ativos foi de 26%, ainda segundo o Banco Mundial. Sim, as despesas de pessoal são muito altas e estão descontroladas.

As outras quatro verdades divulgadas como mitos no documento da Frente Parlamentar Mista tratam da ineficiência do Estado, do privilégio da estabilidade, do fato de que chegamos ao colapso fiscal e finalmente da importância das reformas estruturais para a retomada do crescimento. Todas questões amplamente debatidas e amadurecidas e que merecerão mais algumas linhas nesse espaço nas próximas semanas.

Mas vale aqui ressaltar a relevância do tema e comemorar a entrada desse debate na pauta nacional. A construção de uma reforma estrutural da máquina pública se dará a partir do Executivo, passará pelo necessário debate legislativo e pela negociação com os servidores e seus representantes e carecerá do entendimento do Judiciário. Mas para que os resultados convirjam para o seu objetivo, qual seja o de melhorar o funcionamento do setor público brasileiro e garantir que os serviços públicos básicos sejam instrumento de justiça social, gerando igualdade de oportunidades para os mais pobres, ele terá de contar com o envolvimento da sociedade. Daí a importância de deixar claro desde já que verdades são verdades. Não são mitos.

O bolsonarismo é uma força de traição

O contrato de aluguel firmado entre Gustavo Bebianno e Luciano Bivar era claro: o presidente do PSL entregaria o partido ao bolsonarismo, com porteira fechada, durante o processo eleitoral, e o teria de volta, robusto, ao fim da eleição.

Era – para quem desconhece a natureza do fenômeno bolsonarista – um típico acordo de ganha-ganha. Jair Bolsonaro levaria a plataforma burocrática necessária ao pleito pela Presidência; e Bivar a retomaria adiante com, na pior das hipóteses, uma bancada parlamentar encorpada e maior valor no mercado dos fundos públicos partidários. Em tese, um baita negócio.

Nunca houve santos nesse trato; sendo a desqualificação partidária contida no business mais um golpe desferido pelo bolsonarismo contra a democracia representativa. Todos os que, filiando-se ao partido de aluguel, associaram-se ao projeto autoritário de poder bolsonarista – tanto os de boa vontade quanto os em busca de uma boquinha – são responsáveis pela depreciação político-institucional que o arranjo PSL/Bolsonaro desfecha. Entre os signatários do pacto vil, porém, foi Bivar quem cumpriu sua parte; decerto iludido sobre o caráter bolsonarista e a inevitabilidade de que, cedo ou tarde, para além do simples desrespeito a acordos, traísse.


Essa gente trai. Tem a índole para o expurgo. Atrai e trai. Atrai, instrumentaliza, manipula, gasta, desgasta – e trai. Então, passada a eleição, com Bolsonaro consagrado presidente, e não sem rápidos indícios de que seu controle sobre o Estado pudesse se estender também à Polícia Federal, era questão de tempo até que a engenharia de intimidação bolsonarista se concentrasse em assaltar e tomar o partido; em rebaixá-lo para melhor capturá-lo segundo o interesse autocrático: uma mera estrutura sem identidade, para fins formais, mas com fundos para bancar a conta do projeto personalista de poder do bolsonarismo.

Sob esse movimento reacionário populista, apenas os Bolsonaro terão vez; todos os demais a engordar, com cargos, influência e até votos, somente se submetidos à ordem familista, sem aspirações pessoais que extrapolem as do presidente e filhos. Quem, por exemplo, tiver visto o discurso leninista do assessor especial da Presidência Filipe Martins no tal CPAC Brasil, o piquenique de Eduardo Bolsonaro pago com dinheiro público, terá percebido que ele entendeu essa dinâmica; daí por que tenha falado, sem sombra de vergonha, em amor dos brasileiros a Carlos Bolsonaro e irmãos.


Martins vai tão longe por quão longe for o bolsonarismo. O mesmo não se pode dizer de Joice Hasselmann, degredada pela fátua bolsonarista ainda sem saber por quê. Ora, ela desejou ser prefeita de São Paulo; cultivou relações com João Doria e Rodrigo Maia; e ainda crê que os ataques de que é vítima, decorrentes de uma crise artificial forjada pelo próprio Bolsonaro e disparados por seus filhos e asseclas, ocorram sem o aval do presidente.

No universo do bolsonarismo, para que se meça a flexibilidade da República dos Emojis, Hasselmann é considerada independente em excesso.

Hoje me parece óbvio que um dos fatores decisivos para a queda de Bebianno tenha sido a pretensão de honrar o contrato com Luciano Bivar. Não porque símbolo da virtude, mas por conhecer a operação partidária levantada para eleger Bolsonaro e temer que a ruptura do acordo – considerados o nível indigente e o grau de ambição da bancada eleita pelo PSL – resultasse numa convulsão no baixo clero que ascendera surfando a onda bolsonarista e, pois, na multiplicação de franco-atiradores como delegado Waldir.

Todo mundo ali sabe o que se fez no verão passado. Esta é a razão por que, em resposta ao pedido bolsonarista para ter acesso às contas do PSL, venha a demanda dos aliados de Bivar para examinar os extratos do partido durante o período eleitoral. Pode isso acabar bem para uma administração ainda aos dez meses do primeiro de quatro anos? Que tenhamos uma certeza, contudo: o bolsonarismo esticará essa corta ao máximo da tensão, ainda que com prejuízos – a parca agenda travada no Congresso – para o governo.

Para a agenda revolucionária bolsonarista: tanto melhor. Apostando no peso da caneta do presidente e na musculatura de seus braços difamadores, o bolsonarismo sabe que terá o partido. Se não o PSL, outro.

Aqui, por fim, é necessário distinguir a primazia do projeto de poder bolsonarista sobre qualquer projeto de Brasil que franjas liberais do bolsonarismo possam tentar esboçar a partir da economia. Não importa o país real, o do desemprego. Somente uma abstração de um tal Brasil conservador cujos princípios vão longamente violados.

O governo Bolsonaro – apenas a chave que franqueia a máquina federal ao avanço de uma autocracia – não pode ser lido por olhos que busquem o valor republicano da estabilidade, da governabilidade. O projeto prospera no caos. O Brasil vai mal. Não tenhamos dúvida de que o bolsonarismo vai bem.