segunda-feira, 17 de junho de 2019

Terrorismo digital

O Ministério Público caiu sob um ataque orquestrado e financiado de terrorismo digital. Esse é o grande protagonista político do vazamento das conversas entre agentes da Lava Jato. Num olhar que vê a cauda longa de certos eventos, o debate ao redor da possível simpatia dos diálogos vazados pela condenação de Lula não é o essencial, porque o Estado de Direito já está sob ataque sistemático no país, e quem começou a matá-lo foi o próprio PT, com seu desejo de poder por mil anos.

O PT não tem moral pra falar de defesa da democracia. Caso Haddad tivesse vencido as eleições, hoje apoiaríamos o ditador Maduro na Venezuela, que foi elogiado por altas patentes do partido quando foi “reeleito”. Portanto, a narrativa de virgem violentada que o PT faz após esse conteúdo hackeado só engana bobo.

O corrupto PT se vende como defensor da democracia, mas quem crê nessa imagem é ingênuo, ignorante ou mentiroso. E, numa democracia, a verdade sempre está na UTI, desde Atenas, e nada mudou.

O essencial nesse evento é a aceitação tácita por parte dos agentes institucionais da política e do debate público autorizado do terrorismo digital como player legítimo no faccionalismo político que tomou conta do Brasil.


De agora em diante, o terrorismo digital está valendo como arma política, seja pra que lado for. O “case Brasil” será objeto de estudo, dentro dos limites, claro, que um país irrelevante como o nosso merece no cenário intelectual e político internacional. Na geopolítica, o Brasil vale menos do que a Nigéria.

O terrorismo é uma tática inventada para combater um inimigo de forma a tornar o seu cotidiano instável, numa palavra, aterrorizado. Mas uma das faces essenciais do terrorismo é que sua legitimidade como forma de luta é aceita por muitos, ao mesmo tempo que é combatida por outros.

Para israelenses, o Hamas é terrorista; para palestinos, são guerreiros da liberdade. Para britânicos, o IRA era terrorista; para irlandeses, também guerreiros da liberdade.

Aqueles que aceitam o terrorismo consideram-no uma forma legítima de combate diante de um inimigo muito poderoso e instituído legalmente —como um Estado, uma empresa (um Ministério Público?). Esses poderes são sempre vistos como assimétricos em relação às vítimas que são obrigadas a combatê-los lançando mão do terrorismo.

A política sempre legitimou as formas distintas de terrorismo, inclusive enterrando seus terroristas como heróis. Intelectuais, à esquerda e à direita, sempre serviram coroas de flores em seus enterros, elogiando-os em aulas, em artigos nos jornais ou revistas, em emissões na TV ou no rádio, em posts nas redes sociais, enfim, nos veículos de conteúdo.

O terrorismo digital custa caro. Como toda máfia, requer logística e pessoal treinado. Quem pagou por esse hackeamento? De onde veio o dinheiro? Quem é contemplado positivamente pelo hackeamento e pelo conteúdo disponibilizado? O site que o divulgou é ideologicamente isento?

Claro que não. Evidente que os extremos polarizados do espectro político sempre tenderam para um ethos semelhante ao da máfia, principalmente pelo seu temperamento faccionalista, como um PCC ou um Comando Vermelho. As lutas ideológicas radicalizadas desde o século 19 sempre simpatizaram e produziram grupos terroristas.

Esses últimos acontecimentos marcam o retorno do polo à esquerda para a pole position da guerra digital, que é o futuro da política no mundo (e tanta gente por aí dizia que o PT estava morto). Mas, o fato vai mais longe do que isso.

Para além dos diretamente interessados (a esquerda como um todo, políticos corruptos em geral, intelectuais e artistas orgânicos que perderam a boquinha, professores irrelevantes) na destruição dos protagonistas da Lava Jato e, por consequência, da autonomia da Lava Jato, a classe política também vê a possível “queda da República de Curitiba” com um certo gozo: “Ufa!! Escapamos por pouco!”

De qualquer forma, parece piada os discursos sobre o controle das redes digitais por parte do Estado. Escreva aí: ninguém controla as mídias digitais. A democracia será e já está sendo devastada por ela, por seus grupos ativistas, seus hackers militantes e mercenários, seus bots competentes.

O ocorrido deve ser investigado, como tudo mais. Mas quem larga na frente nos ganhos são os que lucram com a desmoralização da Lava Jato e o crescimento do movimento Lula Livre. Voltamos à luta armada —agora digital.
Luiz Felipe Pondé

Brasil da nova tribo


Bolsonaro e Lula lucram com Moro ferido

Ter um ministro da Justiça suspeito de atentar contra a própria Justiça seria desconfortável para qualquer governante. Para Jair Bolsonaro, o episódio que animou os adversários é quase uma bênção, que realoca o debate para o campo simplista das paixões entre os pró e os contra a Lava-Jato. Um ambiente usado com sucesso na campanha, que dá ao presidente chances de voltar a ter nas mãos rédeas que andavam soltas. 


Estrela de primeira grandeza do governo, o ex-juiz Sérgio Moro provocava sentimentos antagônicos ao capitão e em sua turma.

Mais popular que o presidente, Moro vinha amargando derrotas patrocinadas pelo chefe. Perdeu nos decretos de posse e porte de armas, que ele pretendia mais brandos, na manutenção do Coaf, que voltou para o Ministério da Economia, e até na simples indicação de Ilona Szabó para uma suplência do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Seu pacote anticrime, enviado ao Congresso no início do ano, patina, e em prol dele o presidente jamais mexeu uma única palha.

Mas na semana em que o The Intercept revelou trechos nada republicanos das mensagens entre o ex-juiz e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, Bolsonaro se apressou em desfilar com Moro para cima e para baixo. Passearam de lancha juntos, vestiram a camisa do Flamengo no estádio Mané Garrincha, onde o capitão pode conferir o apoio ao paladino de Curitiba, traduzido em aplausos.

Nas redes, e também na mídia convencional, o agito da oposição, em especial do PT, canalizado para a ladainha do Lula Livre, ocupou espaços generosos, deixando em segundo plano as barbeiragens do governo, bipolar por natureza. Tão bipolar que conseguiu, por meio de declarações nada cordiais do ministro Paulo Guedes, transformar em derrota a vitória obtida com o relatório da reforma da Previdência na Câmara.

Na sexta-feira, Bolsonaro garantiu que a possibilidade de exonerar Moro é zero, colocando-se ao lado do herói ferido. Gestos que nenhum dos demais auxiliares saborearam. “Não houve maldade”, diz o presidente, que com a frase admite os pecados de seu ministro e a eles faz vistas grossas. Tudo teria sido feito em nome de expurgar o “câncer do Brasil, que é a corrupção”.

O tal dos fins a justificar os meios, princípio que já serviu a toda sorte de comportamentos espúrios. Petistas teriam roubado não para si, mas para o partido, a fim de garantir a permanência do “povo” no governo. Adhemar de Barros e depois Paulo Maluf roubavam, mas faziam. Tudo com apoio popular.

Nas contas do presidente, a defesa enfática ao ministro o coloca entre os bons, os que lutam contra a lama da corrupção. Aqueles que criticam o comportamento no mínimo aético do ex-juiz estariam no campo oposto. Repete a conhecida cartilha do nós x eles, utilíssima aos populistas de qualquer matiz ideológica e deletéria para o país.

O digladio entre lados não pode ofuscar o debate de fundo que tem de ser travado a partir das mensagens reveladas pelo The Intercept, que vão muito além da ilicitude do hackeamento, de Moro, Dallagnol ou Lula, que pode se achar mas não é o centro do mundo. São centenas de provas de roubalheira deslavada, milhões recuperados e outros tantos em processo de resgate, dentro e fora do país, condenações de gente graúda confirmadas em mais de uma instância.

Tanto Bolsonaro e sua oportuna verve pró-Moro quanto os que clamam pela nulidade de tudo para libertar Lula sabem que nada pode ser personalizado em um juiz. Mas cada parte, a seu modo, se aproveita dos rasgões na toga para costurar suas narrativas.

O país em farrapos que se dane.

Silêncio profundo

O presidente do Sindicato Rural de Rio Maria (PA), Carlos Cabral Pereira, foi assassinado no final da tarde de terça-feira passada, abatido com um tiro na cabeça quando voltava de moto para casa. Cabral é o terceiro sindicalista morto na cidade desde 1985. Todos perderam a vida em razão de questões fundiárias. Ele próprio já havia sido objeto de um atentado, em 1991, quando foi alvejado na perna. Rio Maria fica na região conhecida como Bico do Papagaio, que abrange o norte do Tocantins, o leste do Pará e o sudoeste do Maranhão, onde se acumulam histórias de violência no campo.


Apesar de ser parte de uma estatística macabra que comove o Brasil desde 1988, quando o seringueiro e sindicalista Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, no Acre, a morte de Cabral quase passou despercebida. Dos poderes constituídos, apenas o Ministério Público Federal se manifestou. Por dever de ofício, anunciou que vai acompanhar as investigações da morte do sindicalista. Não se ouviu uma palavra sequer do presidente da República ou de seus ministros da Justiça, da Agricultura e dos Direitos Humanos.
De Jair Bolsonaro não devia se esperar qualquer manifestação mesmo. O presidente defende um campo armado para que os proprietários possam defender suas terras a bala. Mas por que as ministras Damares Alves e Tereza Cristina não se manifestaram? Damares é ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e Tereza chefia a pasta da Agricultura. Também nada se ouviu de Sergio Moro. Talvez porque o ex-juiz estivesse no meio do seu inferno particular, que começou a arder no domingo com as revelações de seus diálogos com o procurador Deltan Dallagnol.

O Estado brasileiro sempre se manifestou em assassinatos de outros sindicalistas, líderes e ativistas rurais e religiosos, como o padre Josimo Tavares e a irmã Dorothy Stang. O governo mudou, o Estado mudou, tem outro caráter. Mas o que se verificou agora, com a morte de Carlos Cabral, é que ONGs também mudaram, assim como os partidos políticos que sempre se posicionaram a favor do sindicalismo rural e, obviamente, contra a violência no campo.

O PT praticamente ignorou o assassinato. Apenas o senador Paulo Rocha (PT-PA) foi à tribuna falar. Talvez porque seja paraense como o sindicalista morto. Mesmo assim, ele se referiu a dois fatos ocorridos no seu estado no mesmo dia. Em primeiro lugar, segundo o portal Senado Notícias, Rocha fez referência a uma ordem de despejo contra 212 famílias que ocupam fazendas em Eldorado dos Carajás. Só depois referiuse ao sindicalista morto. Talvez o silêncio do PT deva-se ao fato de Cabral ter apoiado Bolsonaro na eleição do ano passado.

De ONGs que apoiam trabalhadores rurais também pouco se ouviu nestes últimos dias. Pode ser que estas organizações não tenham dado a atenção que o caso merecia porque Carlos Cabral estava envolvido em uma ocupação ilegal das terras indígenas dos apyterewa, que também estão invadidas por outros grupos. Mas era uma ocupação coletiva, feita por trabalhadores sem espaço para plantar. Sua morte pode estar ligada a esta invasão.

Apesar de liderar trabalhadores sem-terra, somente o MST regional se manifestou lamentando a morte de Carlos Cabral em nota assinada pela “coordenação estadual” da organização no Pará. Não aparece nenhum nome para se associar ao do ruralista morto. Da mesma forma, nenhuma palavra se ouviu de João Pedro Stedile, o líder nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Outros tempos, outra orientação política.

Sete ruralistas foram assassinados na região de Rio Maria desde o início do ano por questões fundiárias. O silêncio em torno dessas mortes é quase profano.

Bastidores

Pelo que sei
o bobo daquela corte
é o rei.

A vitória (temporária) dos ladrões

A crise não é da democracia. A crise é do estado nacional e, como consequência, do modelo econômico que se apoia no ordenamento jurídico que o estado nacional garantia.

Falo do mundo, não do Brasil. O funcionamento do capitalismo (e a liberdade possível) depende da garantia do direito de propriedade. Foi esse o fundamento que caiu. Sem garantia da propriedade não se renova a capacidade do empreendedor, seja de que tamanho for, de financiar o desenvolvimento do seus próximos empreendimentos e a economia pára, o emprego desaparece, o salário míngua.

Hernando De Soto demonstra com dados objetivos no seu “O mistério do Capital: porque o capitalismo triunfou no Ocidente e falhou nos outros lugares”, que a principal causa da pobreza do Terceiro Mundo nem é cultural, nem de falta de espírito empreendedor, nem de diferença na quantidade de trabalho investido (e muito menos da disponibilidade ou não de recursos naturais), é a falta de garantia do direito de propriedade. É especialmente para os mais pobres, obrigados a “refugiar-se de legislações defeituosas na informalidade onde todo trabalho investido transforma-se em capital morto, que não pode ser transacionado senão num padrão arcaico”, que essa falha é mais funesta. “O pobre é quem mais precisa dessa garantia para poder apropriar-se do resultado da força de trabalho que investe, a única coisa que ele tem”.

De Soto lembra ainda que essa incerteza geral sobre o que é de quem só começou a ser revertida na Europa “favelão nacional” do século 18 em diante, a partir da revolução industrial, e mais tarde ainda nos Estados Unidos que, “na sua luta para fazer um território virgem converter-se numa nação levou a garantia da propriedade às últimas consequências”, o que explica o seu crescimento vertiginoso a partir da virada do século 19 para o 20, quando entregou a chave das decisões políticas a quem mais precisa dessa garantia. “O Terceiro Mundo é o que eles foram há 100, 200 anos. A verdade é que a legalidade é a exceção. A extra-legalidade sempre foi a norma. A constituição de sistemas integrados de propriedade no Ocidente é um fenômeno muito recente”.

Com a entrada em cena da internet fazendo desaparecer fronteiras num mundo onde a ordem legal plenamente estabelecida é a exceção, o primeiro e o mais formidável dos desenvolvimentos proporcionados pela informática foi o da capacidade de roubar.


Dentro e fora dos EUA as mega-empresas de trilhão de dólares são invariavelmente os grandes ladrões: o Google que rouba deus e o mundo com a inestimável contribuição dos roubados, o Facebook que compete com ele nisso e na venda de informação roubada na diuturna tocaia de cada passo e cada palavra trocada pelos seus usuários, a Amazon, latifundiária do comércio que mata concorrentes e explora todo servo da gleba que tenha algo para vender no planeta, e mais as suas contrafações chinesas…

A China, onde o estado patrocina o roubo planetário (de ideias, de patentes, de desenhos, de tudo), tornou-se imbatível e vai comprando o mundo. No Ocidente os ladrões privados ainda enfrentam algum nível de resistência do estado. Têm de bandear-se literalmente para dentro do “território livre” da China para se tornarem ladrões competitivos, como demonstrou Tim Cook, o verdadeiro artífice do gigantismo da Apple conquistado com a isca do supply chain que, uma vez agarrada a vítima, revela-se um esquema de exploração de trabalho vil padrão Foxconn.

Sem garantia da propriedade volta-se à Idade Média: é o fim da hegemonia do consumidor que “tinha sempre razão” (e principalmente escolha, que é o nome despido de poesia da liberdade), a morte do princípio antitruste, a concentração extrema da riqueza. A economia como um todo embarca no “efeito Jardim Europa”: cada vez menos gente comprando cada vez mais terrenos em incessantes “fusões e aquisições” até que sobrem só uns tantos castelos murados com os súditos subempregados e o crime à solta em volta, trocando trabalho, inovação e proteção por migalhas.

O embate cada vez mais irracional e furioso entre “direita” e “esquerda” é um eco do sofrimento que essa fissura do fundamento básico do sistema causa. O corre-corre sem saber pra onde no meio do terremoto no escuro. E vai puxado pela imprensa, uma das indústrias mais violentamente assoladas pelo pior lado das novas tecnologias.

Em pânico com o efeito da vitória esmagadora dos ladrões; nas mãos de um número minguante de patrões; inseguras quanto às causas reais da sua desgraça, a primeira reação das pessoas e das empresas é correr para dentro das muralhas dos castelos em busca de proteção.

Sair é que são elas. Mas desta vez, espera-se, não levará mil anos como da anterior.

US$ 4.7 bi, quase tanto quanto os US$ 5.1 bi de todo o resto da indústria da informação dos Estados Unidos somada, foi quanto o Google faturou sozinho em publicidade vendida em cima do noticiário que ele não produz segundo um estudo da News Mídia Alliance que representa mais de 2000 órgãos de informação americanos. O cálculo é, aliás, conservador porque não inclui o que ele ganha vendendo a espionagem dos hábitos de consumo de informação dos seus clientes, o filé mais caro do seu açougue.

Acovardados todos, só agora os donos do que o Google e a meia dúzia de gigantes da praça colhem sem ter plantado começam a reagir. Está no congresso dos EUA, depois de várias iniciativas da União Europeia com objetivos semelhantes, a Lei de Competição e Preservação do Jornalismo, equipamento imprescindível da democracia, que suspende por quatro anos os dispositivos contra a cartelização da legislação antitruste para permitir aos grupos de comunicação negociar conjuntamente com eles a exigência de pagamento pela venda dos seus produtos. A lei tem apoio de democratas e republicanos nas duas casas do Congresso, além do Departamento de Justiça.

É o começo de uma longa marcha que desta vez terá de ser levada pela comunidade humana como um todo, de modo que acabará por arrastar também a nós, como sempre, quae sera tamen…

Paisagem brasileira

 Entrada da Baía de Guanabara, tomada de Niterói, Mauro Ferreira 

Desinteligência generalizada

Não são apenas os devotos das seitas extremistas, à esquerda e à direita, que limitam sua visão de mundo às mentiras, distorções e meias-verdades cínicas que leem nas redes sociais. A histeria irresponsável parece ter capturado também aqueles dos quais se esperam equilíbrio e sobriedade na formação de opinião pública.

Quase todos aparentemente estão se deixando pautar pela gritaria que tão bem notabiliza essa forma de comunicação instantânea, que na prática dispensa a reflexão. Nas redes, mesmo bem preparados formadores de opinião vêm tomando como expressão da verdade tudo aquilo que para eles faz sentido, sem se perguntarem se, afinal, aquilo que se informa é um fato ou uma rematada mentira.

A verdade, portanto, vem perdendo importância até para quem vive dela. Um exemplo é a imprensa, que não raro repercute de maneira irrefletida os debates produzidos a partir de informações distorcidas ou simplesmente falsas. É natural que, algumas vezes, as publicações, no afã de registrar tudo o que pareça ter caráter noticioso, acabem por dar guarida a versões dos fatos que, com o tempo, se provam mentirosas.


O que tem acontecido, porém, é que os fatos se tornaram quase irreconhecíveis ante as certezas ideológicas alimentadas pela acachapante onipresença das redes sociais na vida de quase todos os brasileiros. Num cenário desses, todo aquele que ousar questionar as convicções cristalizadas de parte a parte, mesmo munido de fatos incontestáveis e de argumentos racionais – ou até por causa disso –, será tratado como um ser exótico, uma espécie de rebelde deslocado no mundo dos que, orgulhosamente, se julgam do “lado certo”.

Assim, a influência das redes sociais, que é inegavelmente grande, tornou-se uma explicação mágica para tudo – e para muita gente supostamente bem pensante nada do que acontece fora delas parece ter valor. Baseando-se mais em palpite do que em elementos concretos, muitos atribuem, por exemplo, a surpreendente eleição do presidente Jair Bolsonaro ao seu domínio dessas redes, nas quais teria construído sua candidatura muito antes de a campanha começar. Também se creditam às redes sociais as mobilizações contra o governo da presidente Dilma Rousseff, que acabaram resultando em seu impeachment. Com toda essa suposta capacidade, quase sobrenatural, de entronizar e decapitar reis, as redes sociais tornaram-se uma espécie de fetiche dos formadores de opinião, que há algum tempo veem nelas a grande arena onde se disputa o poder de determinar o que é a verdade.

As redes sociais, até onde é possível concluir, são o lugar onde narrativas se chocam não em busca do esclarecimento, como acontece em sociedades maduras, mas para fazer triunfar a mistificação que favoreça este ou aquele ponto de vista, e onde o consenso só ocorre entre os que já estão de acordo entre si, por razões ideológicas.

É claro que nada do que deriva desse ambiente de franca hostilidade pode ser tomado como base para orientar políticas públicas e muito menos para consolidar as opiniões a partir das quais a sociedade se posiciona acerca dos grandes problemas nacionais. Ao contrário, o debate nacional naturalmente descamba para o terreno da ficção, quando não para o da mais vulgar briga de rua, na qual tem razão aquele que termina a refrega em pé.

No livro O Jornalismo como Gênero Literário, Alceu Amoroso Lima diz que o jornalismo, sempre que “envenena a opinião pública, fanatiza-a ou a informa mal, está falhando à sua finalidade”. O autor, que escreveu em 1958, decerto não imaginava a revolução da comunicação digital que ora se atravessa, mas o princípio ali exposto está mais atual do que nunca.

O jornalismo que se deixa submeter à balbúrdia irracional das redes sociais não cumpre sua função, que é a de dar aos cidadãos condições de refletir de maneira efetiva sobre o mundo que os cerca e sobre os problemas que os afetam. Ao contrário, os formadores de opinião que tomam como legítima e digna de consideração a gritaria dos fanáticos, conferindo-lhe ares de autenticidade, estimulam a consolidação do facciosismo que, no limite, inviabiliza os consensos, sem os quais a democracia simplesmente não se realiza. 

Atropelamento geral

A inversão de valores que estamos vivendo é de deixar qualquer pessoa de bem completamente estarrecida.
As pessoas que trabalham para fazer com que os criminosos paguem por seus crimes, são condenadas. Enquanto isso, o sigilo (da fonte) vale para proteger a identidade de criminosos audazes, mas o sigilo (das comunicações) pode ser atropelado se for para expor autoridades altamente respeitadas ao juízo (leigo) da opinião pública. É isso mesmo ou eu perdi alguma parte dessa história?!?

Precisamos recuperar a inteligência como método

Gostei muito de artigo do cineasta José Padilha, publicado há poucos dias, na “Folha de S.Paulo”. Trata-se de um texto raro, uma fértil desafinada no coro dos contentes com a polarização selvagem na política brasileira. Nele, Padilha afirma sobretudo que não é por concordar com alguma consideração de um dos lados que ele está necessariamente de acordo com todo o resto do que esse lado proclama.


E dá exemplos, como estes a seguir. “Nada impede que alguém admire o combate do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) às milícias, que considere importante o ataque à roubalheira de Lula e companhia, que seja a favor da reforma da Previdência, que ache que Moro errou feio ao se associar a Bolsonaro, que defenda a liberdade sexual e a liberação da maconha (...) e que seja a favor da prisão após condenação em segunda instância. Uma pessoa assim, porém, não cabe nem no petismo nem no bolsonarismo”. Há muito tempo que andávamos precisando de alguém que pensasse e falasse assim.

Talvez devamos perdoar os políticos pelas simplificações que produzem em seus discursos. Afinal de contas, eles precisam agradar a seus eleitores, fazer por merecer o voto deles. E merecer o voto deles, aqui, significa aproximar-se de seu pensamento para poder representá-los. É, portanto, natural que os políticos digam o que seus eleitores gostariam de ouvir; que, antes de falar, eles consultem as aspirações do povo que pretendem conquistar. Mas um intelectual livre, um cidadão independente, não pode ceder a essa circunstância — ele tem que dizer o que pensa ser a verdade, sem se preocupar com a adesão de quem quer que seja, por concordância com as ideias ou astúcia na proposição.

O intelectual militante, o pensador aparelhado, diz o que seu partido afirma pensar. E o que seu partido afirma pensar é um conjunto de ideias nem sempre fiel ao que considera ser a verdade, na hipótese de existir uma verdade definitiva. Não passa de um conjunto de ideias conveniente aos interesses de um grupo político que pretende tomar o poder. E não é apenas a tomada do poder que muda a história e, por extensão, o bem-estar da humanidade envolvida.

Como muitos outros brasileiros, há seis meses venho tentando entender o novo governo do país, acho que para entender melhor para onde estamos indo. Não votei em Jair Bolsonaro e escrevi,em agosto de 2018, bem antes das eleições, que “chega de folclore em torno do capitão-candidato, de considerá-lo uma anedota passageira, e compreender que, por trás do fenômeno, existe uma tendência de comportamento que corresponde ao desejo de uma parte da população”. Mas quem elegeu Bolsonaro não foi apenas uma simples parte, mas a grande maioria da população. Uma vitória democrática que é preciso respeitar, sem cometer o erro de sair por aí xingando a mãe do eleito, anunciando com ódio que nada do que ele fizer vai dar certo. Mesmo que fiquemos na oposição.

Quando, em 1964, os militares tomaram o poder através de um golpe de força, era como se acordássemos numa manhã solar de abril com a polícia ao pé de nossa cama. Não havia o que fazer. Agora, não. Agora discutíamos com quem não estávamos de acordo (em alguns casos, com os dois lados polarizados) e a população acabou por escolhê-los. É preciso entender porque, o que tento fazer nestes primeiros meses de governo, com a boa vontade que o futuro do Brasil exige.

Mas se, durante a campanha, o candidato ensinava à menina, com os dedos da mão, o gesto de empunhar uma arma, como presidente libera as armas de fogo, radares no trânsito, cadeirinha para crianças nos carros, agrotóxicos que envenenam a comida, um projeto anticrime que incentiva a polícia a matar. Assim como autoriza ruralistas a liquidar quem ameace sua propriedade, pouco se importa com a defesa do meio ambiente que protege a vida da população. E essas medidas vão fazendo crescer o potencial de brasileiros mortos regularmente, sem causa.

Aí lembro que o psiquiatra e escritor austríaco Viktor Frankl não se importava, nem um pouco, com a clássica frustração sexual freudiana como origem de nossos males. Para ele, o que provoca a insatisfação da humanidade é a falta de sentido para a existência. Pensando no Brasil, talvez tivesse razão.

Naquele artigo do ano passado, terminávamos assim: “E porque não entendem, nem fazem questão de entender o que se passa, elegem a razão e o conhecimento como inimigos, põem a inteligência fora de moda”. Para início de qualquer conversa, precisamos recuperar a inteligência como método, saudando a possibilidade de a verdade estar entre várias e distintas formas de refletir. Descobrir que ser radical é apenas tomar cada coisa pela sua raiz.

Sob Bolsonaro,governo vira inquisição ideológica

No governo de Jair Bolsonaro, a ideologia virou um outro nome para inquisição. Sob o capitão, todas as perversões são admitidas, exceto as recaídas ideológicas. Em uma semana, ceifaram-se três cabeças.

Joaquim Levy empregou no BNDES um ex-assessor de governo petista. Foi carbonizado em praça pública.


O general Santos Cruz ousou discordar do guru Olavo de Carvalho. Foi dissolvido em banho-maria e despejado da Secretaria de Governo da Presidência.

O general Juarez Aparecido de Paula Cunha posou para fotos ao lado de deputados do PT e do PSOL. Foi mastigado num café da manhã em que Bolsonaro serviu sua demissão aos repórteres.

Implacável com subordinados que desafiam seus fetiches ideológicos, Bolsonaro é leniente com todo tipo de peversão. Dos 22 ministros, meia dúzia ostenta algum tipo de suspeição. A Bic do presidente dá de ombros.

O rol de encrencados inclui, por exemplo, Ricardo Salles (Meio Ambiente), condenado em primeira instância por improbidade administrativa.

Inclui também Henrique Mandetta (Saúde), denunciado pelo Ministério Público por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois.

Há ainda Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), investigado pela PF num caso de desvio de verbas públicas por meio de candidaturas de laranjas.

O caixa dois confesso tampouco impede que Onyx Lorenzoni seja mantido na chefia da Casa Civil da Presidência da República, a salvo da Bic do capitão —uma caneta guiada pelo viés ideológico do dono.

No tribunal eclesiástico da igrejinha em que se converteu o governo Bolsonaro, todo pecado será perdoado, exceto os desvios à esquerda. Por ideologia, tudo pode acabar na fogueira —da amizade de um general respeitado como Santos Cruz à ingenuidade de um economista como Levy que, tendo servido aos governos de Lula e Dilma, acreditou nos superpoderes de Paulo Guedes.
Josias de Souza