quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O apocalipse, segundo Donald Trump

Todos os países são ficções, mas alguns são mais fictícios do que outros. Quero dizer que todos os países são construídos a partir de uma história: pode ser uma história que a sociedade assume como sua, para além das divisões internas – liberdade, igualdade e fraternidade – ou uma história que funcionou durante séculos e depois entrou em crise repentina, como a da União Europeia. História de impérios, ou uma história que parte das nossas aspirações, mesmo que a realidade não as justifique.

Entre todas as ficções do Ocidente, a dos Estados Unidos foi talvez a mais arriscada, porque tentou construir uma identidade monolítica numa das sociedades menos monolíticas do planeta: durante décadas a História foi estudada em escolas com um livro intitulado “The American Experiment”. Clichês entram em cena: “o sonho americano”, o “caldeirão de culturas”, “a maior nação da Terra”. Todos os políticos nos Estados Unidos pronunciam estas últimas palavras sem o menor sinal de modéstia ou ironia: fazê-lo – e também, de forma implausível, acreditar nelas – é um requisito para aspirar a qualquer cargo público.

No seu discurso mais famoso, Martin Luther King ansiava por uma nação que “vivesse de acordo com o verdadeiro significado do seu credo”. O que isto significa? Isso significa que, mais do que outras daquelas construções fictícias que chamamos de países, o norte-americano está constantemente se fazendo, definindo-se como um eterno adolescente, sempre dependendo do seu próprio conceito de si mesmo. Era isso que eu pensava há alguns dias, antes do desastre eleitoral, quando Kamala Harris falou num dos seus últimos discursos sobre a diferença entre a sua proposta e a de Trump. Tendo a Casa Branca como pano de fundo, no mesmo lugar do universo a partir do qual Trump apelou a uma insurreição violenta diante dos olhos de todos, Harris disse que seu oponente passou uma década tentando dividir os cidadãos e semeando o medo entre eles. “É ele”, disse ela. “Mas esta noite, América, venho dizer: não somos assim.”

Dias depois, 73 milhões de votos – bem como uma vitória republicana no Senado e provavelmente na Câmara – disseram a Harris que talvez sejam: que isto, seja o que for, é quem eles são. E a crise de identidade dos Estados Unidos levará muitos anos, muito mais do que a presidência de Trump, para chegar a uma certa conclusão sobre o que aconteceu para que um personagem do seu calibre fosse eleito pela segunda vez, mas a verdade profunda é inevitável: Trump criou uma história baseada em ressentimento, queixa, ódio, e milhões de eleitores a aceitaram.

Apesar do que se lê nos bonés vermelhos de seus eleitores, sua ficção não era sobre o retorno da América a um passado maior, mas sobre se defender de um presente horrível: um presente distópico ao lado do qual “Blade Runner” parece uma cena da “Barbie” , um presente de horror onde hordas de estrangeiros libertados das prisões e asilos do Terceiro Mundo estão a invadir as nossas cidades, a violar as nossas mulheres, a comer nossos animais de estimação e a envenenar o sangue do nosso país, e onde o “inimigo interior” está a destruir as nossas liberdades, abortando crianças depois de nascerem e mudando de sexo à força quando vão para a escola.

Devo esclarecer: nem uma palavra que acabei de escrever é exagero ou caricatura. Estas são as palavras de Trump, ditas em público e diante das câmaras, aplaudidas veementemente pelo seu povo. E parece-me que não foi dito o suficiente sobre a grande lição que a vitória de Trump deixa aos aspirantes a autoritários em todo o mundo: não existe ficção tão extrema, nenhuma mentira tão grande, que não possa ser aceita pela sociedade. São necessários apenas dois ingredientes: por um lado, uma cidadania vulnerável, assustada, desinformada ou crédula; de outro, um líder cujos escrúpulos são inversamente proporcionais ao seu desespero.

É assim que é. Para Trump, regressar ao poder não foi uma questão de ganância, mas de sobrevivência: ser presidente era a única forma de não acabar na prisão vestido com um macacão da cor da sua maquiagem. A sua longa vida como violador de todas as regras – e de muitas das leis – estava a apanhá-lo. O eterno assediador sexual que o traficante de crianças Jeffrey Epstein considerava o seu melhor amigo, aquele que foi perseguido pelas acusações credíveis de mais de 20 mulheres, aquele que se gabou do seu assédio numa conversa privada impossível de ouvir sem nojo, já foi condenado a pagar cerca de 90 milhões de dólares por difamar um dos queixosos, e essa condenação civil abre a porta à consideração criminal dos seus vários excessos. O empresário fraudulento, que passou a vida a trapacear, que ainda não cumpriu a tradição presidencial de publicar a sua declaração de rendimentos, que se orgulhava de não pagar os impostos devidos, já foi condenado por 34 crimes e aguarda atualmente sentença. A pena, no caso de qualquer outro cidadão, seria de prisão; no caso de Trump, nunca saberemos. Porque a sentença não virá: um dos primeiros atos do seu mandato será perdoar-se. Mas ele já nos tinha anunciado que só seria ditador no primeiro dia.

Seus delitos são tantos que é difícil acompanhar: nunca na história dos Estados Unidos um presidente teve tal histórico de mau comportamento, ou comportamento antiético ou crimes comprovados, e nem pela opinião pública ou pela mídia – que em qualquer caso não é confiável, como sabemos: eles são “inimigos do povo”, são “notícias falsas” – mas pela justiça. Depois de cada um dos seus muitos escândalos, o anti-trumpismo foi rápido a declarar a sua morte política, e sempre esteve errado. O superpoder de Trump é a sua incapacidade de sentir vergonha: tal como uma morte é uma tragédia, mas um milhão de mortes é uma estatística, Trump descobriu que uma mentira pode destruir um político – ela fez isso com Nixon, quase fez isso com Clinton – mas dezenas de milhares de mentiras repetidas interminavelmente o levarão à Casa Branca. Das muitas características dolorosas da vitória de Trump, esta é talvez a mais pitoresca e ao mesmo tempo a mais perigosa: a capacidade implausível não só de mentir, mas de sustentar a mentira mesmo quando o mundo inteiro está a ver a verdade.

Donald Trump vendeu uma ficção distópica – não apocalíptica – para obter os votos daqueles que se sentem inseguros ou ameaçados há décadas por uma economia que não cuida deles, por guerras culturais, por elites globalizadas. O assustador é que agora, para governar, ele terá que manter essa ficção. Em abril do ano passado escrevi que deveria ter disparado todos os alarmes. Trump pronunciou-se perante um grupo de conservadores, incluindo alguns dos seus cúmplices mais fanáticos e até mesmo os seus correspondentes no novo mundo da extrema direita transnacional: Bolsonaro, por exemplo. “Em 2016, declarei que sou a sua voz”, disse-lhes Trump. “Hoje acrescento que sou seu guerreiro, sou sua justiça. E para aqueles que sofreram injustiças e traições, eu sou a sua vingança. Eu sou sua vingança.

O que foi anunciado começará em janeiro. Talvez tenhamos direito a um resfriado.
Juan Gabriel Vásquez

Pensamento do Dia

 


Como carências na infância afetam a renda futura

Resolver carências básicas das crianças brasileiras mais pobres, como dar óculos às que têm problemas de visão ou levar saneamento às casas onde moram, melhora não só a sua vida imediata, mas também sua renda na idade adulta e o potencial de o país como um todo se desenvolver.

Isso é o que apontam duas pesquisas divulgadas em outubro. Uma mediu qual é o impacto de não ter óculos nos anos escolares na futura vida profissional, e outra investigou a associação entre falta de saneamento e expectativa de renda.

Ambas mostram que priorizar o cuidado na infância traz benefícios individuais e coletivos no longo prazo, com custo baixo, e comprovam que deixar as crianças desatendidas prejudica seu desenvolvimento cerebral e físico e pode fadá-las a uma vida inteira de dificuldades.


Crucial, o acesso a óculos para crianças com miopia, astigmatismo ou hipermetropia é deficiente no Brasil. Há problemas para marcar consulta com oftalmologistas do Sistema Único de Saúde (SUS) em muitas cidades – e, mesmo que haja o diagnóstico, não há uma política pública nacional que ofereça óculos gratuitos às famílias mais pobres. Sem enxergar bem, as crianças não conseguem ler corretamente lousas e livros e ficam para trás no aprendizado.

Uma pesquisa da Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira (IAPB) estimou qual é o efeito de fornecer óculos a crianças com problemas de visão a partir dos 5 anos de idade. O resultado: aquelas que recebem óculos terão ao longo da vida uma renda em média 78% superior às que não receberam.

Para chegar a esse resultado, a IAPB primeiro analisou os resultados de quatro grandes ensaios clínicos realizados na China com participantes escolhidos de forma aleatória, que coletaram dados sobre o impacto no aprendizado de fornecer óculos a crianças com problemas de visão. A conclusão foi de que uma criança sem a visão corrigida aprende cerca de metade do que aprendem as demais.

Depois, o estudo calculou estimativas para diversos países, tendo em vista as condições econômicas de cada um deles. No Brasil, há cerca de 380 mil crianças de 5 a 11 anos e 410 mil adolescentes de 12 a 17 anos com problemas de visão não corrigidos, segundo o estudo global Global Burden of Disease de 2021. Se essas crianças recebessem óculos, o Brasil seria o terceiro país mais beneficiado do mundo, atrás de China e Índia.

Uma maior escolaridade geral se reflete também em crescimento econômico. No cenário de todas as crianças com os problemas de visão corrigidos, o Brasil teria um incremento anual no seu Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 21,9 bilhões, estimou a pesquisa.

Ir para a escola sem enxergar direito a lousa era um problema diário para Dhavi Pietro da Silva, de 12 anos, morador de Campina Grande, na Paraíba. Com astigmatismo e miopia, e sem condições de realizar exames e comprar óculos, a dificuldade de aprendizado se impunha.

"Minha visão começou a embaçar, e eu forçava muito a vista. Comecei a sentar mais na frente, mas mesmo assim não conseguia enxergar o quadro. Era complicado para fazer as atividades", disse ele à DW.

No ano passado, Dhavi Pietro participou de um projeto de sua cidade que coletava cartas das crianças para o Papai Noel, e uma ótica local atendeu ao pedido e doou um exame e óculos para ele. "Mudou muito, mesmo sentando em qualquer canto da sala conseguia enxergar o quadro, as notas melhoraram, minha vida melhorou", afirma.

"Queria que outras crianças pudessem ter o mesmo acesso que tive", diz. Mas ele sabe do risco de voltar a ter problemas, e diz que sua mãe tem dificuldade para agendar consulta com oftalmologista no SUS para fazer os exames periódicos.

Caio Abujamra, presidente do Instituto Suel Abujamra, que oferece atendimento oftalmológico a pessoas em situação de vulnerabilidade e é parceiro da IAPB, confirma à DW que faltam oftalmologistas do SUS em diversas áreas do país.

Mesmo quando há um profissional disponível, muitos pais não sabem da importância de levar os filhos pequenos para uma consulta. "Podem achar que a criança tem ansiedade, TDAH, quando às vezes ela só não está prestando atenção à aula porque não está conseguindo enxergar e não tem óculos", diz.

Associado a outras duas organizações, o instituto firmou uma parceria com a cidade de São Paulo para examinar as 420 mil crianças do ensino fundamental da cidade e fornecer gratuitamente óculos às que precisam – o mutirão começou em fevereiro e deve ser concluído em junho de 2025.

"Não é o olho que enxerga, é o cérebro, o olho é só uma ferramenta, mas temos que aprender a usá-lo. E temos mais aptidão para ensinar o cérebro até os 7 anos de idade, por isso é crucial fazer a triagem cedo. Tem um impacto para o resto da vida", afirma Abujamra.

Outra carência durante a infância e a adolescência que afeta a renda na vida adulta é a falta de saneamento básico. Na primeira infância, isso expõe os bebês a mais casos de diarreias e outras doenças transmitidas pela água ou pela proximidade com o lixo, impactando seu desenvolvimento físico e cognitivo. Mais tarde, surgem também os problemas de saúde bucal, que causarão novos problemas e afastamentos da escola.

Um estudo encomendado pelo Instituto Trata Brasil mediu qual é o atraso escolar associado à falta de esgoto, água tratada e banheiro, a partir de dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que a cada dois anos aplica testes e questionários a estudantes da rede pública e privada. A pesquisa concluiu que, ao final do ensino médio, um jovem que mora em local sem saneamento básico terá uma defasagem escolar de 1,8 ano em relação a um jovem com acesso ao saneamento – o que, por si só, levaria a uma queda de 12,7% na sua remuneração futura.

Com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estudo também estimou que, entre dois jovens de 19 anos com o mesmo gênero, raça e área de residência, o que mora numa casa sem saneamento tem renda média mensal 33,4% inferior ao que dispõe desses serviços. A pesquisa então projetou que a falta de saneamento é associada a uma renda 46,1% menor na vida adulta.

A partir de uma estimativa matemática, a pesquisa conclui que a renda média de um jovem de 19 anos de idade sem saneamento ao longo de 35 anos de vida profissional será R$ 126 mil menor do que a de um com saneamento – valor suficiente para dar entrada num imóvel, por exemplo.

A advogada Isabela Minelli, do Instituto Alana, lembra que saneamento básico envolve, além de água tratada e coleta de esgoto, o manejo de resíduos sólidos e a drenagem pluvial – e está associado a outras carências. E cita a chamada Equação Heckman, do economista James Heckman, Nobel de Economia em 2000: "A cada dólar investido na primeira infância, sete dólares retornam para a sociedade, por exemplo com redução de gastos médicos, menor índice de evasão escolar e violência."

Um dos maiores pesquisadores brasileiros que se dedica à estudar a relação entre infância e desenvolvimento é Naercio Menezes, professor da Cátedra Ruth Cardoso do Insper e membro do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI).

Ele diz que a ciência vem apresentando seguidas evidências de que uma criança que vive em condições ideais na primeira infância – com estímulo familiar, renda suficiente para a compra de alimentos e roupas e um ambiente sem violência – irá se desenvolver melhor e mais rapidamente, com efeitos cumulativos ao longo da vida. Ela terá melhor educação, maior probabilidade de entrar na faculdade ou abrir um negócio, e maior produtividade e renda futura.

Menezes está conduzindo com o Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI) uma pesquisa de longo prazo para entender melhor como o desenvolvimento infantil afeta o aprendizado, que pretende acompanhar 2 mil crianças nascidas no segundo semestre do ano passado em Ribeirão Preto por toda a sua vida, aplicando testes periódicos sobre diversas variáveis.

"O baixo aprendizado é um dos principais problemas do Brasil. Não conseguimos melhorar a posição dos jovens, um quarto deles não estuda nem trabalha, é uma juventude com pouca esperança no mercado de trabalho e no futuro. Queremos entender como o desenvolvimento infantil está relacionado com essas questões", afirma.

Os resultados dessa pesquisa ainda vão demorar para sair, mas a orientação já é clara: "Os recursos gastos com políticas públicas na primeira infância têm um retorno muito grande para a sociedade, pois isso evita uma série de problemas no futuro."

A parolagem do capitão Derrite

Em menos de uma semana, o aparelho de segurança de São Paulo mostrou seu rosto violento e poderoso para baixo, inepto e sonolento para cima.

Aos fatos.

Na terça-feira da semana passada, o menino Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, foi baleado no Morro São Bento, em Santos. Segundo a Polícia Militar, o tiro “provavelmente” partiu de um PM. Leonel, pai de Ryan, havia sido um dos 56 mortos deixados pela Operação Verão há alguns meses.

Ryan morreu na quarta-feira. Na quinta, um pelotão de PMs fardados e armados para um combate apareceu no cemitério onde a criança era velada.

Na sexta-feira, Antônio Vinícius Lopes Gritzbach — um operador da caixa do Primeiro Comando da Capital (PCC) que vinha colaborando com o Ministério Público — foi fuzilado na área de desembarque do aeroporto de Guarulhos. Uma gravação informa que o PCC havia colocado sua cabeça a prêmio (R$ 3 milhões). Os assassinos dispararam dezenas de tiros de fuzil, ferindo duas pessoas e matando um motorista que trabalhava no aeroporto.


Nas palavras do secretário de Segurança, Guilherme Derrite, Gritzbach era um criminoso. Havia recusado a proteção oferecida pelo Ministério Público, pois contava com sua própria segurança. Ela era formada por quatro PMs. E cadê a escolta (privada) do “criminoso”? Escoltavam um automóvel parado, que, segundo eles, tinha defeito. Derrite revelou que os policiais vinham sendo investigados havia um mês. O tempo poderá esclarecer por que se precisa de mais de 48 horas para concluir que um PM trabalha na escolta de um “criminoso”.

Ao chegar ao aeroporto, Gritzbach caiu numa armadilha montada por outras pessoas. Quem não se lembra da execução de Sonny Corleone (James Caan no filme da trama emotiva de Mario Puzo)? Os assassinos são coadjuvantes. Gritzbach denunciava a hierarquia do PCC e suas conexões com policiais corruptos.

O PCC é uma das maiores organizações criminosas em atividade no país. Segundo o Ministério da Justiça, elas são pelo menos 88. É talvez a maior, com âmbito nacional e braços em atividades legítimas. Gritzbach operava no mercado imobiliário.

Os doutores discutiram se e como a Polícia Federal entraria no caso. Na segunda-feira, triunfante, o capitão Derrite anunciou que foi criada uma força-tarefa. Com a PF, para chegar aos bandidos. Maldita expressão, designa o truque pelo qual se exibe força e não se conclui a tarefa.

Como os mordomos, o PCC é o primeiro suspeito, mas há ainda o segundo e o terceiro, todos parceiros. São os incomodados pelas delações. Gritzbach havia denunciado policiais de dois departamentos e de duas delegacias. Está tudo registrado, em depoimentos e em áudios. Basta puxar os fios.

Pelo espetáculo, ao gosto das quadrilhas, o fuzilamento de Gritzbach demarcou autoridade e sinalizou o poder sobre a vida de quem pensa em falar. Para os cabeças dessas organizações, a ciranda de doutores faz parte de um teatro.

É uma polícia que mata em bairros pobres e, para que ninguém ouse reclamar, constrange velórios. Às vezes investiga ilustres conexões, mas, quando alguém fala (quase sempre, o que se sabe), elas vão lá, matam e assistem à criação de uma força-tarefa.
Elio Gaspari

Vitória significa rejeição do liberalismo clássico e inaugura nova era nos EUA e no mundo

A vitória esmagadora de Donald Trump e do Partido Republicano no último dia 5 levará a grandes mudanças em áreas importantes na política dos Estados Unidos, desde a imigração até a Ucrânia. Mas o significado da eleição vai muito além dessas questões específicas e representa uma rejeição decisiva dos eleitores americanos ao liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma "sociedade livre" evoluiu desde os anos 1980.

Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, era fácil acreditar que esse evento era uma aberração. Ele estava concorrendo contra uma oponente fraca que não o levava a sério e, de qualquer forma, Trump não venceu no voto popular. Quando Biden conquistou a Casa Branca quatro anos depois, parecia que as coisas tinham voltado ao normal após uma desastrosa Presidência de um mandato só.

Após a votação do dia 5, agora parece que a anomalia foi a Presidência de Biden, e que Trump está inaugurando uma nova era na política dos EUA e talvez no mundo como um todo. Os americanos votaram nele com pleno conhecimento de quem Trump era e o que ele representava. Não só ele ganhou a maioria dos votos e todos os estados-pêndulo, mas os republicanos retomaram o Senado e parecem que vão manter a maioria da Câmara dos Representantes. Dada a sua já existente dominância na Suprema Corte, eles agora estão prontos para controlar todos os Três Poderes do governo.


Mas qual é a natureza desta nova fase da história americana?

O liberalismo clássico é uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos.

Mas, ao longo do último meio século, esse impulso básico sofreu duas grandes distorções. A primeira foi a ascensão do neoliberalismo, uma doutrina econômica que canonizou os mercados e reduziu a capacidade dos governos de proteger aqueles prejudicados por mudanças econômicas. O mundo ficou muito mais rico ao todo, enquanto a classe trabalhadora perdeu empregos e oportunidades. O poder se deslocou dos lugares onde nasceu a Revolução Industrial para a Ásia e outras partes do mundo em desenvolvimento.

A segunda distorção foi a ascensão do identitarismo ou do que se poderia chamar de liberalismo "woke" (forma como é chamado o discurso de pautas identitárias nos EUA), em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins. O poder do Estado foi cada vez mais usado não a serviço da justiça imparcial, mas sim para promover resultados sociais específicos para esses grupos.

Enquanto isso, os mercados de trabalho estavam mudando para uma economia da informação. Em um mundo em que a maioria dos trabalhadores se senta em frente a uma tela de computador em vez de levantar objetos pesados do chão da fábrica, as mulheres têm uma posição mais igualitária. Isso transformou o poder dentro das famílias e levou à percepção de uma celebração aparentemente constante das conquistas femininas.

A ascensão desses entendimentos distorcidos a respeito do que é o liberalismo impulsionou uma grande mudança na base social do poder político. A classe trabalhadora sentiu que os partidos políticos de esquerda não estavam mais defendendo seus interesses e começou a votar em partidos de direita.

Assim, o Partido Democrata perdeu o contato com sua base da classe trabalhadora e se tornou um partido dominado por profissionais urbanos escolarizados. Os trabalhadores escolheram votar nos republicanos. Na Europa, eleitores do partido comunista na França e na Itália desertaram para Marine Le Pen e Giorgia Meloni.

Todos esses grupos estavam insatisfeitos com um sistema de livre comércio que eliminou seus meios de subsistência, ao mesmo tempo em que criou uma nova classe de super-ricos, e também estavam insatisfeitos com partidos progressistas que aparentemente se importavam mais com estrangeiros e o meio ambiente do que com sua própria condição econômica.

Essas grandes mudanças sociológicas foram refletidas nos padrões de votação na terça-feira. A vitória republicana foi construída em torno de eleitores brancos da classe trabalhadora, mas Trump conseguiu atrair significativamente mais eleitores negros e hispânicos em comparação com a eleição de 2020. Isso foi especialmente verdadeiro para os homens dentro desses grupos. Para eles, a classe importava mais do que raça ou etnia. Não há razão particular para que um latino da classe trabalhadora, por exemplo, deva se sentir particularmente atraído por um liberalismo woke que favorece imigrantes recentes e se concentra em avançar os interesses das mulheres.

Também está claro que a grande maioria dos eleitores da classe trabalhadora simplesmente não se importava com a ameaça à ordem liberal, tanto doméstica quanto internacional, representada por Trump.

Donald Trump não quer apenas reverter o neoliberalismo e o liberalismo woke, mas é uma grande ameaça ao próprio liberalismo clássico. Essa ameaça é visível em várias questões políticas; uma nova Presidência de Trump não se parecerá em nada com seu primeiro mandato. A verdadeira questão neste ponto não é se suas intenções são malignas, mas sim sua capacidade de verdadeiramente cumprir o que ameaça.

Muitos eleitores simplesmente não levam sua retórica a sério, enquanto republicanos tradicionais argumentam que os freios e contrapesos do sistema americano o impedirão de fazer o pior. Isso é um erro: devemos levar suas intenções declaradas muito a sério.

Trump é um protecionista autoproclamado, que diz que tarifa é a palavra mais bonita da língua inglesa. Ele propôs tarifas de 10% ou 20% contra todos os bens produzidos no exterior, por nações amigas ou inimigas, e não precisa do aval do Congresso para fazê-lo.

Como um grande número de economistas apontou, esse nível de protecionismo terá efeitos extremamente negativos sobre a inflação, produtividade e emprego. Será extremamente prejudicial para as cadeias de suprimentos, o que levará os produtores domésticos a solicitar isenções. Isso então proporciona a oportunidade para altos níveis de corrupção e favoritismo, à medida que as empresas correm para agradar o presidente.

Tarifas nesse nível também convidam a retaliações igualmente massivas por outros países, criando uma situação em que o comércio (e, portanto, a renda) colapsa. Talvez Trump recue diante disso; ele também pode responder como a ex-presidente argentina Cristina Kirchner, corrompendo a agência estatística que reporta as más notícias econômicas.

Com relação à imigração, Trump não quer mais simplesmente fechar a fronteira; ele quer deportar o máximo possível dos 11 milhões de imigrantes em situação irregular já no país. Essa é uma tarefa administrativa tão grande que exigirá anos de investimento na infraestrutura necessária para realizá-la — centros de detenção, agentes de controle de imigração, tribunais e assim por diante.

Terá efeitos devastadores em vários setores que dependem da mão de obra imigrante, particularmente construção civil e agricultura. Também será enormemente desafiador em termos morais, à medida que pais são separados de seus filhos americanos, e criaria o cenário para um conflito civil, já que muitos dos imigrantes vivem em jurisdições democratas que farão o que puderem para impedir que Trump consiga o que quer.

Com relação ao Estado de Direito, Trump se concentrou, durante a campanha, em buscar vingança pelas injustiças que acredita ter sofrido nas mãos de seus adversários. Ele prometeu usar o sistema de justiça para perseguir de Liz Cheney e Joe Biden ao ex-presidente do Estado-Maior Mark Milley e Barack Obama. Ele quer silenciar críticos da mídia retirando suas concessões ou impondo penalidades.

Se Trump terá o poder de fazer qualquer uma dessas coisas é incerto: o sistema judicial foi uma das barreiras mais resilientes aos seus excessos durante o primeiro mandato. Mas os republicanos têm trabalhado consistentemente para inserir juízes trumpistas no sistema, como a juíza Aileen Cannon na Flórida, que rejeitou o forte caso dos documentos confidenciais contra Trump.

Algumas das mudanças mais importantes virão na política externa e na natureza da ordem internacional. A Ucrânia é de longe a maior perdedora; sua luta militar contra a Rússia estava enfraquecendo mesmo antes da eleição, e Trump pode forçá-la a se render nos termos da Rússia ao reter armas, como a Câmara Republicana fez por seis meses no inverno passado.

Trump ameaçou reservadamente sair da Otan, mas mesmo que não o faça, ele pode enfraquecer gravemente a aliança ao não cumprir sua garantia de defesa mútua do Artigo 5. Não há líderes europeus que possam substituir os Estados Unidos como líder da aliança, então sua futura capacidade de enfrentar a Rússia e a China está em grave perigo. Pelo contrário, a vitória de Trump inspirará outros populistas europeus, como a Alternativa para a Alemanha e a Reunião Nacional na França.

Aliados e amigos dos EUA no Leste Asiático não estão em posição melhor. Embora Trump tenha falado duramente sobre a China, ele também admira muito Xi Jinping por suas características autocráticas e pode estar disposto a fazer um acordo com ele sobre Taiwan. Trump parece avesso por natureza ao uso do poder militar e é facilmente manipulado, mas uma exceção pode ser o Oriente Médio, onde ele provavelmente apoiará completamente as guerras de Benjamin Netanyahu contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã.

Há fortes razões para pensar que Trump será muito mais eficaz em cumprir essa agenda do que foi durante seu primeiro mandato. Ele e os republicanos reconheceram que a implementação de políticas depende da equipe. Quando foi eleito pela primeira vez em 2016, ele não entrou no cargo cercado por um grupo de assessores leais; em vez disso, teve que contar com republicanos do establishment.

Em muitos casos, eles bloquearam ou retardaram suas ordens. No final de seu mandato, ele emitiu uma ordem executiva que retiraria todas as proteções de estabilidade dos servidores federais e permitiria que ele demitisse qualquer burocrata que quisesse. Um renascimento dessa medida está no cerne dos planos para um segundo mandato de Trump, e os conservadores têm estado ocupados compilando listas de potenciais funcionários cuja principal qualificação é a lealdade pessoal a Trump. É por isso que ele tem mais chances de executar seus planos desta vez.

Antes da eleição, críticos, incluindo Kamala Harris, acusaram Trump de ser um fascista. Isso foi equivocado na medida em que ele não estava prestes a implementar um regime totalitário nos EUA. Em vez disso, haveria uma decadência gradual das instituições liberais, assim como ocorreu na Hungria após o retorno de Viktor Orbán ao poder em 2010.

Essa decadência já começou, e Trump causou danos substanciais. Ele aprofundou uma polarização já significativa e transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança; ele demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele representa os interesses coletivos dos americanos; ele tornou o discurso político mais grosseiro e deu permissão para expressões abertas de intolerância e misoginia; e ele convenceu a maioria dos republicanos de que seu antecessor foi um presidente ilegítimo que fraudou a eleição de 2020.

A amplitude da vitória republicana, estendendo-se da Presidência ao Senado e provavelmente à Câmara dos Representantes também, será interpretada como um forte mandato político confirmando essas ideias e permitindo que Trump aja como quiser. Só podemos esperar que algumas das barreiras institucionais restantes sigam de pé. Mas pode ser que as coisas tenham de piorar muito antes de melhorarem.

A 'Folha' deve uma explicação aos seus leitores sobre Bolsonaro

Espaço de opinião é para colaboradores fixos e avulsos de um veículo de comunicação, e para o próprio veículo se expressar por meio de editoriais. Os editoriais são a voz do dono, não dos jornalistas; os artigos, a voz dos seus autores, jornalistas ou não.

Com menos frequência, o espaço de opinião também é usado por convidados especiais do dono do veículo ou dos que comandam sua redação, levando-se em conta a importância dos convidados e o que eles têm a dizer de relevante e oportuno naquele momento.

A Folha de São Paulo julgou relevante e oportuno convidar o ex- presidente Jair Bolsonaro para que escrevesse um artigo, e o publicou no último dia 10, às 20h, em sua edição digital, reproduzindo-o no dia seguinte em sua edição impressa.


Não foi um ato isolado. A ombudsman da Folha notou que, ultimamente, o jornal tem aberto generoso espaço para destacar ações de Bolsonaro e dos seus aliados. Se isso significa uma conversão ao bolsonarismo, não sei, mas a Folha tem esse direito.

Sob o título que soa irônico “Aceitem a democracia”, e o subtítulo “O povo tem escolhido a ordem, o progresso, a liberdade econômica e de expressão e o respeito às famílias e à religião”, o artigo exalta o avanço da direita no mundo e desanca a esquerda.

Alguns trechos:

“Nada consegue conter a onda conservadora. Nem a censura, nem os cancelamentos, nem o boicote econômico, nem as perseguições policiais, nem as longas, arbitrárias e injustas prisões.”

“A resistência e a resiliência da direita têm uma razão muito simples: nossas bandeiras, mesmo sob ataque do grosso dos veículos de comunicação e de seus jornalistas, expressam os sentimentos e anseios mais profundos da maioria da sociedade.”

“A moda é nos acusar de inimigos da democracia. Mas quem mostra dificuldade de aceitar a democracia é a esquerda quando a maioria do povo decide por caminhos diferentes do que ela gostaria. Basta olhar a reação da esquerda às suas derrotas.”

“Cada um que faça suas escolhas. Nós, da direita, tão injustamente acusados de “extremismo”, continuaremos perseverando no caminho que sempre defendemos, o da liberdade e da democracia, entendida como o governo do povo.”

A polêmica desatada pela publicação do artigo tem a ver com duas coisas: deve-se dar voz a um golpista, filhote da ditadura que a seu juízo torturou e matou menos gente do que deveria, e logo para que ele defenda hipocritamente a democracia que já tentou derrubar?

A normalização de um líder autoritário só faz mal à democracia

Bolsonaro está inelegível, condenado por abuso de poder político e econômico nas comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil. Há fartas provas de que na iminência da derrota em 2022, ele tramou dar um golpe, e não foi a única vez que tramou.

O artigo de Bolsonaro é um exercício de pura enganação, embora ele tenha o direito de enganar a rodo. A Constituição não proíbe a mentira e assegura a liberdade de expressão por mais deletéria que ela possa ser. Nas democracias é assim, daí sua vulnerabilidade.

A segunda coisa que tem a ver com a publicação do artigo é esta: os leitores da Folha esperavam que ela refletisse sobre o conteúdo da peça escrita por Bolsonaro, seja para a criticar ou corroborar. É o que a Folha costuma fazer com assuntos de grande repercussão.

Por que o jornal desta vez preferiu calar? Por que não demoliu um por um os argumentos de Bolsonaro sem lastro na realidade? A normalização de líderes autoritários serve ao propósito dos que se beneficiam da democracia com a intenção de miná-la por dentro.

A Folha deve uma explicação aos seus leitores. Não basta abrir espaço para que a critiquem, nem acionar repórteres para que confrontem Bolsonaro com ele mesmo. Se o jornal está aos poucos se reposicionando, que o faça com transparência.