sábado, 31 de outubro de 2020

Brasil de ETs

 


A banalização do ilegal

Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio para receber uma denúncia contra a Receita Federal é apenas a mais recente revelação, e não a menos grave.

O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.

Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.

A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.

Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.

A explicação para tamanha irregularidade é que o assunto envolve integrante da família presidencial, o que merece análise dos órgãos de segurança, especialmente o GSI, que cuida da segurança pessoal do presidente e sua família. Tal justificativa é de uma banalidade tão grande que, revelado o encontro, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.





Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.

O caso é agravado por haver uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro a respeito da interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal justamente para proteger seu filho das investigações. O ministro Alexandre de Moraes herdou o processo do ministro aposentado Celso de Mello e agora tem sob seus cuidados três processos que convergem.

Os das fake news e das manifestações antidemocráticas, organizadas pelo chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, são próximos entre si, e agora o da interferência na Polícia Federal, com as novas informações que devem ser anexadas, pode demonstrar que o governo se aproveita de sua estrutura e poder para defender interesses próprios, sejam pessoais ou eleitorais.

Já há diversos pedidos de políticos, como o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, e o senador da Rede Randolfe Rodrigues, pela atuação da Procuradoria-Geral da República e do próprio STF nesse caso revelado pela “Época”, num momento em que Bolsonaro volta a assumir posições agressivas contra a Justiça. Ao afirmar que não é possível um juiz determinar que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória, Bolsonaro está claramente pressionando o Supremo, que deve tratar do tema em breve.

Há indicações de que a maioria do STF é a favor da obrigatoriedade da vacinação, por uma questão de segurança sanitária. O presidente volta a usar sua força nas mídias sociais para jogar seus seguidores contra o Supremo, o que não deu resultado das outras vezes.

Até quando o Brasil suportará a situação que lhe aflige?

Nada pior que a descrença de que as coisas possam mudar. Estaria o Brasil num ponto de não retorno ou só no meio de um mar agitado? Como devolver a esperança a uma sociedade que parece endurecida pela incerteza?

Incerteza sobre o que querem fazer com a política interna e externa enquanto aumenta a incredulidade sobre quem pilota a nação. Incerteza sobre o que querem fazer com a Amazônia, cada vez mais martirizada. Incerteza com a economia deste país, cada dia mais precária e confusa, com a inflação galopante dos preços dos alimentos, que golpeia sobretudo os mais pobres. Incerteza sobre a privação das liberdades adquiridas com tanta fadiga. Incerteza sobre o que pretendem fazer com a Constituição, elogiada no mundo por sua modernidade, que assegura saúde e educação para todos e defende todas as minorias. 

Incerteza sobre a segurança de uma sociedade à qual se deseja armar como se estivesse em guerra. Incerteza sobre o crescimento das milícias já incrustadas nos poderes locais, que ameaçam se unir aos grandes traficantes de droga e armas, e cada vez mais próximas das instituições do Estado, inclusive a Justiça. Incerteza dos mais pobres com esse jogo de querer privatizar a saúde e a educação, o que significaria atirar num genocídio físico e cultural milhões de pessoas que iriam ficando pelo caminho, desprovidos de sua segurança social. 

Incerteza com nossa política interna e externa, com nossas relações com os outros povos do planeta, de quem o Brasil parece se afastar cada vez mais, encerrado em suas lutas políticas internas que o distanciam dos fóruns internacionais onde se constrói a política mundial. 


Até quando o Brasil poderá resistir com um presidente que parece cada dia mais incapaz de dirigir um país da envergadura do Brasil, com sua política incapaz de abordar os grandes problemas do país, com seu caráter às vezes infantil e às vezes altaneiro? De um presidente que parece estar cada dia mais armado de uma política destrutiva, negacionista da realidade, incapaz de escutar o grito dos mais sacrificados? Até quando o Brasil continuará sendo vítima de um Governo dividido ele mesmo entre os olavistas fanáticos e destrutivos e os militares, cada dia mais preocupados, já que não querem ser usados em uma política de ódios e rancores? Um Governo que, em vez de levar a todos para uma nova era de prosperidade, os arrasta para a divisão e o ódio. 

Nunca a sociedade do Brasil, desde os tempos da ditadura, se sentiu tão insegura quanto ao seu futuro e o de seus filhos. Que sociedade do amanhã está sendo preparada para eles com essa política cada vez mais do não que do sim? E, enquanto isso, cada dia mais pobres estão voltando a se lançar no inferno da fome e mais jovens parecem duvidosos quanto ao seu futuro. 

Sinto dor quando alguns deles me dizem que querem ir para o exterior porque aqui não encontram oportunidades de desenvolver seus talentos. Não é que estes jovens que são nosso futuro não gostem do Brasil. É que se sentem a cada dia mais impossibilitados de realizar seus sonhos. 

O Brasil vive uma crise política e existencial que prenuncia um novo dia de esperança, ou o medo o está paralisando? Estaremos no estado que se chama de “não retorno” e de mudança radical de época, ou no meio de uma tormenta que ao se desfazer deixa o céu mais limpo? 

Pelo amor que tenho a este país, quero acreditar que estamos mais às vésperas do milagre e que a política enlameada de hoje, que gera violência, possa dar lugar a uma mais próxima das dores de quem sempre paga o preço dos pecados do poder. 

Como seguir adiante com um presidente saudoso dos golpes e que ameaça colocar o Exército na rua para evitar aqui um segundo Chile, como ele mesmo declarou? Ignora o presidente que as manifestações do Chile tiveram lugar para se livrar de uma Constituição ainda dos tempos do sanguinário ditador Pinochet? Os brasileiros têm todo o direito que lhes concede a Constituição de se mobilizarem em defesa da democracia. Isso demonstra que o capitão reformado Bolsonaro que hoje dirige o país não só não se converteu aos valores da democracia como também está voltando às suas antigas nostalgias de guerra fratricida. Ele sempre preferiu que os sinos dobrassem mais pelo enfrentamento dos conflitos do que pela busca da paz. 

Hoje me uno ao grito de Zeina Latif, que em sua coluna n’O Estado de S. Paulo escreve: “A negação dos problemas pelo poder público sugere que estamos brincando na beira do precipício com olhos vendados. Nunca na história a guerra e os enfrentamentos entre irmãos criaram bem-estar e liberdade. O Brasil sofre e se empobrece cada vez que os políticos são incapazes de criar um ambiente de liberdade onde cabem todas as ideias e a confrontação positiva e democrática. 

Apesar do meu apreço pela política social que o ex-presidente Lula desenvolveu, me doeu o dia em que lançou seu lema de guerra de “nós contra eles”. Não, a paz e a justiça são criadas de mãos dadas, sem ódios nem rancores, sem divisões e com o esforço sincero de abrir um diálogo entre diferentes.

...e tome de canetada


Eu não delego a ninguém tratar sobre qualquer outro assunto relacionado ao presidente da República. E a caneta BIC é minha e ainda tem tinta
Jair Bolsonaro

Anatomia do amoralismo brasileiro

Temos mil discordâncias, mas num ponto somos quase unânimes: somos um povo moralmente escorregadio. A maioria está convencida de que somos um povo sem caráter. A esperança de nos tornarmos mais civilizados, que em certos momentos chegamos a nutrir, parece ter-se esvaído de vez.

A pandemia reduziu a quase nada a dúvida que pudesse existir a esse respeito. De fato, quem observa nosso cotidiano logo percebe que centenas de milhares – a começar pelo presidente da República – não parecem dar a mínima para a saúde alheia. Solapam os esforços dos agentes de saúde que combatem a covid-19 na linha da frente. Fomentam aglomerações e recusam-se a cumprir os cuidados básicos estipulados pelas autoridades.



Frisemos que não se trata de um traço meramente psicológico ou cultural. É algo baseado em comportamentos reais, facilmente perceptíveis. Apresenta-se sob uma infinidade de formas, desde as garrafas de plástico deixadas nas ruas e nos jardins, passa por todo aquele contingente que não carece de auxílio emergencial, mas o pleiteia com o maior descaramento, e culmina em requintadas modalidades de estelionato. Tampouco se trata de classe social. Basta olhar em volta para constatarmos que o amoralismo permeia nossa sociedade de alto a baixo. Manifesta-se tanto entre pobres como entre ricos. Entre analfabetos e entre aqueles que estudaram até cansar.

Como compreender que tenhamos chegado a esse ponto? A interpretação geralmente aceita é a de que se trata do desfecho inevitável da colonização portuguesa. São “grilhões do passado”. Confesso que essa teoria não me agrada, mas não a rejeito in totum. A debilidade de nossa ordem normativa (ou seja, de nosso sistema de valores e normas morais) em parte se deve ao curso de nossa História. Decididamente, nunca tivemos e não temos nenhuma inclinação calvinista. Entre nós, nem o catolicismo, nem as religiões de origem africana, nem a família e muito menos o sistema de ensino facilitaram a formação de padrões morais introspectivos, de caráter individual. Sem esquecer que escravos, seres por definição carentes de interesses e desejos, não tinham de optar entre alternativas, portanto, não tinham que refletir sobre critérios de opção.

De qualquer forma, prefiro partir de premissas atualizadas. Parto da proposição de que nosso país, como qualquer outro, pode ser visualizado como uma justaposição de três grupos distintos: A, B e C.

O grupo A é composto pelos verdadeiros cidadãos. Gente honesta, que respeita os semelhantes, e não se afasta dos padrões morais aceitáveis e corretos em nenhuma circunstância. “No matter what”, como se diz em inglês.

No extremo oposto, o grupo C concentra a gente da pior espécie. Não só ladrões de colarinho branco, mas ladrões de verdade, gente violenta e assassinos que cedo manifestam tal inclinação e assim se comportarão ao longo da vida, em qualquer circunstância. “No matter what”.

O grupo B, presumivelmente o maior, é um emaranhado extremamente complexo. Compõe-se de gente que pode pender para um lado ou para o outro, conforme as circunstâncias. Gente que varia da simples malandragem até tipos mais perigosos, mas sem configurar um padrão previamente determinado. É plausível supor que o grupo B seja proporcionalmente maior em países mais pobres do que em países ricos, ou em momentos de depressão econômica do que em momentos de prosperidade, e em países governados por indivíduos e instituições corroídas pela ilegitimidade – retomo esse ponto adiante. Examinado ao microscópio, o grupo B deixa entrever alguns traços principais. O mais importante é o que Thomas Hobbes (1651) descreveu como a “luta de todos contra todos”. Sim, nesse grupo a luta pela sobrevivência é renhida e constante. Muitos dos que o integram não sabem do que vão viver amanhã, e não dispõem de recursos básicos (como uma boa escolaridade) que os tornem mais competitivos na arena cotidiana. Muitos não têm emprego, ou recaem no desemprego ao primeiro impacto de uma crise. Muitos conseguem trabalho, mas em empregos de má qualidade, mal remunerados, que não propiciam segurança, perspectiva de carreira, continuidade, e muito menos motivação. E não nos esqueçamos de que o Brasil nada possui que se assemelhe a uma classe média consistente, firmemente assentada em pequenos e médios empreendimentos, urbanos ou rurais.

Pois bem, o exemplo, como sabemos, deve vir de cima. Como poderá uma sociedade cujo núcleo coexiste com a amoralidade elevar-se a um nível de civilidade mais alto, se sua cúpula institucional – o Estado e as autoridades que o dirigem – todo dia nos brinda com aberrações jurídicas e acrobacias jurídicas de toda ordem, sem esquecer a corrupção propriamente dita? Se uma multidão de desempregados e subempregados recebe diariamente a informação de que, nos três Poderes, os que mandam metem a mão em cifras astronômicas?

Brasil do eterno Halloween

 


Os padrões do comportamento civilizado

Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.

Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.

Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.

Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.

Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.

Não faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva e seus discípulos para se agarrar ao poder.

Rasgada a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o adversário devia ser aniquilado.

Nisso o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha.

Uma vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos. Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários políticos – a responsabilidade pela crise.

O sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na truculência como ativo eleitoral.

Resta torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.

Ricos doentes


Todas as palavras já foram ditas sobre a miséria mas a alma dos ricos é cheia de doenças
Paulo Mendes Campos

As mulheres do presidente

A ação identitária — alguns a batizam como “cultural”, o que é rematado marketing — ganhou contornos de guerra santa na atual temporada. 

Já há tempos, os partidos se viam obrigados a lançar uma cota de mulheres a cargos legislativos. A lei eleitoral agora determina que também haja uma cota de candidatos negros a partir do próximo pleito. 

Parece lindo (ah, o inferno…). Assim como os partidos criaram artifícios para burlar as candidaturas de mulheres; do mesmo jeito que agora privilegiam com o fundo eleitoral apenas os amigos de sempre; a cota de negros também já enfrenta burlas e obstáculos construídos pela direita de turno. 

Os laranjais do PSL, em Minas e Pernambuco, exibiram já como se torce a realidade: usaram a cota feminina como vitrine.

A ideia é que haja uma representação mais eficaz da sociedade? 

Vale então olhar a ação bozonarista no campo feminino. Como a extrema-direita distorce as boas intenções da esquerda identitária.


Basta observar as três mulheres mais empoderadas da república bozo-malafista. Damares Alves, Bia Kicis e Carla Zambelli. 

Obsessivamente religiosa, Damares pretende cumprir a missão de tentar impedir qualquer tipo de aborto no Brasil — mesmo os já autorizados pelo Supremo. 

Sua cruzada lembra a do teólogo cristão (século III) Orígenes de Cesareia. Reza a lenda: inspirado por algum versículo mal-ajambrado do Evangelho de São Mateus, o maluco castrou-se… Seu receio ao desejo, à potência sexual, o conduziu ao ato solitário… de automutilação. O corta-fora o fez deparar com outros cristãos ainda mais radicais, e acabou preso e torturado — sempre em nome de Deus (cruz-credo). 

Até chegarmos ao Papa Francisco, aquele que elogiou o prazer sexual e defende a união entre pessoas do mesmo sexo, passaram-se 2 mil anos. Não no Brasil, onde o Papa é visto como afamado comunista.

O sexo (dos outros) é um problema entre os bozonaristas (menos para o chefe, né?). 

No plano legislativo, as deputadas (beneficiadas pela cota feminina) Bia Kicis e Carla Zambelli dedicam-se, além das redes sociais, à defesa histérica das insanidades dos Bolsonaros. Perto dos ataques raivosos distribuídos por ambas, Alexandre Frota é um casto de convento. São Frota. 

A cota partidária é a solução? 

Aborto? Creche? Feminicídio? São questões ainda em aberto depois de anos das cotas femininas. Onde a mulher deixará a criança para ir ao trabalho? Com o pastor? Topas, Malafaia? 

E agora as cotas raciais? Lembre-se do abissal Sérgio Camargo, da Fundação Palmares. Ele está à direita da Ku Klux Klan. 

Os chilenos farão uma Constituinte composta por metade homens, metade mulheres. Além de etnias indígenas. Vamos ver. 

O voto distrital resultaria em maior benefício para toda a sociedade. Sem dar argumentos à clivagem explorada pela extrema-direita. 

Sorte das corporações… Não está na hora de se discutir o bilionário orçamento para a área militar em troca de recursos para a renda mínima?

Rêgo Barros demonstrou que a ala militar do Planalto está sendo omissa

Já se fizeram as mais artísticas interpretações do artigo do general Rêgo Barros, publicado propositadamente no “Correio Braziliense”, o único jornal do país que é lido em Brasília de manhã cedo, porque os demais veículos da mídia só começam a chegar à capital nos primeiros voos, no início da manhã. O resultado é que a mensagem do ex-porta-voz da Presidência explodiu como uma bomba.

A principal tradução simultânea do texto é a comprovação de que não se pode contar com a suposta “competência” da ala militar que coabita o Palácio do Planalto.

Quem votou em Bolsonaro para se livrar de Lula da Silva e José Dirceu, que caminhavam para instalar no Brasil a primeira República Sindicalista do mundo, certamente julgava que os militares, especialmente os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão e Augusto Heleno, iriam auxiliar o presidente da República a governar o país em clima de ordem e progresso, digamos assim.



Mas não aconteceu nada disso. Sob as vistas e os narizes empinados de um grupo de oficiais-generais, o capitão Bolsonaro implantou a República Terraplanista, na qual pontifica a figura caricata do filósofo e astrólogo Olavo de Carvalho, um personagem que realmente não pode ser levado a sério em nenhum país minimamente civilizado.

Passados quase dois anos, a realidade que sobressai à vista de todos está contida no artigo de Rêgo Barros. O general deixou claro que não se pode confiar na ala militar do Planalto, que se mantém em “confortável mudez”, deixando Bolsonaro fazer o que bem entende, apesar dos frequentes recados do Alto Comando, que são vazados a Bolsonaro e geralmente ele finge que nem escuta, mas adivinhem quem mandou que entrasse naquela fase do “paz e amor”? Aliás, foi a última tentativa de as Forças Armadas controlarem Bolsonaro.

Antes disso, houve a indicação do general Braga Netto para a Casa Civil. Os comandantes militares achavam que, com a experiência na intervenção no governo de Luiz Fernando Pezão, na área da segurança do Rio de Janeiro, em 2016, o general iria dar conta do recado. Mas foi mais um erro.

Na ocasião, Braga Netto ganhou uma imerecida fama de competência. Na verdade, não houve redução nas estatísticas da criminalidade. Ao contrário. Ocorreu aumento significativo do número de assassinatos e de outros crimes, chegando ao recorde de 134 policiais militares mortos pela bandidagem em 2017.

Na verdade, Braga Netto é tão incompetente que nem chegou a gastar os recursos que o governo Michel Temer ofereceu ao Rio e ia devolver cerca de R$ 400 milhões.

Houve protestos candentes e somente na reta final o interventor resolveu comprar mais equipamentos. Sua gestão no Rio foi um fracasso, que agora ele repete na Casa Civil.

Obscurantismo 2.0 e os quatro tipos de negacionistas Covid

Esquerda, direita; esquerda, direita – eram centenas de militares alinhados a desfilarem impecáveis pela avenida. No meio da parada, só o João não conseguia acertar o passo. Tropeçava nos próprios pés, enganava-se no compasso. Mas na assistência, os pais do rapaz, orgulhosos do seu rebento, bradavam para os outros: “Então, organizem-se! Não veem que estão todos mal?! O João é que vai bem!”

Esta história de caserna é o que me ocorre quando olho para a crescente vaga de negacionistas da Covid-19 que, à medida que a fadiga da pandemia se instala, alastra nas redes sociais como um vírus devorador de neurónios. Vaga esta atrás da qual vão as pessoas que gostam de ser do contra, alguns internautas desprevenidos e os adeptos das teorias da conspiração. Eu conheço vários, estou certa de que o leitor se deparará com outros tantos.


Há vários níveis destes negacionistas. No topo da escala estão os negacionistas alucinados. São os que veem em tudo forças escondidas para dominar o mundo, como nos maus filmes de ação ou de ficção científica. Os que dizem que tudo isto é muito “suspeito” e imaginam que a pandemia foi obra da China – um vírus criado em laboratório para arrasar e controlar de seguida a Humanidade. Ou os que acham que as vacinas em estudo trarão um chip localizador para nos vigiar. Ou que com a Covid só se quer confinar as populações para se instalarem antenas 5G por todo o mundo, torres estas que por sua vez enfraquecem o sistema imunológico do indivíduo. Não vamos elaborar sobre os diversos estágios de alucinação aqui envolvidos, estarão ao nível dos terraplanistas em matéria de morfologia da Terra. Adiante.

Depois, há os negacionistas chicos-espertos. Aqueles que encontram no discurso “aqui há gato” a única forma de darem nas vistas, porque no campeonato da inteligência e do bom senso ninguém lhes liga nenhuma. Alguns desses, além de dizerem disparates vários nas redes, onde lançam o caos com desinformação, preconceitos e suspeições totalmente infundadas, têm mesmo espaço de opinião com amplificação em órgãos de comunicação social. Há neste grupo perfis diferentes de pessoas: colunistas patetas e frustrados, mas também médicos, e esses são mais perigosos. Alguns entretiveram-se a desdizer, desde março, as principais indicações da DGS e das autoridades, contribuindo para desorientar ainda mais as pessoas, quando o que era preciso fazer era informá-las com o estado da arte da ciência, que também está a descobrir uma realidade completamente nova.

O terceiro grupo são os negacionistas libertários. Aqueles anarquistas tardios, que recusam a obrigação do uso da máscara como quem nunca ultrapassou o trauma de ser obrigado a comer a sopa em pequenino. Para quem a vida em sociedade só tem direitos e nenhuns deveres, e pensar no bem-estar e na proteção dos outros é algo tão distante como Vénus de Marte. O que importa é o seu umbigo e o que bem o seu dono quiser fazer com ele, e os outros que se danem.

Esses libertários andam normalmente de mão dada com os negacionistas ignorantes. Os que por sistema recusam as conclusões da ciência, quando as evidências científicas não são inteiramente consentâneas com o seu conforto ou com a manutenção da sua forma arcaica ou obtusa de fazer as coisas. São deste grupo os que também recusam as alterações climáticas, como se a ciência fosse uma matéria de crença ou de fé. No que toca à Covid, estes negacionistas recusam o perigo do vírus, alinhando com Bolsonaro e Trump na cantiga da “gripezinha”. Sublinham que a mortalidade não é muito elevada – coisa que é um facto –, sem perceberem que o perigo está na falência dos sistemas de saúde que geraria uma potencial mortalidade enorme. Desvalorizam os números, comparando-os com outras maleitas, quando estes números têm por base um mundo inteiro que se confinou e planos de contingência apertados. Nunca param para pensar na mortandade que seria se deixássemos o vírus à solta, fazendo o seu caminho sem quaisquer medidas de contenção.

Estes negacionistas ignorantes enchem as caixas de comentários, formam grupos “pela verdade” ou “Sairdecasa” e até convocam manifestações sem distanciamento e sem máscaras. Se Portugal e o SNS fossem organizados à medida do seu egoísmo, da sua desumanização e da sua insipiência, mereciam uma pulseira branca para as urgências Covid, que os colocaria algures no fim da lista da assistência e das vagas nos ventiladores. Felizmente, não é. O SNS quando nasceu foi para todos, mesmo para os idiotas e para quem não faz nada para o merecer.