segunda-feira, 27 de julho de 2020

Preocupante é o conjunto da obra

Como já tratamos aqui mais de uma vez, vivemos algo inusitado: a maior recessão de décadas após a de 2015/2016.

Por volta de setembro, saberemos melhor o custo da pandemia, em termos de vidas humanas, perdas de emprego, quebras de empresas e redução da produção.

Neste momento, os próximos dois anos serão definidos através do que será consignado no Orçamento, da extensão das reformas e das mudanças dos marcos legais que definirão a existência ou não de investimento nas principais áreas de infraestrutura.

Saberemos como serão conciliados os novos gastos sociais com um nível mínimo de norte na questão fiscal e na trajetória da dívida pública. Poderemos, então, projetar com um pouco mais de base qual poderá ser o crescimento do País em 2021 e 2022.


Enquanto isso, tem sido um alívio (pelo menos temporário) a mudança na postura presidencial, pois parece que uma aventura extralegal foi deixada de lado, frente à firmeza das instituições.

Entretanto, permanecem preocupações com a falta de rumo e a baixa capacidade de gestão e de entregas do governo.

Assistimos a uma acirrada disputa entre várias alas que convivem no Executivo (ideológica, religiosa, militar e política), que ficou evidente no caso da sucessão do ministro da Educação. Por outro lado, a pauta presidencial está carregada de causas laterais, como armas e trânsito, assim como suporte a demandas corporativas.

O relacionamento com o Congresso permanece muito difícil, como ilustra o rompimento (um erro enorme) do acordo longamente negociado sobre o marco regulatório do saneamento e a tardia interferência na votação do Fundeb.

Mais do que tudo, temos tido uma gestão no combate à pandemia que se perdeu totalmente, elevando sua duração e o custo para o País. Nessa área, salta aos olhos a triste posição de disputar com os Estados Unidos o maior impacto negativo resultante do aparecimento do vírus.

Finalmente, três áreas fundamentais não poderão continuar como vêm vindo: a gestão da questão da Amazônia, a política externa do País e a gestão da educação. Na educação, temos um ministro novo e ainda desconhecido, mas não há como avançar na questão do meio ambiente e relações exteriores sem troca de ministros, já que os titulares perderam totalmente a condição de atuar, de forma minimamente construtiva.

Em consequência, não se vislumbra nenhuma organicidade no Executivo, que permita algo parecido com uma estratégia articulada.

Vemos um grupo ideológico com desempenho desastroso (Educação, Relações Exteriores, Meio Ambiente e Cultura), um grupo irrelevante em áreas importantes (Ciência e Tecnologia e Turismo), um grupo de grandes possibilidades, mas de baixíssimas taxas de entrega (Minas e Energia, Infraestrutura, Privatização).

Apenas na Agricultura, temos uma ação construtiva e bem-sucedida, embora aqui se pague um preço por incêndios ocorridos em outras áreas.

Finalmente, na área econômica, a maior promessa original não vai ocorrer: uma revolução liberal. Ao contrário, após a aprovação da reforma da Previdência, não houve uma sequência organizada de passos e ações, posteriormente atropelada pelo aparecimento da covid. As (não) propostas da reforma tributária bem o demonstram.

Enfim, o conjunto da obra é preocupante. Veremos onde vai dar quando setembro chegar.

* * * * *

Ainda estamos atolados na pandemia. Mas já se delineiam novas fronteiras das atividades produtivas. Aqui vai uma lista das que parecem mais relevantes:

- Digitalização, automação e otimização de processos via inteligência artificial, que levarão a grandes ganhos de produtividade;

- Bioeconomia: energia, novos alimentos e novos materiais;

- Sustentabilidade nos processos produtivos;

- Carros elétricos, que vão acelerar a transição energética já em curso;

- Novas possibilidades na nacionalização (competitiva) de certas linhas de produtos, especialmente mecânicos e químicos.

Temos de entender mais esses temas.

Se não pensar muito...



Na ânsia de termos aquilo que desejamos, às vezes, acabamos por atrair aquilo que não queremos
Mário Lúcio Sousa

Cidadão doutor

Os brasileiros sempre tivemos problema com a palavra cidadão, ou com qualquer outra que indique igualdade civil e ausência de hierarquias sociais, como sua irmã gêmea, república. Roberto DaMatta já nos mostrou isso.

O vírus da cidadania chegou a nossas plagas vindo da França revolucionária, do assustador Aux armes, citoyens! Um panfleto manuscrito de 1821, exposto nas ruas de Salvador, não deixava por menos: “Às armas, cidadãos! [...] Se à força da razão os reis não cedem/ das armas ao poder cedam os reis”. Mas estávamos vacinados pela tradição monárquica ibérica. A palavra entrou para nosso vocabulário liberal domesticada em seu potencial nivelador.


Nova tentativa de retomá-la em seu sentido revolucionário foi feita logo após a Proclamação da República por alguns republicanos jacobinos e positivistas. Silva Jardim à frente, e novamente inspirados na Revolução de 14 de julho, eles saíam cantando a “Marselhesa” pelas ruas do Rio de Janeiro, para desespero do representante francês, que não queria atritar-se com o governo brasileiro, nem desagradar a seus compatriotas.

Vitorioso o golpe, jacobinos e positivistas tentaram introduzir o tratamento de cidadão para todos os brasileiros no intento de acabar com as hierarquias monárquicas compostas de títulos de nobreza e honoríficos, patentes da Guarda Nacional. A regra de tratamento passava a ser cidadão-presidente, cidadão-deputado, cidadão-barbeiro, e assim por diante.

O destino do esforço pode ser acompanhado na correspondência enviada a Rui Barbosa quando ministro da Fazenda entre 1889 e 1891, quase toda ela dedicada a pedidos de favores, sobretudo empregos públicos. Era óbvia a dificuldade dos missivistas em seguir a nova regra republicana. Em mais de mil cartas, só duas, uma de João Ribeiro, a outra de Silva Jardim, se enquadraram. Os dois mesmos, em outras cartas, e todo o resto temperaram o cidadão no mínimo com um cidadão-doutor. Havia variantes como “cidadão-conselheiro” (misturando o título monárquico com o republicano), “cidadão- general” (título que foi dado a Rui pela própria República, que o constrangia). Alguns missivistas extrapolaram: “Cidadão-general-Dr.”, ou “Exmo.-Cidadão-Conselheiro”. A maior dificuldade dos missivistas era não usar a palavra doutor. Até nos quartéis, era Dr. General para cá, Dr. Tenente para lá.

Mais tarde, já depois da Revolução de 1930, houve nova tentativa de “cidadanizar” o tratamento. Consta que o general Manuel Rabelo, um positivista ortodoxo, como Rondon, quando interventor em São Paulo, promulgou um decreto tornando obrigatório o tratamento de cidadão para todos. Deram-lhe o apelido de “Cidadão-mendigo”. Hoje, cidadão é quase xingamento, como se viu em episódio recente no Rio de Janeiro, protagonizado por um Sr. Dr. Engenheiro. A solução, como sugeriu Capistrano de Abreu, talvez seja dar a todo brasileiro, já na certidão de nascimento, o título de doutor. Seríamos uma República de Doutores, única no mundo.

Bibliotecas em chamas

Escrever sobre índio é nadar contra a corrente porque os editores do passado achavam o tema um tédio, os políticos pensam que dá azar e, no cotidiano, costumamos chamar de programa de índio a algo desinteressante, sem graça.

O velho líder caiapó Raoni esteve internado em estado grave e teve alta. Não é Covid, mas a dor universal de perder a mulher com quem viveu muitos anos está derrubando o guerreiro.

Conheci Raoni em Altamira. Documentei sua amizade com o cantor Sting e com Anita Roddick, dona da Body Shop. Era uma segunda descoberta europeia dos índios brasileiros, reunidos ali para protestar contra a usina de Belo Monte. Agora os viam também como defensores da floresta.

Os viajantes do século XIX, meu tema de estudo, eram fascinados pela curiosidade de conhecê-los. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e o grande pintor Rugendas, por exemplo, estiveram no Brasil, mas os procuravam em qualquer ponto do mundo novo. Max, desculpe tratá-lo com essa intimidade, navegou longamente pelos rios norte-americanos, contraiu escorbuto, mas não perdia a chance de conviver com os índios.

Rugendas sofreu um acidente na Argentina, um raio o atingiu. Desfigurado e com dores crônicas, sentiu a proximidade de índios, cobriu o rosto disforme com um manto negro, tomou uma dose de morfina e cavalgou alguns quilômetros para pintá-los. E que lindas cores reproduzia em seus desenhos.

O governo brasileiro acha que os índios devem ser integrados. Um pouco como o Weintraub, mas não tão agressivo como ele, que dizia odiar a expressão “povos indígenas”.


Na verdade, esse é um sonho de liquidação cultural. No momento em que a Covid-19 avança pelas aldeias, é também uma destruição física. Já morreram 500 e, de um modo geral, os mais velhos. São os depositários do conhecimento, numa cultura oral. O jornal “El País” descreveu precisamente essas mortes: é como se fossem inúmeras bibliotecas pegando fogo.

O governo não quer dar nem água potável para eles. Os ianomâmis e os ye’kwanas, lá na fronteira com a Venezuela, estão acossados por garimpeiros. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já advertiu o governo brasileiro duas vezes. Na primeira, foi respondida apenas de uma forma muito geral, insatisfatória.

O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma campanha para que os índios fossem protegidos na pandemia e pela expulsão dos invasores de suas terras.

Não repercutiu aqui como merecia. Apesar do que pensa o governo, a Constituição, em dois artigos, reconhece seus direitos não só culturais, como também territoriais.

O STF, através do ministro Luís Roberto Barroso, tenta fazer valer o texto da lei, e não os delírios destrutivos do governo. Creio que é necessário advertir para o que se passa lá fora e seus desdobramentos. A imagem do Brasil está desgastada pela política ambiental. E também pela política sanitária, considerada um desastre até pelo presidente das Filipinas, um exemplo asiático do modelo Bolsonaro.

Esses dois desgastes convergem na questão indígena, onde os temas sanitários e de defesa da Amazônia se associam.

Bolsonaro foi questionado no Tribunal Internacional pelo PDT pela sua omissão na pandemia. Como é de se esperar em nossa cultura, o partido esqueceu os índios em sua denúncia.

A única juíza brasileira que atuou no Tribunal Internacional, Sylvia Steiner, ao mostrar que o esforço do PDT não teria êxito, lembrou que a situação dos índios brasileiros era algo que poderia levar Bolsonaro ao banco dos réus em Haia.

De fato, o artigo que define genocídio prevê a destruição parcial ou total de uma etnia. Foi por causa disso que o Tribunal aceitou a acusação contra o presidente sudanês Omar al -Bashir.

É preciso um esforço nacional para evitar que a pandemia devaste as populações indígenas. Nossa transmissão de vírus e micróbios, algo que os aniquila desde os tempos coloniais, precisa ser controlada. Se isso acabar em Haia, sinto que nossa cultura também será julgada, por não termos conseguido deter o processo.

E quanto aos nossos animados militantes de direita, lembro que não adiantará insultar o Tribunal pela internet nem fazer grandes bonecos representando seus juízes. E os nervosos generais que ameaçam com golpe certamente não devem fazer planos para invadir a Holanda. Um oceano líquido e mental nos separa.

Carta ao Povo de Deus

Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.

Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados [...], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus [...] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.


É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.

O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.

Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.

É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).

Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.

O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.

O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.

No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.

Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?

O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.

Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).

Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).
Carta assinada por 152 bispos, arcebispos e bispos eméritos do Brasil, que deveria ter sido publicada na quarta-feira, mas foi suspensa para ser analisada pelo conselho permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Pensamento do Dia


Pensar com liberdade

Desde junho de 2016, encontra-se paralisado, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, um projeto de lei, do já então deputado Eduardo Bolsonaro, que pretende tornar crime o elogio, a pregação, a apologia das ideias do comunismo e do regime delas decorrente. A pena prevista pode chegar a 30 anos de prisão, conforme a gravidade do delito.

No documento que justifica o projeto, o deputado tenta justificar também os crimes de tortura praticados durante a ditadura no Brasil, de 1964 a 1985, considerando que o terrorismo político havia antecedido à tortura, como se esta fosse uma justa e bastante resposta àquele. “O Estado brasileiro teve de usar seus recursos para fazer frente a grupos que não admitiam a ordem vigente”, diz o documento.

Além das ideias comunistas, o projeto também considera crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que usem a foice e o martelo ou quaisquer outros meios para fins de divulgação favorável ao comunismo”. Num esforço de isenção, o documento considera igualmente criminosas as ideias e a propaganda nazistas.


Não sei dizer se o projeto de Eduardo é anterior ou posterior àquele da “pílula do câncer”, o projeto de seu pai, então também deputado, pedindo o reconhecimento dos milagrosos efeitos do tal comprimido contra a doença fatal. Este foi um dos três únicos projetos de lei apresentados por Jair Messias, durante seus 28 anos de estrela do chamado baixo clero, titulares muito especiais de nossa Câmara Federal. Mas sendo ou não simultâneos, os dois formam uma indiscutível dupla do barulho legislativa.

São projetos que bem podiam ter sido pensados e promovidos pelo líder deles todos, o presidente americano Donald Trump, incentivador e avalista dos passos mais significativos do populismo autoritário que o mundo vem desenvolvendo nesses últimos tempos, na diluição das democracias convertidas em espetáculos grotescos de piadas e notícias falsas, em redes sociais. É preciso criminalizar as iniciativas ideológicas que se opõem ao sistema, não deixar que elas se manifestem à vontade, com normalidade.

Esse momento de radicalização das ideologias serve às ações que esses populistas autoritários desejam consagrar. Não se trata apenas de uma estratégia simplista de cobrar a radicalização das ideias; mas, disfarçado por trás dessa máscara, do esforço de evitar todo o debate de referência política, ética e cultural, um modo de evitar o confronto de ideias proibindo-as simplesmente.

Acusar todo progressista de comunista ou todo conservador de fascista, atirar todo discurso de esquerda nos braços do projeto comunista ou todo discurso de direita nos do fascista é eliminar as possibilidades que se encontram ao longo da distância entre um e outro. A humanidade levou séculos pensando alternativas a modos de viver, rompendo com as hierarquias produzidas, ao longo desse tempo, em ações e ideias que a faziam progredir apesar de tudo. Não é possível, nem seria justo, eliminarmos tudo o que se encontra entre os dois extremos, eliminarmos as nuances, as combinações, os erros que teremos que cometer para o nosso bem. E, talvez, para o bem de todos.

Se o fascismo é um exercício de poder discricionário sobre o outro, não vi recentemente nada mais fascista, em nosso ambiente social, do que aquilo que o desembargador Eduardo de Siqueira fez com Cícero Hilário, o corretíssimo guarda municipal de Santos. As consequências são menos graves do que as do Holocausto ou as das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Mas a democracia abriu um espaço para tornar mais grave, para nós, aquilo que nos acontece num momento especial. Tornou-se talvez impossível evitar um sentimento de prioridade ao que nos sucede.

Há cerca de um mês, Ascânio Seleme nos contou uma história sobre Muhammad Ali que eu, seu velho fã, não conhecia. Em junho de 1967, quando Ali, convocado para lutar no Vietnã, recusou-se a integrar as Forças Armadas americanas, 11 dos mais renomados desportistas negros dos EUA se reuniram com ele para demovê-lo dessa decisão. O chamado “Ali Summit” durou quatro horas e, ao seu final, os 11 atletas saíram apoiando o boxeador. Quem estava com a verdade? Ou: como estabelecer a verdade?

Durante a nossa ditadura, como escreveu José Casado, o governo militar “ajustava o câmbio, arrochava salários, reprimia protestos e as empresas lucravam”. Se havia ganhos concretos, acionistas e dirigentes multinacionais estavam pouco se importando com o que acontecia no Brasil, não era da conta deles. Nos EUA, uma lei, no fim dos anos 1980, ressarciu moradores japoneses, vítimas de discriminação civil durante a Segunda Guerra Mundial. Mas os ex-escravizados, em muito maior número, sofrendo durante muito mais tempo, nunca foram recompensados com nada. Os diversos julgamentos serão sempre relativos e nunca decisivos. Se os aprisionarmos em correntes de qualquer espécie, nos enganaremos sempre.
Cacá Diegues

Anatomia de um fiasco

“Não se pode julgar um homem, decidir de sua alma e do que sente, enquanto ele não mostrar quem é, ditando leis”
Sófocles, pela boca de Creonte, rei de Tebas

Decorrido um ano e meio de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro já “ditou” muitas leis, mas não deu mostras de haver compreendido os enormes desafios que o Brasil enfrentará no curto e no médio prazos.

A pandemia que nos atingiu em cheio explica somente uma parte dos desacertos a que temos assistido. O retrospecto dos primeiros 19 meses de Bolsonaro é deveras lamentável. Ele começou mal, abraçando uma agenda megalomaníaca - acabar com a “velha política”, mudar profundamente os valores e comportamentos da sociedade, e por aí afora. E não parece ter consciência dos graves problemas que teremos de enfrentar na pós-pandemia; a julgar pelo cenário de hoje, chegaremos ao fim desta crise estrategicamente enfraquecidos e despreparados para o que virá depois.

Mesmo no que concerne à pandemia, o fato é que Jair Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda o esforço dos Estados e municípios no combate à doença. O artigo 30, inciso VII, da Constituição de 1988 determina, cristalinamente, que compete aos municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados, serviços de atendimento à saúde da população”. Será que, para o presidente, “cooperação técnica” significa tentar induzir os agentes de saúde e uma parcela importante da sociedade a se defender da covid-19 com remédios comprovadamente ineficazes? Ou debochar do uso da máscara, não observar o distanciamento social, abraçar correligionários (e até bebês) e fomentar aglomerações? Qualquer pessoa capaz de interpretar o citado inciso VII concluirá que tais condutas são formas de sabotar, não de prestar assistência técnica. Por sorte, a missão dos agentes de saúde convocados a enfrentar a doença vem sendo cumprida a contento.


O preenchimento de altos postos da administração pública também evidencia - com as exceções de praxe - o despreparo de Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa e, pior que isso, sua tendência a se deixar pautar por orientações ideológicas, no mínimo, patéticas. Os estragos já feitos pelos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores tão cedo não serão sanados. Somados às idiossincrasias do próprio presidente, Ricardo Salles e Ernesto Araújo são diretamente responsáveis pelo isolamento do Brasil e pela vertiginosa queda de nosso país no exterior. O elevado número de militares no governo também preocupa, não tanto como uma premonição autoritária, mas pelo risco de debilitação das Forças Armadas como organização nacional.

Descabe completamente, e ainda mais nos limites de um artigo, tentar prever o que vai acontecer com a economia mundial e, dentro dela, nossas chances de recuperação. Há quem acredite numa recuperação rápida e quem, com fundamentos igualmente sólidos, descarte inteiramente tal hipótese. Num ponto, porém, não podemos escorregar. Instigados pelo tombo que a economia vai levar, os nacional-estatistas já começam a se manifestar de forma audível. A inutilidade da discussão liberalismo versus antiliberalismo em abstrato já deveria estar mais que clara, mas já há quem apregoe as vantagens e até mesmo nosso “inexorável retorno” ao modelo estatizante que praticamos durante a maior parte do século 20. Isso como se em algum momento tivéssemos de fato implementado uma reforma liberal!

Salta aos olhos que, ainda se fosse desejável, ressuscitar a esta altura um modelo de forte predomínio do setor público na economia equivale a ignorar a realidade imediata com que nos deparamos. Antes da pandemia, fechar o Orçamento federal já exigia do governo um contorcionismo patético. Sabíamos - e sabemos - todos que um ajuste rigoroso das contas públicas e uma expressiva atração de investimentos estrangeiros eram - e são - condições essenciais para uma retomada saudável do crescimento. E sabemos, agora, que a pandemia destruiu um montante colossal de riqueza. Centenas e centenas de empresas faliram, muitas delas sem chance de recuperação. O impacto de tudo isso na arrecadação será medonho. Como, então, ressuscitar nosso antigo modelo de crescimento, torcendo mais uma vez o nariz para o capital privado?

Sobre a educação, não há muito a acrescentar. Nosso sistema de ensino, como ninguém ignora, é pior que ruim: é péssimo, calamitoso.

Algo em torno de 70% dos indivíduos com idade igual ou superior a 15 anos não atingem o nível internacionalmente tido como aceitável em Matemática, 60% não atingem tal nível em Ciências e 50% ficam aquém dele em Português. Nessa área, o atual governo já está no terceiro ministro, tendo os dois primeiros - como diria um crítico de ópera - “passado pela cena sem dizer palavra”. Importante, direi mesmo histórica, foi a aprovação do Fundeb, emenda constitucional que destina mais recursos para a educação básica, obra muito mais do Congresso que do Executivo.

Imagens para o futuro

Os terríveis tempos que atravessamos ganharam esta semana mais duas imagens fortes, muito diferentes uma da outra: a primeira mostra um jovem, em Beit Awa, na Cisjordânia, que escalou a parede de um hospital até alcançar uma janela alta, e ali se sentou, para se despedir da mãe. A segunda, igualmente intensa, dá-nos a ver uma mulher nua, de costas, enfrentando policiais couraçados e armados até os dentes, durante mais uma manifestação antirracista em Portland, no Oregon.

O jovem palestino chama-se Jihad Al-Suwaiti. Sabe-se que a mãe, Rasmi, de 73 anos, faleceu poucos minutos após o filho alcançar a janela. Quanto à mulher que enfrentou as forças policiais, em Portland, os jornais norte-americanos deram-lhe um nome: Atena — a deusa grega da sabedoria, mas também da justiça e da estratégia militar. 

A primeira imagem resume o desespero destes dias. Que doença é esta, que maldade é esta que impede um filho de abraçar sua mãe enquanto ela morre? 


A segunda, pelo contrário, transmite uma espécie de alegria selvagem. Ali está aquela mulher, absolutamente desprotegida e, ainda assim, desafiadora e triunfante. Atena parecia já saber como tudo terminaria. Num primeiro momento, os policiais avançam. Naquele jogo, os seis ou sete homens-rinoceronte representam o passado avançando contra o futuro. Donald Trump está por ali, no coração sombrio de cada um dos policiais. Trump e a sua repugnante misoginia. Trump e o seu racismo ancestral. Trump e a sua abissal ignorância. Trump e todos os seus preconceitos arcaicos e decadentes. 

A mulher senta-se no asfalto, abre as pernas, e é então que se transforma na origem do mundo e no mundo novo que virá. Os policiais hesitam. Param. Finalmente recuam, abandonando a cena. 

No momento em que escrevo esta coluna ainda pouco se sabe sobre Atena. Talvez seja melhor não saber. As boas fotografias contam uma história. Não necessariamente a verdadeira história. Em algumas das melhores existe tanto de realidade quanto de ficção. Eventualmente, apenas ficção. É o caso, por exemplo, do famoso beijo clicado por Robert Doisneau em frente ao Hotel de Ville, em Paris, em 1950. A fotografia, publicada pela revista “Life”, para uma reportagem sobre o amor em Paris, contribuiu para consolidar a imagem romântica da capital francesa. Anos mais tarde, contudo, o próprio fotógrafo reconheceu ter encenado tudo. Os protagonistas do beijo eram, afinal, dois jovens estudantes de teatro contratados por Doisneau.

Também as fotografias de Atena foram, muito provavelmente, encenadas. Custa a crer que a jovem se tenha despido, subitamente, de improviso, respondendo a uma misteriosa voz interior, vinda do futuro. Ainda assim, creio que continuarão a inquietar e a comover quem quer que as veja, daqui a um século, por aquilo que exprimem de revolta, de vitalidade e de certeza. 

A imagem de Jihad Al-Suwaiti, na tristíssima solidão da sua janela, faz-nos querer sair já deste presente. As imagens de Atena deixam-nos com a convicção de que iremos sair; de que já começamos a sair. 

Com o chapéu alheio

A semana começa com a expectativa de que o Senado ratifique o novo Fundeb, tecido, negociado e aprovado pela Câmara dos Deputados a partir de consensos com educadores e gestores estaduais e municipais. Essencial para o financiamento do ensino básico, o Fundo foi tratado com absoluto descaso pelo Executivo, mas isso não impediu que o presidente Jair Bolsonaro se vangloriasse: “o governo conseguiu mais uma vitória”. Coroou-se com louros aos quais não faz jus.

Não é a primeira vez que o presidente vende como seus méritos obtidos por outros. Assim foi na reforma da Previdência e na aprovação da ajuda emergencial para amenizar a miséria durante a pandemia. E deve se repetir na reforma tributária, para a qual o ministro Paulo Guedes apresentou uma proposta pífia, incompleta, acintosa.

Tirou proveito até das leis trabalhistas propostas, aprovadas e sancionadas pelo presidente Michel Temer, governo responsável também pela derrubada mais acentuada dos juros, em 2018, e da inflação, dois temas sobre os quais Bolsonaro bate no peito e trata como vitórias suas.

Com seu jeito escrachado de falar, entre o popular e o populacho, Bolsonaro vai assumindo autorias de feitos que não são de seu governo, recheando o discurso com um amontoado de mentiras.

No caso do Fundeb, omitiu, com natural desfaçatez, o desdém com a matéria. O governo só apresentou uma proposta três dias antes de o Fundo ir à votação. Nela, previa o adiamento da vigência para 2022, sem dizer o que poria no lugar no ano que vem, e a transferência de recursos da educação básica para o financiamento do Renda Brasil, programa de assistência social que ainda não existe.
Recuou ao constatar que, mesmo com os neoaliados do Centrão, colheria uma derrota acachapante. E tentou emplacar o discurso de que participara ativamente das discussões e da solução final. “Foi um debate muito grande e o governo fez a sua parte”, mentiu Bolsonaro, sem ruborizar.


Na Previdência deu-se script semelhante. Embora fosse parte da capa liberal utilizada em sua campanha, Bolsonaro nunca quis fazer reforma alguma. Boicotou tudo até onde pode. Só topou depois de garantir regalias aos militares, que não só conseguiram manter um sistema diferenciado, como ganharam reajustes generosos em penduricalhos extrassalariais.

Para fazer frente aos danos sociais da pandemia que o presidente sempre considerou “histeria”, “gripezinha”, “resfriadinho”, seu governo propôs auxílio emergencial de R$ 200, ampliado para R$ 500 pela Câmara. Quando já não era mais possível recuar no valor estipulado pelos parlamentares, o governo aumentou para R$ 600.

Além do escárnio de transformar uma emergência para os mais pobres em disputa política, o episódio da triplicação do dinheiro para vencer o Parlamento revelou a completa ausência de critérios técnicos para fixação do auxílio, transformado pelo governo em um leilão diabólico. O que aconteceria se o Congresso fixasse em R$ 300? O governo pagaria apenas R$ 400 mesmo podendo desembolsar R$ 600? E se fosse R$ 900, daria R$ 1.000?

Já na quarta parcela sem que muitos tenham recebido a primeira, o auxílio emergencial é vendido como benesse exclusiva do governo, sem que se dê ao Congresso qualquer naco disso. Mesmo com defeitos graves de execução, centralizado para impedir a participação de estados e municípios, o programa se tornou âncora de popularidade do presidente, que viu sua aprovação crescer nos estratos de renda mais baixa. Não à toa, sonha em perenizá-lo com outro nome.

Depois de saltar a reforma administrativa, um vespeiro em que Bolsonaro definitivamente não pretende meter a mão, o governo vê urgência na tributária, reforma prometida há mais de um ano, pela qual também não mexeu um pauzinho sequer.

Sob pressão da agenda congressual, que já avançou bastante nessa seara, o ministro Guedes jogou na Câmara uma proposta vexaminosa. Só trata do PIS-PASEP, transfigurado em um único tributo com alíquota de 12% até para setores que nunca tiveram de recolher nem PIS nem PASEP, como livros, isentos há décadas. A segunda etapa deverá ser ainda pior, com mudanças no Imposto de Renda, retirando descontos com saúde e educação da declaração, e a cereja do bolo, a criação de um novo imposto aos moldes da CPMF, incidente em transações digitais, em troca da desoneração da folha de pagamentos de empregadores.

Embora de baixo impacto na geração de empregos, conforme demonstrou estudo elaborado pelo Ipea em 2015, a desoneração da folha é cenoura que desde 2011 os governos colocam à frente dos empresários para angariar apoio. De Dilma Rousseff para cá, Temer reduziu de 38 para 17 as categorias beneficiadas com a desoneração, que termina no fim do ano ou, se o Congresso derrubar o veto de Bolsonaro, em dezembro de 2021.

Por uma CPMF disfarçada, Guedes está replantando a cenoura.

O mais provável é que o Congresso impeça as sandices do governo e aprove um sistema tributário acordado com estados e municípios, menos oneroso para a atividade produtiva e para os cidadãos. Se der certo, com o mesmo despudor a que se referiu ao Fundeb, Bolsonaro dirá que é mais uma conquista de seu governo. E uma legião de inadvertidos acreditará na balela.